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A COVID-19 COMO CAPA PARA O TOTALITARISMO

O constitucionalismo representa um dos progressos fundamentais da política e do direito modernos, uma vez que garante que o poder político não é arbitrário nem faz o que quer. Pelo contrário: com o constitucionalismo, o poder está sujeito a um conjunto de regras na sua actividade e encontra-se limitado por normas restritivas nas suas acções em relação aos cidadãos, sendo obrigado a respeitar os direitos fundamentais de cada um.

Estas regras encontram-se estabelecidas num documento (ou em vários) chamado Constituição, cuja força jurídica é superior à de todas as outras leis, formando uma espécie de conjunto de mandamentos que todos têm de respeitar e que ninguém pode violar.

No momento actual, todavia, a força do constitucionalismo está a ser colocada em causa pelas atitudes dos governos no combate à pandemia da Covid-19. Têm vindo a ser tomadas medidas em catadupa, extemporâneas, sem fundamento e sobretudo sem respeito pelas normas constitucionais, quer sejam substantivas – os direitos fundamentais – quer sejam processuais – os mecanismos de aprovação e o tipo de normas. Liberdade de circulação, liberdade de manifestação e liberdade empresarial são suspensas por Resoluções de Conselhos, Ordens de Ministros ou Decretos Presidenciais, quando as variadas Constituições apenas admitem essa suspensão em estritos casos de emergência nacional, e mesmo assim exigem legislação primária do Parlamento, não meras “canetadas” de presidentes ou de ministros.

Este estado de coisas não se verifica somente em Angola – também acontece em Portugal e no Reino Unido (países que acompanho mais de perto), e possivelmente em muitas outras nações.

Não coloco em causa a necessidade de se tomar medidas para combater a pandemia, nem defendo que os governos não devam procurar proteger as populações da melhor forma possível face à ameaça sanitária. No entanto, tudo isto deve ser feito de acordo com os preceitos determinados na Constituição. Se a Constituição não é respeitada, abre-se a porta à constante desconsideração de uma norma superior legal e tudo passa a ser possível, correndo-se o risco de regressarmos ao tempo do absolutismo e do despotismo.

Uma praga ou uma peste não podem fazer recuar a história trezentos anos.

Recentemente, na Faculdade de Direito de Cambridge, Lord Sumption, um antigo e dos mais brilhantes juízes do Supremo Tribunal inglês, afirmou que os meios utilizados para o combate à pandemia contêm todos os ingredientes do totalitarismo, acusando os ministros da Coroa britânica de usarem a polícia para suprimir a oposição às suas políticas sanitárias e lançando um alerta: os efeitos das medidas de combate ao novo coronavírus são corrosivos para a democracia.

As ordens para se permanecer em casa e uma série de novas leis destinadas a restringir o que as pessoas podem fazer equivalem a uma violação que “tira o fôlego” aos direitos democráticos, reforçou este juiz.

Em Portugal, Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados e professor de Direito, escreveu que “estão a ser suspensos os direitos fundamentais dos cidadãos por uma forma que a Constituição não admite. (…) Há medidas que são conformes com a Constituição e outras que o não são, não podendo, num Estado de direito, os órgãos de soberania desviar-se daquelas que são as regras constitucionais”.

No que diz respeito a Angola, basta ver a trapalhice jurídica e política que foi o mais recente Decreto Presidencial decorrente da pandemia em relação ao direito de manifestação, sobre o qual já se escreveu no Maka Angola.

O que se verifica é que chefes de governo, ministros e polícias têm excedido os seus poderes legítimos.

Assim, é evidente que os governos estão a usar métodos que atentam contra a unidade social e que conduzirão a governos autoritários no médio prazo.

Haverá quem conteste estas preocupações, defendendo que situações extraordinárias exigem medidas extraordinárias e que não se tem de respeitar o direito ordinário, mesmo constitucional, numa situação tão grave como a da pandemia. O que os povos esperam é uma acção efectiva e drástica dos seus líderes. Estes argumentos evocam a famosa definição de soberania feita pelo teórico alemão do direito Carl Schmitt: a soberania é o poder de decidir o excepcional, sendo que o direito corresponde não a um conjunto de normas, mas a um conjunto de decisões tomadas por aqueles que interpretam o sentimento do povo.

Note-se que estas reflexões de Schmitt serviram de fundamento ao direito nazi na Alemanha dos anos 1930 e foram a base de sustentação do Führerprinzip (Princípio do Führer) como fonte e fundamento do direito germânico. O que o Führer afirmava encarnava o espírito do povo alemão e devia ser considerado como direito vigente. Escusado será dizer que esta visão do direito conduz ao pior dos totalitarismos, à perda completa das liberdades, da individualidade e da dignidade humanas.

Consequentemente, o decisionismo sanitário que agora vivemos não conduz à salvação da saúde, mas sim à edificação de uma sociedade em que o arbítrio e a vontade dos ministros predominam. Uma sociedade sem regras, em que a polícia assume poderes discricionários de fiscalização sem precedentes, e em que novos crimes são criados pela mera palavra dos governantes, estabelecendo-se penas e sanções absurdas e inconstitucionais.

É preciso termos muito cuidado com a linguagem da desgraça iminente, com as projecções alarmistas e com a manipulação estatística, pois o que se está a assistir é à propagação de um medo inigualável, cujo resultado é uma redefinição negativa das relações entre governantes e governados, com o estabelecimento de uma sociedade pós-constitucional em que os princípios de liberdade, igualdade perante a lei e justiça são substituídos por princípios sanitários mal concebidos, muitas vezes imperceptíveis e irracionais; em vez de se aumentar a segurança, aumenta-se a insegurança.

Todo o direito cujo fundamento é a decisão imediata do poder e não as regras previamente estabelecidas redunda numa maior infelicidade dos povos, e é isto que está a acontecer com o esboroamento do constitucionalismo que se verifica nos nossos dias.

Maka Angola

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