África: Human Rights Watch apela ao fim imediato do uso de “crianças-soldado” em Moçambique

“Um dos homens bateu na cabeça da minha mulher com uma AK-47 para a forçar a libertar o nosso filho, enquanto o outro homem ameaçou matar-nos a todos se não deixássemos o rapaz”, conta um homem.

A organização Human Rights Watch (HRW) apelou esta quarta-feira ao fim imediato do uso de crianças-soldado no norte de Moçambique, após um grupo armado do Estado Islâmico (ISIS) ter raptado rapazes para utilizá-los no combate contra as forças governamentais.

O grupo armado, conhecido localmente como Al-Shebab, raptou centenas de rapazes, alguns com apenas 12 anos, treinou-os em bases espalhadas por toda a província de Cabo Delgado e forçou-os a lutar ao lado de adultos contra as forças governamentais, denunciou a HRW, em comunicado.

“Usar crianças para combater é cruel, ilegal e nunca deveria ter lugar”, disse Mausi Segun, diretor da HRW para África, acrescentando: “O Al-Shebab de Moçambique deve parar imediatamente de recrutar crianças e libertar todas as crianças nas suas fileiras”. Na cidade de Palma, vários pais disseram que viram os seus filhos empunhar armas quando regressaram com outros combatentes para invadir a sua aldeia.

A HRW falou por telefone com quatro pais de rapazes raptados, uma antiga criança-soldado e duas testemunhas de abusos. A criança-soldado e as testemunhas tinham fugido da base de treino Al-Shebab na cidade de Mbau, onde foram mantidos em cativeiro durante várias semanas. Os seus relatos são consistentes com as notícias dos meios de comunicação social de que o grupo armado estava a raptar rapazes para serem combatentes.

Um homem de 42 anos disse que sete combatentes do grupo raptaram o seu filho de 17 anos durante o ataque a Palma, em 24 de março. Ele disse que os atacantes armados encontraram a sua família de sete pessoas numa quinta, onde se tinham escondido durante dois dias dos combates.

“Eu estava de joelhos a implorar aos Mashababos [o nome popular local para os grupos terroristas] que me levassem no seu lugar, enquanto a minha mulher agarrava as calças do meu filho para o impedir de se ir embora. Um dos homens bateu na cabeça da minha mulher com uma AK-47 [espingarda de assalto] para a forçar a libertar o nosso filho, enquanto o outro homem ameaçou matar-nos a todos se não deixássemos o rapaz ir”, contou.

A mãe do rapaz, de 36 anos, disse que o viu novamente em maio, pouco antes de a família abandonar Palma para procurar refúgio noutro lugar. “Eu estava escondida dentro de casa quando ouvi a sua voz e verifiquei do lado de fora da janela”, disse. “Vi-o num grupo de cerca de uma dúzia de outros rapazes, todos com calças de camuflagem e uma faixa vermelha à volta da cabeça”.

Duas outras mulheres disseram que o grupo terrorista tinha raptado os seus filhos durante a rusga a Mocímboa da Praia, em agosto de 2020, que culminou na tomada da cidade portuária.

Após escaparem de uma base do grupo terrorista em Mbau, três mulheres disseram que há “centenas de rapazes” nas fileiras do grupo. “Comportam-se como homens adultos, escolhendo mesmo ‘esposas’ entre as raparigas raptadas”, disse uma mulher.

Outra mulher que escapou disse que o grupo a raptou em março, em Palma, e que a levou a ela e a centenas de mulheres e rapazes em três camiões para Mocímboa da Praia, onde foram mantidos em cativeiro. “Os rapazes foram levados para treino militar em Mbau e Macomia”, referiu. “Após o treino, foram trazidos de volta para receberem aulas islâmicas e instruções para atacarem as aldeias“.

Um jovem disse que em abril de 2000, quando tinha menos de 18 anos, seis combatentes do grupo terrorista encontraram-no e a mais dois amigos de 16 anos, escondidos numa quinta durante um ataque a Mocímboa da Praia. Os atacantes discutiram sobre o que fazer com os rapazes e admitiram decapitá-los porque consideravam os seus “estilos de cabelo” contrários ao Islão. Em vez disso, forçaram os rapazes a andar de olhos vendados durante muitos quilómetros dentro da floresta até à base dos combatentes em Mbau.

“Juntámo-nos a muitos outros homens e rapazes e fomos ensinados a usar armas e facas para lutar”, disse o jovem. “Disseram-nos que tínhamos de matar e lutar pela nossa terra e proteger a nossa religião, que está a ser atacada em Moçambique”. O rapaz conseguiu fugir um mês depois, enquanto estava em patrulha, e agora vive com medo de ser recapturado pelo grupo armado.

Em junho de 2021, a organização humanitária Save the Children estimou que grupos armados não estatais em Cabo Delgado tinham raptado pelo menos 51 crianças, a maioria das quais raparigas, durante o ano passado. Um grupo local – Observatório do Meio Rural (OMR) relatou que os rapazes raptados estavam a expandir as fileiras de grupos armados na área.

O Protocolo Facultativo das Nações Unidas à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados, que Moçambique ratificou em 2004, proíbe grupos armados não estatais de recrutar crianças menores de 18 anos. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional classifica como crime de guerra o recrutamento, alistamento ou utilização ativa de crianças com menos de 15 anos de idade em hostilidades ativas durante conflitos armados.

“O uso crescente de crianças como combatentes pelo Al-Shebab é o último capítulo horripilante da violência em Cabo Delgado”, disse Segun. “As autoridades moçambicanas devem tomar medidas urgentes para proteger as crianças, para que permaneçam com as suas famílias e na escola, e não sejam exploradas como armas de guerra”.

A província de Cabo Delgado é rica em gás natural, mas aterrorizada desde 2017 por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.

O conflito já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, segundo as autoridades moçambicanas.

Desde julho, uma ofensiva das tropas governamentais com o apoio do Ruanda a que se juntou depois a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) permitiu aumentar a segurança, recuperando várias zonas onde havia a presença de rebeldes, nomeadamente a vila de Mocímboa da Praia, que estava ocupada desde agosto de 2020.

 

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