Angola: Causa e efeitos da geração no poder

Na semana passada, ao passar uma breve pincelada sobre as duas gerações que, nos últimos quarenta e cinco anos, tatuaram o nosso corpo político, económico e social, tentei traçar uma incontornável – linha divisória entre ambas.

Fi-lo conferindo tonalidades diferentes ao comportamento de uma e de outra. Fi-lo consciente de que pastoreados, durante décadas, por uma visão atrofiada do poder, hoje já só restam os restos mortais do legado da antiga geração…

Fi-lo, distinguindo, por um lado, o comportamento da geração de causas, a geração forjada na luta de libertação nacional pela via armada e pela via clandestina.

Fi-lo, censurando, por outro lado, o comportamento de uma geração de casos e… efeitos, a geração fabricada, oleada, modelada e robotizada em série nas linhas de montagem da máquina governativa.

Herdeira de uma tradição de protestos protagonizados pelos movimentos culturais precursores da saga nacionalista que antecedeu a luta armada, a geração que hoje dirige o país, colocada diante da maior crise de afirmação do poder em Angola, é agora desafiada a olhar para o espelho com lentes desembaciadas para, como adverte o filósofo e ensaísta norte-americano Noam Chomsky, não “empurrar os ponteiros do relógio do apocalipse em direcção à meia noite”…

Esta geração anda a reboque de um líder que teve o mérito de ter proporcionado o refrescamento democrático da sociedade, mas integra um partido dividido onde nem toda a guarda na parada obedece às ordens do chefe e que, agora, está a patinar perante o espelho das suas próprias contradições.

Essa geração, que habita um partido que não é o mesmo que já foi há anos, tem de perceber que faz parte de uma agremiação que sofre actualmente dos efeitos da passividade de uma parte importante da sua elite pensante, que tendo sido determinante no passado na definição das suas grandes estratégias, hoje está remetida ao silêncio nas reuniões e assobia para o lado perante a crescente e perigosa erosão da sua identidade.

Essa geração tem de perceber que enfrenta um momento novo, que, perante um tempo que não espera, exige uma urgente, profunda e inadiável mudança da natureza do poder; que, se quiser um novo voto de confiança em 2022, não pode esperar pelo Congresso do MPLA em Dezembro de 2021 para traçar um novo rumo…

Essa geração, que também já foi rebelde, não pode continuar a agarrar-se às saias de um discurso ortodoxo e inundado de estereótipos para acusar os manifestantes de estarem a ser manipulados por forças ocultas, como se não sentissem as agruras da vida, não pensassem por si e não pudessem ser gente…

Essa geração tem de olhar para o passado e perceber que o aproveitamento político, em todas as épocas – e no exercício da arte o MPLA já foi mestre – constitui um apanágio de todos os movimentos oposicionistas, não devendo agora transformar isso num fantasma…

Essa geração não pode ser ingénua e ignorar que o aumento do desemprego, da fome e da miséria estão a alimentar uma combustão que não se esfuma partido-politizando-a e tapando o sol com a peneira…

Essa geração, em vez de se apresentar brutalizada, tem de ter capacidade de ouvir quem grita, porque quem grita, grita porque quer mais do que sobreviver; quem grita, grita porque desespera; quem grita, grita porque ainda tem esperança…

Essa geração não pode ter medo da liberdade e se carrega às costas um sistema policial montado para combater e reprimir a desordem social, não o foi, porém, para matar os desordeiros; se carrega às costas um sistema de informação montado para prevenir actos subversivos, não o foi, porém, para espiolhar a vida dos cidadãos através de escutas ilegais e nojentas dos seus telefonemas.

Essa geração tem de perceber que a população não é um saco de batatas e que a chave do poder deixou de estar na estridência da propaganda oca e imbecil para se fixar na capacidade de mobilização de massa cinzenta diferenciada e capaz de olear e pôr a máquina a funcionar colocando os homens certos nos lugares certos.

Essa geração tem de perceber que é chegada a hora de incorporar na superstrutura decisória do país as vozes independentes; coabitar com a dissensão sem ceder ao triunfo do ostracismo e rejeitar as correntes submissas e acéfalas.

Essa geração tem de perceber que a actual vaga de descontentamento é um sinal claro de que começa a chegar aos limites a paciência da “geração dos novos Luatys” nascidos em 2002 a qual, não se revendo nos partidos, constituirá a coluna vertebral do corpo eleitoral em 2022…

Essa geração não podendo subestimar o peso da Igreja Católica, tem de ter sempre em conta que esta sozinha mobiliza mais fiéis do que todos os partidos políticos juntos os seus militantes…

Essa geração, tem de perceber que, perante os excessos do poder, as promessas não cumpridas e os défices de governação, há uma nova geração que reivindica novos ritmos para a política e que não aceita reais ou dissimuladas tentativas de prolongamento da oligarquização do nosso anquilosado sistema de governação.

Essa geração tem de perceber que se não se abrir ao diálogo – como de forma simples e prática o fez o Governador do Cuando-Cubango, Júlio Bessa – um diálogo que não se limite a ouvir o Outro, mas a incorporar nos seus programas o que o Outro pensa e sente, arrisca-se a ser ela própria vítima das dramáticas desigualdades sociais que esmagam o Outro.

Essa geração, depois de instalada a crise social como consequência da crise económica, tem de se prevenir para evitar a implosão de uma crise política que, agora, convoca o surgimento de um pensamento melhor estruturado e o urgente refrescamento de actores que se reivindicam mais arejados, mais ousados e mais lúcidos.

Mas, afinal, que geração é essa que queremos?

Uma geração que, estando no poder há quarenta e cinco anos, saiba olhar para o passado sem fantasmas e, ao desenhar o futuro, tenha a honestidade intelectual de reconhecer as suas falhas e a hombridade política de pedir perdão pelo cometimento de enormes erros de governação.

Uma geração que sendo avessa a casos e verdadeiramente comprometida com causas, saiba apresentar-se como uma geração livre, culta, séria, responsável e solidária; uma geração, enfim, que saiba enobrecer o exercício dos poderes públicos.

Uma geração que, em tempo de profunda crise de valores e de cérebros, saiba apresentar soluções que libertem o Estado da sua pesada e castradora máquina burocrática.

Uma geração que saiba libertar o génio criador para articular soluções mais expeditas para os problemas prementes das comunidades, que – incompatíveis com a falência das tradicionais receitas burocráticas que gastando tempo, desbaratando dinheiro e desperdiçando energias já não se compadecem com o desespero da juventude.

Uma geração que não tenha complexo político em recuperar e relançar, sob novos moldes, um programa de inclusão social e de desenvolvimento da juventude desenhado em 2012, conferindo uma nova dinâmica e arquitectura ao diálogo com os jovens, sem ignorar que, já naquela altura, os seus principais problemas assentavam em três eixos: o desemprego, educação e a habitação.

Uma geração que, detendo direitos de protesto e de indignação públicos, tenha consciência de que não pode exercer esses direitos fora dos marcos civilizacionais e democráticos convencionalmente estabelecidos, sob pena de perder a credibilidade e o respeito dos cidadãos.

Uma geração que, reivindicando a mudança, saiba que não pode alicerçar essa pretensão numa estratégia de desordem pública, de arruaça ou de destruição de bens públicos, sob pena da população se virar contra si e de, perante a prática de crimes públicos, se sujeitar à mão pesada da justiça.

Uma geração que, ao advogar a busca de soluções multipolares para os problemas regionais, perceba que a era da unipolaridade para resolver os problemas domésticos está falida e que, por isso, também é chegado o momento de concluir que, aqui dentro, as suas equações só encontrarão eficácia e consensos na base da multipolaridade de opiniões.

Uma geração que, por isso mesmo, antes de bater palmas e de mergulhar numa onda de idolatria cega e irracional, é chamada agora a reflectir sobre as razões por que, depois de ter granjeado enorme capital no início do mandato, se assiste hoje a um preocupante declínio do capital do Presidente e ao envolvimento da sua figura em manifestações de zombaria nada edificantes…

Uma geração que é chamada agora a reflectir até que ponto o país não sairia a ganhar se o exercício dos vários poderes e sub-poderes não estivesse tão excessivamente concentrado no Presidente e, com isso, libertar-se-iam as instituições da falta de comunicação e das entropias que, ao longo de anos, vêm bloqueando o funcionamento do Estado.

Uma geração que fazendo parte do círculo restrito dos “homens do Presidente” tenha a coragem política e a honestidade intelectual suficiente para lhe apontar os erros, travar os impulsos e apontar os melhores caminhos para chegar ao destino sem temer o despedimento.

Uma geração que saiba que está ali não para fazer fretes ao Chefe, mas para prestar um serviço público que satisfaça os interesses da comunidade e contribua para uma boa governação.

Mas, se esta geração, pelo contrário, mantiver colado à lapela o mesmo “chip” do passado, persistindo numa navegação à vista, pode ter a certeza de que, mesmo sem rumo, para caçar votos em 2022, a oposição nem sequer precisará de abrir a boca.

GUSTAVO COSTA Jornalista

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