spot_imgspot_imgspot_imgspot_img

A LOUCURA DO JULGAMENTO DOS 104

A detenção em suposto flagrante delito de 104 pessoas na manifestação de 24 de Outubro de 2020 ocorrida em Luanda está a levar a mais um daqueles exercícios de justiça deploráveis que expõem como o sistema não funciona.

Os 104 estão a ser julgados nos termos do artigo 67.º do Código do Processo Penal. Este determina que serão julgadas, em processo sumário, as infracções criminais a que for aplicável pena de prisão até dois anos sempre que o infractor for preso em flagrante delito e o julgamento se possa efectuar nos oito dias seguintes.

Facilmente se percebe que julgar 104 pessoas em oito dias é um convite a uma enorme trapalhada, judiciária e humana.

Comecemos pela ofensa à dignidade humana, enunciada pela Constituição no seu artigo 1.º: “Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana.” Ora, dignidade humana é mesmo o que não tem sido garantido aos 104 reclusos.

As condições em que estão detidos são deploráveis, não mudam de roupa e não tomam banho há cinco dias, esperando a audiência de julgamento em condições inumanas na cave do tribunal, onde o ar se torna obviamente irrespirável com a acumulação do tempo e a falta de higiene.

O juiz Andrade Ginga, da 3.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, tem a tarefa de julgar os 104. Até ontem, quinta-feira, apenas tinha conseguido ouvir cerca de um terço dos detidos. Como vai ouvir os restantes até ao final do dia de hoje, sexta-feira, e apresentar as decisões no sábado, quando se completam os oito dias é ainda um mistério. Obviamente, se o processo demorar mais tempo do que o previsto na lei, perde o efeito e deverá ser transformado em processo ordinário, sendo os 104 reclusos libertados.

Aliás, o bom senso devia ter prevalecido na cachimónia do juiz Andrade Ginga. Sabendo que lhe seria impossível cumprir a audição cabal dos 104 seres humanos e os trâmites previstos no artigo 556.º e seguintes do Código de Processo Penal, deveria ter remetido o caso para os meios comuns. Mas há juízes que querem sempre agradar ao poder político, e assim pensam da pior maneira possível, atropelando as normas elementares da justiça.

Se tivesse agido com o mínimo bom senso, o juiz teria aplicado as medidas de coacção adequadas à situação, que dificilmente passariam pela prisão preventiva, e o processo seguiria tranquilamente o seu destino.

Na verdade, não se sabe bem como este processo se tornou sumário. Segundo as nossas fontes judiciárias, aos detidos nem sequer foi imediatamente apresentada acusação, nem sequer imputada qualquer acção individual. Parece que terá sido feita uma espécie de triagem administrativa e que o Ministério Público fez um despacho de acusação genérico, não individualizando os factos imputados a cada um dos arguidos. Ora, tal procedimento é inexistente do ponto de vista legal, pois não existe culpa colectiva. As únicas condenações possíveis recaem sobre actos concretos de cada um dos indivíduos, aferindo a sua culpa e ilicitude individualmente, e descrevendo o comportamento específico que leva à sanção.

Além do efeito judicial e de respeito pela dignidade da pessoa humana, esta decisão de remeter os processos para os meios ordinários teria a vantagem de aligeirar o ambiente pesado que se vive em Luanda. Esta confusão é a última coisa que se pretende no meio da crise económica, da pandemia da Covid-19 e da luta contra a corrupção.

“Quos volunt di perdere dementant prius” (Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir). É o que se está a passar com a inabilidade com que as autoridades estão a lidar com esta situação da manifestação e as suas consequências.

Até se pode aceitar a hipótese de a manifestação ter sido uma agitação provocada por um partido político, aproveitando o descontentamento da juventude. Mas não é admissível que o poder político acredite que um decreto presidencial tem força, isoladamente, para suspender direitos fundamentais garantidos na Constituição.

É intolerável que o juiz Andrade Ginga, independentemente de quem o ordena, se arrogue em julgar 104 pessoas em oito dias nem as deixando tomar banho.

Temos um poder judicial que ultimamente apenas distribui, em Luanda e a cada juiz de primeira instrução, uma resma de papel por semana. Nem sequer tem tinteiros e meios básicos disponíveis para a administração da justiça. Como pode este mesmo sistema judicial, ora sob comando de Joel Leonardo, lançar-se numa aventura deste calibre, de ter o juiz Andrade Ginga a julgar 104 cidadãos em oito dias? É fácil de perceber. É tudo à toa.

Este género de loucura predominou nos últimos tempos de José Eduardo dos Santos. Basta lembrar o julgamento farsante dos 15+2 em 2016, com os elementos da inteligência militar escondidos numa sala do tribunal a desligar a electricidade quando a sessão “aquecia”.

Com optimismo, julgávamos que esses tempos tinham sido ultrapassados. Mais eis que os “loucos” entregam ao juiz Andrade Ginga a tarefa ingrata de tratar de 104 casos em oito dias. O juiz talvez se tenha convencido do poder da loucura, em vez de ter percebido que os tempos são outros e recusar-se a desempenhar a tarefa. Deveria, repete-se, ter remetido o julgamento para os meios comuns. Não o fez e criou uma trapalhada monumental. É de loucos!

Aparentemente, para mostrar um tratamento dignificante que não tem existido até ao momento, a leitura das sentenças será feita no sábado no luxuoso Centro Cultural Paz Flor, propriedade da Sonangol. É muito bonito, mas não lançará a poeira sobre os nossos olhos, escondendo a total falta de condições das detenções e insalubridade em que os detidos foram colocados.

É inacreditável que a palhaçada do julgamento dos 15+2 seja agora substituída pela loucura do julgamento dos 104. É tempo de acabar com estas tristes figuras na justiça angolana.

Texto do Maka Angola

spot_imgspot_imgspot_imgspot_img
spot_imgspot_imgspot_imgspot_img

Destaque

Artigos relacionados