Angola: A Luta contra à Corrupção e Os Desafios da Reforma

Embora João Lourenço tenha sido alvo da atenção da imprensa devido a acusações de corrupção de alto nível contra a rede patrocinada pela família de José Eduardo dos Santos, o sistema político autoritário de Angola permanece praticamente inalterado.

Depois da saída de José Eduardo dos Santos da presidência de Angola após 40 anos no poder, o seu sucessor, ex-general João Lourenço, assumiu o cargo com promessas de reforma. A erradicação da corrupção no governo e no dominante Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) foi declarada como a sua primeira prioridade, “mesmo que os primeiros a caírem sejam militantes ou mesmo altos oficiais do partido que cometeram os crimes”. Desde que assumiu o poder em 2017, João Lourenço procedeu a uma reformulação da comissão política do MPLA, adquirindo o controlo do partido e, através deste, o controlo do poder executivo, das forças armadas e dos serviços de informações. No seu esforço anticorrupção foram recuperados mais de 5 mil milhões de dólares em bens saqueados. Será que isto assinala um novo começo para Angola e um afastamento decisivo da corrupção e do autoritarismo do passado? Ou será que estas reformas são apenas uma fachada no sentido de garantir o domínio de João Lourenço sobre o poder? Para obter uma compreensão mais alargada deste assunto, o Centro de Estudos Estratégicos Africanos faz uma análise da situação, tendo consultado várias personalidades independentes conhecedoras da realidade angolana.

Desafios Gigantescos

O PIB per capita em Angola de 4.422 dólares classifica-a como uma economia de rendimento médio. No entanto, Angola continua a ser um país de paradoxos. Apesar da sua riqueza, Angola encontra-se entre os países com maior nível de desigualdade em todo o mundo. Embora 75% da população do país viva com menos de 2 dólares por dia, Luanda foi considerada a cidade mais cara do mundo para se viver em 2017.

Não será também por coincidência que Angola seja  igualmente considerado um dos países mais corruptos do mundo, classificando-se na 146ª posição entre 180 países no Índice de Perceção da Corrupção (IPC) da [ONG] ‘Transparency International’. A receita petrolífera representa 95% da economia. O boom do petróleo e gás dos anos 90 financiou uma extensa rede de patrocínios que abrangeu figuras de destaque do MPLA, do governo e das forças armadas, perdurando durante o tempo em que José Eduardo dos Santos esteve na presidência. As elites locais e os indivíduos ligados à família de José Eduardo dos Santos também detinham participações nos setores, mineiro, imobiliário, de serviços e bancário.

“A captura do Estado envolve influências indevidas de indivíduos e companhias privadas sobre políticas, regulamentos e legislação com o objetivo específico de apropriar recursos públicos para ganho privado”.

O problema da corrupção em Angola está também enraizado na captura do Estado. Não obstante a corrupção “comum” depender, geralmente, da aplicação seletiva das leis existentes, a captura do Estado envolve influências indevidas de indivíduos e companhias privadas nas políticas, regulamentos e legislação com o objetivo específico de apropriar recursos públicos para ganho privado. O saque do erário público tornou-se parte integrante do funcionamento da máquina governamental.

O advogado sul-africano Andre Thomausen, especializado em direito constitucional, principal redator das constituições de Angola e Moçambique e conselheiro de longa data de ambos os países, afirmou que a captura de setores-chave da economia angolana por interesses privados “é uma característica sistémica do neo-Estado de partido único, não reformado, e reconfigurado durante a década de 1990 num estado de partido dominante. Não há ninguém que  faça negócios em Angola que consiga escapar a esta “tenaz”.

Este problema foi posto a nu quando foi exposta a ligação de Angola com o multimilionário conglomerado empresarial brasileiro, Odebrecht. O maior empregador privado de Angola, a Odebrecht encontra-se no centro daquele que foi denominado “o maior escândalo de corrupção multinacional da história”. Em 2017, um tribunal de Nova Iorque aplicou-lhe uma multa no valor de 2,6 mil milhões de dólares após a empresa ter admitido que efetivou pagamentos no valor de cerca de mil milhões de dólares em subornos a políticos, reguladores e legisladores em Angola, Moçambique, e 10 países da América latina durante vários anos.

Estes subornos foram oferecidos a funcionários públicos em troca de leis, diretivas e disposições regulamentares favoráveis, abrangendo uma vasta gama de setores altamente regulados, como [o setor da] energia e dos serviços públicos, que permitiram canalizar milhões de dólares para a Odebrecht e para as suas subsidiárias. Segundo documentos judiciais, num caso específico, um alto funcionário do governo angolano recebeu 1,19 milhões de dólares da Odebrecht para criar regulamentos que direcionassem negócios para a empresa.. Em contrapartida, a Odebrecht obteve 261,7 milhões de dólares em contratos. Num outro caso, a Odebrecht pagou 8 milhões de dólares a um regulador angolano para estabelecer procedimentos de concurso público que encaminharam vários projetos de construção para a empresa no valor de milhões de dólares.

O ativista angolano de direitos humanos Rafael Marques de Morais lançou uma campanha em 2017 exigindo uma investigação pública sobre a captura do Estado em Angola perpetrado pela Odebrecht, mas até à data ainda não foi aberto nenhum inquérito. “Tem havido um silêncio absoluto…  O sistema de justiça angolano quer que isto desapareça dado o envolvimento de altas figuras do estado,” afirmou Marques de Morais.

Além das práticas de conluio com operadores estrangeiros tais como a Odebrecht, o governo de Angola endividou-se fortemente ao longo dos anos. Apesar de ser um dos países mais ricos da África, Angola é ao mesmo tempo um dos seus países mais endividados, com um rácio de dívida/ PIB de 91 por cento. Entre 2005 e 2019, Angola contraiu empréstimos no valor de 40 mil milhões de dólares à China, representando cerca de metade da sua dívida externa total, incluindo 4,4 mil milhões de dólares em apoio ao trabalho na iniciativa chinesa Rota da Seda. A gestão destas dívidas será fundamental para a recuperação económica de Angola no longo prazo.

Otimismo e Incerteza

Algumas das promessas anticorrupção feitas por João Lourenço foram cumpridas, embora a sua eficácia seja pouco consistente . Sob a sua vigência, dezenas de funcionários foram acusados de corrupção. Novas leis de concursos públicos  aboliram o requisito que obrigava os investidores estrangeiros a ter um parceiro local, um requisito que favorecia o recebimento de subornos pelas elites locais financiados por empresas estrangeiras em troca de acesso ao mercado. Entre 50 e 300 empresas públicas — alvo de vastos esquemas de proteção sob o regime de José Eduardo dos Santos — foram identificadas para serem privatizadas.

Novas leis de concursos públicos [licitação pública] aboliram o requisito de que os investidores estrangeiros tivessem um parceiro local, um requisito  que favoreceu o recebimento de subornos das empresas estrangeiras pelas elites locais em troca de acesso ao mercado.

Além disto, João Lourenço procurou substituir alguns funcionários entrincheirados em cargos fundamentais para a  implementação de reformas, ao constituir um quadro de funcionários mais jovem e diversificado. “Ele assumiu riscos ao nomear quadros femininos jovens para cargos importantes nesta reforma,” comentou Alex Vines da Chatham House. “Talvez isto leve a bons resultados, mas essas mulheres, tecnocratas inteligentes, necessitarão de apresentar resultados concretos rapidamente, visto que uma geração mais velha da elite do MPLA sente que foi ultrapassada e não está satisfeita”.

Numa entrevista que teve lugar em setembro de 2018, Marques de Morais observou que daria ao presidente de Angola uma classificação de “8 num máximo de 10, simplesmente porque ele herdou um país em que a corrupção estava tão enraizada, tão institucionalizada, que se tornou a própria instituição”.

Mas Thomashausen adverte que as campanhas anticorrupção poderiam ser apenas um simples meio de “expurgar a antiga elite corrupta para dar espaço a uma nova elite corrupta”. Jon Shubert, autor do estudo Working the System: A Political Ethnography of the New Angola (Manipulação do Sistema: Uma Etnografia Política da Nova Angola) sugeriu que as reformas económicas de Angola tenham tido pouco impacto e poderiam, na realidade, causar mais prejuízos do que vantagens para alguns. “As fórmulas prescritas pelo Fundo Monetário Internacional, como a introdução de impostos sobre o valor acrescentado, em julho de 2018, poderiam afectar mais intensamente as classes baixa e média”.

As ações tomadas para responsabilizar os funcionários foram também objeto de interpretações distintas. O filho do presidente anterior, José Filomeno dos Santos, que presidia o Fundo Soberano de Angola, está a ser julgado por lavagem de dinheiro. A sua irmã Isabel, a mulher mais rica da África, foi exonerada do cargo de presidente do Conselho de Administração da Sonangol, a empresa petrolífera multimilionária do estado. Valter Filipe da Silva, anterior dirigente do Banco Central de Angola, teve o mesmo destino. Ele está atualmente a ser julgado no tribunal para tentar explicar a questão da transferência irregular de 500 milhões de dólares do Tesouro para uma conta britânica privada durante as semanas finais do governo de José Eduardo dos Santos.

Contudo, Shubert questionou outras decisões, tais como a insistência do governo para que fosse Angola, em vez de Portugal, a proceder ao julgamento de Manuel Vicente, Ex-Vice-Presidente de Angola e chefe da Sonangol. Manuel Vicente supostamente terá pago um suborno no montante de 850.000 dólares a um magistrado português para suspender o inquérito sobre os seus negócios  em Portugal. No entanto, permanecem dúvidas sobre se os tribunais angolanos o responsabilizarão, já que ele e outros membros da família de José Eduardo dos Santos continuam a exercer uma influência significativa sobre instituições governamentais “Isto prova a perpetuação da influência das antigas redes”, explicou Shubert.

“Em vez de institucionalizado, o poder … foi personalizado em redor da figura de José Eduardo dos Santos, e operava através de hierarquias informais estabelecidas no seio de lealdades pessoais, algumas das quais ainda persistem”.

Progressivamente, estes visados estão a opor-se contra o que consideram “ataques coordenados” contra si. Em janeiro de 2020, Isabel dos Santos acusou João Lourenço de orquestrar uma expurgação das pessoas ligadas ao seu pai, sugerindo que iria contra-atacar ao candidatar-se à presidência em 2022. Isto, em resposta ao congelamento dos seus ativos em Angola pelo governo e ao anúncio que este usaria “todos os meios possíveis” para a fazer regressar ao país a fim de prestar contas da sua  fortuna acumulada estimada em 3 mil milhões de dólares. A irmã de Isabel, Welwitschia dos Santos, outrora uma importante deputada do MPLA, fugiu do país em maio de 2019 entre alegações de ameaças dos serviços secretos de Angola, tendo sido suspensa do Parlamento. Entretanto, o seu irmão, José Filomeno dos Santos, foi a julgamento em Dezembro de 2019 por ter desviado 1,5 mil milhões de dólares do Fundo Soberano de Angola.

Os esforços anticorrupção em Angola são politicamente seletivos, diz Vines, e sensíveis para  a opinião pública. “Casos de maior visibilidade como o caso contra o filho de José Eduardo dos Santos foram populares entre a classe média. A prisão do ex-ministro dos Transportes, Augusto Tomás, foi bem vista. Mas este processo é político e os aliados do presidente, tais como Manuel Vicente, não foram submetidos a este escrutínio. Embora estas investigações sejam legítimas, uma ênfase excessiva na persecução dos aliados de José Eduardo dos Santos pode tornar-se contraproducente e ser visto como uma caça às bruxas”.

Justin Pierce da Universidade de Cambridge disse que o regime político autoritário de Angola pode comprometer a sustentabilidade das reformas a longo prazo. “Foi precisamente porque o poder estava tão centralizado em José Eduardo dos Santos, que João Lourenço tem conseguido fazer muito e de forma rápida…. Todavia, este poder não institucionalizado foi personalizado em redor da figura de José Eduardo dos Santos e operava através de hierarquias informais no seio de lealdades pessoais, algumas das quais permanecem ainda operacionais”.

A Face e o Conteúdo de Reformas

O governo tem avançado mais lentamente nas reformas políticas. João Lourenço rejeitou os pedidos de revisão da Constituição para limitar os poderes presidenciais. As suas reformas da justiça criminal limitam-se à recuperação de bens roubados e ficam muito aquém das expectativas de tornar o sistema judicial independente do poder executivo, uma exigência fundamental dos ativistas da sociedade civil angolana. Entretanto, o governo não cede à pressão pública para dissolver a Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana, o ramo do MPLA -altamente impopular- que monitoriza toda a radiodifusão.

O analista Peter Fabricius questiona se o MPLA, um dos movimentos de libertação mais antigos de África, irá renunciar ao controlo apertado que exerce sobre a política e a sociedade angolanas. Ele advertiu que Angola pode estar a seguir uma tendência seguida pelos novos líderes de partidos de libertação, tais como John Magufuli da Tanzânia, Emmerson Mnangagwa do Zimbabué, e Filipe Nyusi de Moçambique, baseada no lançamento de campanhas anticorrupção populistas, mas sem deixar de manter um forte controlo do espaço democrático.

Fabricius traça as origens desta tendência emergente nas políticas adotadas pelo MPLA e outros movimentos de libertação dominantes na Cimeira dos Antigos Movimentos de Libertação (FLMs [na sua sigla em inglês]) na África do Sul, em 2016. O relatório da cimeira, intitulado “A guerra com o Ocidente” descreve como a corrupção desenfreada “está a danificar seriamente a imagem dos FLMs” e exorta os membros a “erradicar a corrupção para proteger os partidos revolucionários”. De forma reveladora, o relatório também observa que a principal ameaça que os movimentos de libertação de África enfrentam é “a mudança de regime de inspiração externa que trabalha com partidos da oposição e com a sociedade civil”. Fabricius afirmou, “Posto isto, é evidente que os FLMs estão há já algum tempo inteirados da ameaça que a corrupção representa para o seu poder e prometeram eliminá-la. É difícil dizer se isto explica a nova brisa que sopra nesta região e se constitui uma viragem para uma verdadeira  instituição da democracia.”

Os pontos de vista de João Lourenço sobre a reforma oferecem perceções adicionais quanto às conjeturas do MPLA. Ele afirmou aos angolanos que “quer ser recordado como a pessoa que realizou um milagre económico” e faz frequentemente analogias entre o modelo de desenvolvimento angolano e o “Milagre económico chinês”. Após as eleições de 2017, João Lourenço comparou as reformas do MPLA à “reforma e abertura política” da China e comparou-se pessoalmente ao seu arquiteto, o antigo e proeminente líder chinês Deng Xiaoping.

“Isto é revelador”, disse Ricardo Soares de Oliveira, autor do livro Magnifica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil. O modelo da reforma chinesa e a purga anticorrupção continua, na sua opinião, a não dar vislumbre de afrouxar o controlo do poder pelo partido. Quando muito, trata-se de um “meio para atingir um fim: uma forma de manter o partido no poder”, uma estratégia com eco no documento político da FLM.

“Não podemos excluir que, no futuro, o governo de João Lourenço possa tomar uma atitude mais autoritária se ele o considerar necessário”, alertou Justin Pierce. Muitos membros da sociedade civil angolana partilham a sua apreensão. O advogado de direitos humanos Zola Bambi adverte que João Lourenço poderia sentir-se tentado a substituir a chamada “cleptocracia de josé Eduardo dos  Santos” por uma nova da sua própria autoria.

Como deveriam ser as Reformas de Longo Alcance?

“Angola necessita urgentemente de uma governação responsável e mais eficaz” diz Vines. “As instituições permanecem fracas e vulneráveis, e a concentração de poder na presidência torna-as mais suscetíveis ao abuso, especialmente se as reformas falharem e o presidente enveredar por um caminho mais autoritário”. Os líderes da sociedade civil apelaram à despolitização do Supremo Tribunal, do Tribunal  Constitucional, do Gabinete do Provedor de Justiça e da Assembleia Nacional.

Embora a independência destes órgãos seja garantida pela constituição, estes têm sido providos por elementos leais ao MPLA há décadas. As organizações da sociedade civil de Angola também continuam a desenvolver esforços para a abertura do espaço da comunicação social e pela reforma dos serviços de segurança de Angola que são altamente  politizados. “Deve ser dada uma oportunidade a oficiais mais jovens e melhor preparados ”, declarou Thomashausen. “Poderá também haver necessidade de uma Comissão Nacional de Reabilitação Política, semelhante ao processo da Comissão de Verdade da África do Sul, para instilar uma nova filosofia de responsabilidade”. Olhando para o futuro, muitos angolanos concordam de que não há verdadeiramente alternativas para reformas sérias. Para que estas possam ser duradouras e com real impacto  é contudo necessário que ocorram no âmbito de um processo mais vasto de democratização que efetue uma ruptura decisiva com o passado.

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