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Angola/Cafunfo: “Quebrar o ciclo de Violência e miséria” – Rafael Marques de Morais

É hoje o segundo dia do Encontro sobre “Cidadania e Segurança Pública em Cafunfo”, a decorrer no Auditório 4 de Abril desta localidade. O Encontro foi organizado pelo Centro de Estudos UFOLO para a Boa Governação e pelo Comando-Geral da Polícia Nacional, para debater a questão da cidadania e segurança pública naquela região da Lunda-Norte, onde recentemente a polícia defrontou centenas de manifestantes, causando vários mortos e feridos. O objectivo principal é criar uma plataforma de diálogo e bom senso para debater as tensões exacerbadas pelos trágicos acontecimentos do passado dia 30 de Janeiro em Cafunfo.

A iniciativa insere-se num programa nacional mais vasto: as Jornadas sobre Cidadania e Segurança Pública: Conflitos de direitos fundamentais no Estado de direito contemporâneo (Plataforma de diálogo entre a sociedade civil e as forças de segurança).

Leia aqui a intervenção de Rafael Marques de Morais, presidente da direcção do Centro Ufolo.

“No próximo ano, completarei 30 anos de trabalho dedicado à região diamantífera das Lundas. Em 1992, a minha primeira missão nas Lundas foi como repórter do Jornal de Angola, com uma matéria sobre o início da exploração diamantífera do Projecto Luzamba, à data o maior de sempre, e sobre o seu potencial para o desenvolvimento da região do Cuango, incluindo Cafunfo. Dias após a publicação do trabalho, o projecto foi militarmente ocupado e não tardou o retorno à guerra. Regressei em Janeiro de 1998, como jornalista independente, para reportar sobre a reposição da administração nesta mesma área.

A minha comunicação tem como objectivo demonstrar, com um relato do historial de violência, que os acontecimentos de 30 de Janeiro passado são uma repetição.

Este encontro, em parceria com a Polícia Nacional, destina-se a prevenir a violência e a promover o exercício pleno da cidadania com segurança. Mas esses objectivos só serão alcançados caso haja uma intervenção profunda e cabal do governo para resolver os principais problemas que estão na base das constantes tensões entre as autoridades locais e a população. É uma questão de liderança e de vontade política.

Em três décadas de cobertura, reportei sempre, com raras excepções, sobre a violação sistemática dos direitos humanos na região, a miséria e o despojo socioeconómico das comunidades aqui radicadas. São 30 anos de tristeza e de experiências traumáticas, em que registei centenas de mortes e muito mais centenas de casos de tortura e outros actos desumanos. Mas, neste contexto de desespero, são também anos de aprendizagem sobre a natureza humana, a paciência, a fraternidade e a esperança no futuro.

Recentemente, o deputado Virgílio Fontes Pereira perguntou-me por que motivo nunca o mencionei publicamente as suas diligências a meu favor, enquanto ministro da Administração do Território. Recebeu-me, há 16 anos, e organizou-me alguns encontros junto da administração do Estado e da direcção do MPLA para que dessem resposta aos meus apelos sobre as Lundas. Nessa altura não havia vontade política, sem a qual a boa vontade do ministro não foi suficiente para mudar fosse o que fosse. Por isso, devemos dar o nosso melhor para fortalecer as instituições do Estado e para que o carácter individual de quem as dirige não seja o factor determinante para o seu funcionamento.

Passados 16 anos desde a iniciativa de Virgílio Fontes Pereira, estamos aqui publicamente em Cafunfo, numa parceria inédita com o Comando-Geral da Polícia Nacional. Manifesta-se vontade política e liderança para que aqui estejam congregados diversos sectores relevantes para a abordagem e resolução da violência sistémica em Cafunfo.

Após os primeiros encontros sobre Cidadania e Segurança Pública e Cidadania, na Huíla e em Benguela, em finais de Novembro passado, as manifestações seguintes, em todo o país, decorreram sem violência. Cafunfo é uma trágica excepção que se destaca desse cenário.

Por isso mesmo, este encontro é muito mais do que uma discussão sobre policiamento e manifestações. É um diálogo sobre a realidade de Cafunfo e a busca de soluções socioeconómicas e de implementação do respeito pelos direitos humanos. Os governos central e provincial estão aqui representados, a Endiama e suas associadas locais também aqui estão. É mais encorajador ainda notar como alguns cidadãos locais se organizaram para apoiar este evento, garantindo inclusive transporte para alguns oradores provenientes de Luanda. É este espírito de solidariedade e de empenho pelo bem comum que deve ser estimulado.

No dia 30 de Janeiro, enquanto decorria o tiroteio em Cafunfo, encontrávamo-nos na província da Lunda-Sul, com uma delegação do Ministério da Educação e da Fundação Ulwazi. Passámos cerca de dez dias a visitar muitas escolas nas províncias da Lunda-Norte, Lunda-Sul, Malanje e Kwanza-Norte, para a selecção de oito que serão alvo de reabilitação e construção por iniciativa privada. Ainda temos salas de aulas debaixo de árvores. Esboçámos um projecto-piloto de engajamento proactivo das comunidades na reabilitação e manutenção das escolas, com um duplo benefício: ganham com a sua participação e contribuem para a melhoria das condições de ensino e aprendizagem dos seus filhos.

30 de Janeiro

Os acontecimentos de 30 de Janeiro representam, em toda a sua tragédia, um padrão recorrente. Sobre este caso, apresentaremos em breve um relatório com as devidas recomendações.

Para já, devemos falar do grande clima de desconfiança que esse tipo de situação gera entre os cidadãos e as autoridades que os representam, ou deveriam representar. A génese da violência sistémica em Cafunfo assenta na exaustiva exploração anárquica de diamantes, sem quaisquer benefícios para o bem comum das populações residente, assim como na indefinição político-administrativa que caracteriza esta localidade. As políticas socioeconómicas têm favorecido a manutenção da confusão. O enraizamento da violência tem gerado, como reacção, a radicalização de muitos elementos da população, sobretudo jovens.

Convém perceber as razões que levam a que o Cafunfo seja um local propenso à violência. E é igualmente importante perceber por que razão as Forças Armadas Angolanas (FAA) tem aqui presença regular, através da brigada de infantaria estacionada em Cafunfo, encarregando-se de reprimir as manifestações. A repressão militar é, por definição, mais violenta do que uma repressão policial, devido ao treino específico e às armas geralmente utilizadas.

Como já bem referiu o Dr. Cremildo Paca, na divisão político-administrativa formal do Estado, Cafunfo não é bairro, não é distrito, não é comuna nem é município. Informalmente, é designado como sector do município do Cuango, conceito inexistente na referida divisão.

Em 2004, a população de Cafunfo tinha atingido 150 mil habitantes, 40% dos quais estrangeiros, conforme dados oficiais desse ano. Com esta pressão demográfica, a localidade tem mantido apenas uma esquadra de ordem pública. Passados dez anos, Cafunfo tem mais de 175 mil habitantes, conforme registo oficial. A ausência de uma estrutura administrativa local própria implica que a autoridade do Estado e a capacidade de gestão e resolução dos problemas seja ínfima. A Polícia Nacional acaba por ser a principal instituição do Estado na localidade.

Esta débil presença do Estado leva a que se verifiquem respostas desproporcionadas: à escassez de efectivos policiais, recorre-se à intervenção das Forças Armadas, que, como já referi, é por definição mais violenta.

A história dos primórdios da independência do País explica em parte esta indefinição político-administrativa. Tradicionalmente, Cafunfo fazia parte da província de Malanje. O primeiro Presidente da República, Agostinho Neto, considerou que Cafunfo deveria passar a fazer parte da Lunda-Norte, cortando assim as anteriores estruturas de apoio à localidade. Terminada a guerra civil, e sem uma autoridade administrativa local própria, a zona tornou-se uma espécie de terra-de-ninguém para o garimpo ilegal, criando-se um vazio de poder institucional e uma coutada de poderosos interesses privados. Não existe uma estrutura oficial de poder local que procure resolver os problemas da população, nem uma polícia adequada para fazer frente a convulsões da ordem. Por isso, acabam por ser os militares a intervir.

Ora, as funções das Forças Armadas não são de ordem pública, mas de defesa nacional. Já a Polícia Nacional tem o dever de garantir a ordem pública, mas não tem a função de dar resposta aos problemas políticos e socioeconómicos que geram descontentamento no seio da população.

Em resumo, a resolução dos problemas e qualquer análise contextual da situação de Cafunfo deve começar com a definição do seu estatuto político-administrativo.

O historial de violência

Os eventos violentos no Cafunfo têm-se sucedido com uma regularidade sinistra. Irei agora resumir o historial de violência em Cafunfo, tomando como exemplos paradigmáticos quatro casos ocorridos num espaço de 14 anos, entre 2004 e 2018. Estes casos estão reportados, respectivamente, em dois relatórios por mim publicados – “Lundas: As Pedras da Morte” (2005) e “Operação Kissonde: Os Diamantes da Humilhação e da Miséria” (2006) – e no portal Maka Angola (2017 e 2018).

A memória é essencial para não repetirmos as tragédias e os erros do passado.

A manifestação dos geradores

A 23 de Fevereiro de 2004, dezenas de populares manifestaram-se para impedir a remoção de um grupo de cinco geradores avariados que, nos anos 90, forneciam energia à vila de Cafunfo. A repressão policial contra os manifestantes resultou em oito mortos, devidamente identificados, e de quatro cidadãos estrangeiros feridos. No total, registaram-se 18 feridos, entre alvejados e submetidos a tortura. Os prisioneiros foram exibidos nus em parada. Foram detidos mais de 170 cidadãos, 17 dos quais transitaram em julgado.

Como reportámos, na altura, em “Lundas: As Pedras da Morte”, não houve qualquer detenção ou sanção disciplinar contra um agente da Polícia Nacional por homicídio ou ofensas corporais contra civis indefesos.

Mas também registámos, na altura, o outro lado da violência. Um dos agentes da Polícia Fiscal tentou socorrer Manuel Lucas Samienze, atingido quando tentava recolher o seu filho da igreja. Levou-o para a esquadra para tentar arranjar transporte. Um mujimbo fez confluir, na referida esquadra, dezenas de camponeses e garimpeiros que regressavam da labuta, com os seus instrumentos de trabalho como catanas, pás e enxadas, para exigir justiça.

A população cercou a unidade policial, apedrejou e feriu o comandante René. Este, num gesto extraordinário, ordenou aos agentes que não disparassem, fossem quais fossem as circunstâncias, para evitar um banho de sangue. Foi arrastado pelos pés e, por sorte, como ele me confessou, por ser cambuta, escapou ao linchamento. Neste processo, as populações queimaram a bandeira da República e provocaram outros danos à esquadra.

Um ano e meio após a sua detenção, os 17 foram absolvidos por falta de provas de que tivessem incitado ou perpetrado qualquer acto de violência ou ilegalidade.

Manasseja Lituaia, uma mulher corajosa

No Dia da Criança, a 1 de Junho de 2005, efectivos da Polícia Nacional realizaram uma operação na área de garimpo do Lucola. Nesse dia, conforme relatei, o investigador Vadinho, devidamente identificado, alvejou a vendedeira Manasseja Lituaia à queima-roupa. A bala trespassou o crânio do filho que ela levava às costas e feriu-a. Os garimpeiros reagiram apedrejando os agentes policiais que, em resposta, mataram mais duas pessoas. Estas foram imediatamente enterradas no local.

O investigador Vadinho mantém-se como efectivo do Serviço de Investigação Criminal (SIC) em Cafunfo. A ele cabe, também, a tarefa de investigar os incidentes que vão ocorrendo nesta localidade, como o do dia 30 de Janeiro (ver aqui).

Rapto e tortura do sargento Txamubanda

A 17 de Novembro de 2017, mais de 400 simpatizantes do Movimento do Protectorado da Lunda-Tchokwé protagonizaram uma manifestação violenta que resultou no desarmamento e espancamento brutal do sargento Ezequias Levi Txamubanda, chefe de patrulha da Polícia Nacional.  Torturaram-no com vários objectos contundentes, até o deixarem desfalecido e sem os passadores de sargento.

A manifestação visava “impugnar” os resultados eleitorais de 2017 e exigir autonomia.

Estado de sítio

A 17 de Novembro de 2018, manifestantes do Movimento do Protectorado Lunda-Tchokwé dispersaram tão logo a combinação de efectivos das FAA, Polícia de Intervenção Rápida (PIR), Polícia de Guarda Fronteira (PGF) e da Ordem Pública interveio para dispersar o seu protesto.

Todavia, as forças de defesa e segurança detiveram arbitrariamente transeuntes, que nada tinham a ver com os protestos, e muitos deles foram brutalmente espancados. Dessa actuação resultaram vários feridos (ver aqui).

Enquadramento

Os casos que acabo de referir demonstram apenas o árduo trabalho que temos pela frente para consagrar, na consciência nacional, o respeito pelo direito à vida e à dignidade humana. O padrão de violência, como se vê, é o mesmo de há muitos anos.

Há um ponto prévio, antes de enunciarmos algumas recomendações recolhidas destes anos de aprendizagem. Hoje fala-se muito, e ainda bem, da sociedade civil. Efectivamente, a sociedade civil é fundamental para a construção de soluções e reparação de danos.

Nas antigas cidades gregas, como nas antigas povoações dos nossos antepassados, o ponto principal da cidadania era a participação nos conselhos que decidiam as grandes questões. Mais do que ser o estratega (general) da cidade grega ou o chefe da nossa povoação, o importante, o verdadeiro dever cívico era o de participar nas decisões. O cidadão era aquele que vivia na cidade e tomava parte nas deliberações que o afectavam. Temos de recuperar este velho significado de cidadania como participação e entender que somos nós que devemos construir o Estado de Direito, a Democracia e o Desenvolvimento Sustentado.

Mais de 600 pessoas acorreram a participar neste Encontro sobre Cidadania e Segurança Pública em Cafunfo

Dos quatro casos que aqui recordei, retiramos as seguintes lições:

  1. A primeira medida fundamental é a abertura de investigações criminais sérias por parte da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Para que a vida do angolano, de um modo geral, tenha peso e valor, urge lidar directamente com as mortes para se reparar, dentro do possível o que aconteceu, e evitar repetições no futuro.

A primeira acção é óbvia e decorre da lei. Qualquer morte não explicada tem de ser investigada pela PGR.

É da PGR a responsabilidade primária de acção e de tranquilização da sociedade, informando-a sobre o curso da investigação como forma de restabelecer a paz social. É a PGR que está na linha da frente. Para realizar o seu trabalho de forma competente, tem de ter os meios humanos e materiais adequados para concluir por uma acusação ou arquivamento. Neste momento, não há sequer um procurador residente em Cafunfo, uma zona com tantos e complexos conflitos com a lei. A justiça tem de existir e tem de ser vista a actuar. Na actualidade, o Orçamento Geral do Estado dedica uma proporção irrisória à justiça. É necessário colocar a máquina da justiça a funcionar e financiá-la devidamente. O povo tem de ver a justiça a ser feita.

2. Cabe à Polícia Nacional respeitar e defender a Constituição e demais legislação em vigor, ao garantir a segurança do país e das populações, assim como dos seus direitos, com sentido de proporcionalidade.

3. O direito à manifestação é pleno. Qualquer acto de violência, além de ilegal, é condenável. Seja contra a manifestação, seja dos manifestantes contra a ordem pública.

4. Para os casos de manifestações convocadas por organizações sem personalidade jurídica, logo ilegais ou inexistentes, cabe às autoridades administrativas e judiciais dar o tratamento legal devido aos seus proponentes e sensibilizar a opinião pública. Não é a polícia que deve ser chamada a resolver o problema.

Como conclusão, Cafunfo deve ser dotado de personalidade político-administrativa, para que as forças policiais sejam dotadas de meios adequados à dimensão populacional e cumpram apenas com as suas tarefas constitucionais.

Para já, propõe-se o estabelecimento interino de um Grupo de Acção e Monitorização dos Direitos Humanos, incluindo representantes das comunidades locais, para o estabelecimento de um clima propício de liberdade e cidadania.”

 

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