Durante algum tempo tenho estando a reflectir sobre o mistério em torno do «poder real» do Presidente José Eduardo dos Santos (JES), que ficou no poder durante (1979-2017) trinta e oito (38) anos consecutivos, numa época bastante difícil da Guerra-Fria e da Guerra-Civil, que só vinha terminar em 2002. No plano interno, o JES ergueu um «império oligárquico», composto por um núcleo interno de indivíduos, dominado por uma elite crioula, enraizada na etnia quimbundo, apoiando-se na nomenclatura partidária, inspirado pela doutrina marxista-leninista.
No plano externo, o JES foi apoiado fortemente pela União Soviética, Cuba e Países do Bloco do Leste. No final da Guerra-Fria (1990) que ficou marcada pelo desmoronamento do Império Soviético, JES virou-se para China e desenvolveu a diplomacia económica bastante activa para conquistar a simpatia das potências ocidentais, utilizando as companhias petrolíferas como grupos de pressão junto das Nações Unidas e das Organizações Internacionais. O seu alvo estratégico consistia no isolamento da UNITA e na destruição do seu poderio militar. Neste período derradeiro da Guerra-Civil Angolana Portugal transformou-se na placa giratória da diplomacia de Luanda e serviu como pipeline para a drenagem, em massa, do erário público angolano.
Para o melhor entendimento desta problemática, que envolveu a figura do JES, é importante olhar um pouco para as repercussões do desfecho da Guerra-Fria, que teve o impacto enorme sobre a Ordem Mundial e sobre a correlação de forças em Angola, onde incidiu a confrontação aberta entre o Bloco Soviético e o Bloco Ocidental através do MPLA e da UNITA, como forças internas em disputa. A decadência da economia da União Soviética obrigou o Líder Russo, Mikhail Gorbatchev, adotar a política da Perestroika e do Glasnost (1985-1991) como forma de abrir-se ao Ocidente para captar os investimentos estrangeiros com vista a restruturar a economia do seu País. A abertura do mercado soviético ao Ocidente criou uma dinâmica interna que conduziu ao desmembramento da Europa do Leste, que se integrou gradualmente na União Europeia.
Repare que, a economia soviética, altamente centralizada e planificada, sem ter o sector privado, criou custos elevadíssimos em termos da manutenção do grande império, das despesas militares avultadas, da expansão em África e, sobretudo, da corrida aos armamentos no espaço extra-atmosférico, mais conhecida por Guerra das Estrelas – IDS (Iniciativa de Defesa Estratégica). A Iniciativa de Defesa Estratégica, da guerra espacial, foi desenvolvida pelo Presidente Norte-americano Ronald Reagan durante os seus mandatos que iniciaram em 1981 e terminaram em1989. Este Programa Estratégico Espacial vinha ser retomada pelo Presidente George Walker Bush, de 2001 até 2009. Portanto, o factor económico desempenhou o papel fundamental no colapso da União Soviética, que sustentava o sistema comunista no mundo, sobretudo nos Países Africanos e da América Latina que eram praticamente Estados Satélites.
Logo, o declínio do Império Soviético obrigou o Bloco Socialista e seus Aliados acomodar-se junto do Ocidente e integrar-se no sistema capitalista sob a liderança dos Estados Unidos da América. Ou seja, a adopção do sistema capitalista, da economia do mercado, assente na democracia plural e representativa, não foi feita de livre vontade; mas sim, uma consequência imperativa do desfecho da Guerra-Fria. É neste contexto que deve-se fazer a leitura da realidade angolana durante aquele período de grande viragem que alterou completamente a configuração do mundo, pondo fim à bipolarização do nosso planeta entre duas esferas ideológicas: Capitalista e Socialista. É nesta altura que surge a Nova Ordem Mundial assente no multilateralismo, na democracia plural e na economia do mercado.
Nesta altura, os Estados Unidos da América desenvolveram uma ampla estratégia que consistia no seguinte: integrar a Europa do Leste na União Europeia no sentido de ampliar o espaço geográfico da OTAN; atingir a fronteira Leste da Rússia; controlar o Médio Oriente e o Norte da Africa; reforçar a sua presença marítima na Ásia; cooptar os antigos Aliados da União Soviética em África e na América Latina; controlar as vias marítimas em torno da África; isolar a Rússia e reduzir a sua influência no Mundo. Com o declínio do Imperio Soviético, os Estados Unidos da América não contava com a emergência súbita da China como segunda maior economia mundial, com a taxa elevada de crescimento e com capacidade enorme de competitividade, capaz de suplantar a supremacia norte-americana nos próximos tempos. Logo, o Factor-Chinês, como «contrapeso», criou o equilíbrio nas relações internacionais, que permitiu o surgimento das economias emergentes (BRICS), sob a liderança da China e da Rússia – como Potências Asiáticas.
Esta conjuntura mundial, do pós-guerra-fria, foi bem aproveitada pelo Presidente José Eduardo dos Santos na definição da sua estratégia diplomática. Ele percebeu nitidamente que era premente fazer manobras, isto é, alinhar-se com a China, ganhar a simpatia das companhias petrolíferas ocidentais; conquistar a simpatia das potências mundiais; erguer grupos de pressão junto das Nações Unidas com vista a isolar a UNITA, cortar as fontes logísticas e destruí-la militarmente. Na altura havia a convicção absoluta no seio da liderança do MPLA de que, a UNITA era apenas uma força militar e não tinha a estrutura política eficaz para sobreviver depois da derrota militar e da decapitação da sua liderança.
Todavia, a Jamba percebeu-se antecipadamente da evolução internacional e das manobras do Presidente José Eduardo dos Santos. Só que, a questão fundamental residia no seguinte: a UNITA, no final da Guerra-Fria, tinha poucas cartadas na sua mão para alterar efectivamente o quadro que se estava a desenhar-se em Washington, Nova Iorque, Bruxelas, Moscovo e Addis-Abeba. Por conseguinte: Neste processo havia a política de «linkage» entre diversos interesses estratégicos, nomeadamente: O factor estratégico do Golfo da Guiné; a necessidade de pôr fim ao sistema de apartheid na Africa do Sul; a independência da Namibia; a retirada das tropas cubanas e sul-africanas do território Angolano; os recursos minerais da região; as vias marítimas em torno da África; a expansão chinesa na África subsariana, etc.
Nesta equação, a UNITA era a «moeda-de-troca», o ponto mais vulneral, que os EUA detinha nas suas mãos para ser sacrificada. Na visão norte-americana, como seu princípio básico, «os aliados apenas servem enquanto durar os interesses americanos». Finda esta fase, a UNITA já não tinha peso na estratégia global de Washington, sobretudo na África subsariana. Porque, já tinha cumprido o seu papel de travar e neutralizar a expansão soviética no subcontinente. Por outro lado, havia alguns erros da avaliação estratégica, na Jamba, que pesou demasiado no xadrez diplomático, que exigia muita ponderação, flexibilidade, moderação, pragmatismo e realismo. O mais grave ainda foi o facto de que, a Jamba minimizou o impacto do petróleo sobre a Política Externa de Washington na Região do Golfo da Guiné.
Acima disso, reconheceu tardiamente a realidade de que, a Era da «bipolarização ideológica» já tinha-se chegado ao fim, e que, os factores económicos tinham mais peso na definição da Política Externa das Potências Ocidentais. Além disso, havia algumas incertezas de interpretação do impacto real da Perestroika sobre a Politica Externa das Potências Ocidentais e sobretudo da estratégia dos Estados Unidos em Angola. Logicamente, a expectativa da Jamba era de que, o colapso da União Soviética seria uma vantagem para a UNITA que era Aliado dos EUA e tinha sob seu controlo mais de 70% do território angolano. Esta percepção estratégica foi errada, porque a visão norte-americana incidia na isolação da Rússia e na cooptação dos seus aliados.
Por isso, em vez de priorizar alvos económicos, concentrar o esforço militar ao longo da costa atlântica, na faixa norte, para atingir a indústria petrolífera; infelizmente, a Jamba direcionou o seu aparato militar para o Planalto Central, como eixo principal. Isso criou a «divergência profunda» no seio da Direcção Política da UNITA, que causou o mal-estar que se verificou naquela altura. Porque, no fundo, as acçoes militares no Planalto Central não tiveram a expressão política e nem mexeu com o sector petrolífero que era a fonte principal de receitas do regime angolano. Logo, a Jamba ficou sem nenhum instrumento de pressão para contrariar o lobbying petrolífero ou obrigar as companhias petrolíferas acautelar os interesses da UNITA em Washington. Pelo contrário, essa visão estratégica da Jamba deu azo para que o Presidente José Eduardo dos Santos agir em plena liberdade, utilizando as companhias petrolíferas para conspirar a UNITA junto do Governo Americano.
Esta conjuntura internacional, acima referida, projetou a estratégia global do Presidente José Eduardo dos Santos, que fizera com que ele tivesse a faca e o queijo na mão para impor a sua vontade política quer no plano interno quer no plano externo. O ano de 2002 é tido como o ponto mais alto da grandeza do JES, em que ele iniciou erguer o «império oligárquico», todo-poderoso, rodeado por um pequeno grupo de indivíduos viciosos, egocêntricos, corruptos e insensíveis, que se instalou na Cidade Alta.
O ambiente de opulência extrema, caracterizada pelo culto de personalidade, pelo tráfico de influências, pela bajulação e pelo endeusamento, que se ergueu em torno do JES, conduziu-lhe ao estado omnipotente. Perdeu o ângulo da sua visão política, como patriota e nacionalista, que combateu o colonialismo português, com a arma na mão. O poder absoluto e a acumulação endivida da riqueza tornaram-se a causa exclusiva da superestrutura do Partido e do Governo. A verdade é que, em termos reais, nenhum estadista africano foi capaz de conquistar todas as potências mundiais; de influenciar o Conselho de Segurança das Nações Unidas; de domesticar as Instituições Financeiras de Bretton Woods; de manipular todo o sistema bancário mundial; de corromper quase todos os estadistas africanos; de manipular a opinião pública nacional e internacional; e de dominar a potência colonizadora – Portugal. Repare que, o JES foi capaz de domesticar todas as Igrejas em Angola, até ludibriar o bom senso da Santa Sé e criar uma ruptura no seio dos Prelados Católicos em Angola.
A outra face da moeda, que é o paradoxo da vida, este homem tão poderoso revelou-se ser a pessoa mais vulnerável e mais corrupta que facilmente foi manipulado e enganado pela sua própria entourage, que lhe isolou, fê-lo de marioneta, servindo os seus interesses pessoais. O JES foi conduzido ao Convento da Cidade Alta onde ficou enclaustrado, cercado por um muro de Berlim, entulhando-lhe muita informação falsa, vivendo em suspeição permanente, desconfiando de todos e de tudo, até da sua própria sombra. Com o andar do tempo uma boa parte das decisões importantes emanadas da Cidade Alta não eram do seu domínio absoluto. Ele tornou-se refém da sua ambição desmedida e da sua ingenuidade de depositar a confiança absoluta na sua filha mais querida, Isabel dos Santos, e no núcleo interno do poder, que manipulava tudo a seu livre arbítrio.
A ganância, a insensibilidade, a indiferença, a xenofilia excessiva e o egocentrismo ofuscaram a moralidade do poder, sem ter valores éticos que caracterizam a conduta humana, sendo a fonte de inspiração, de integridade e do amor ao próximo. O espirito patriótico, o coletivismo, o altruísmo e o bem comum, que inspiravam o socialismo proletário, desapareceram magicamente no meio de nevoeiro, diante o capitalismo selvagem que ficou formalmente consagrado como Doutrina do Estado Angolano. E que ainda, infelizmente, permanece inalterada.
Em síntese, a minha intenção de refletir-se sobre este tema controverso não é de enaltecer a figura do Presidente José Eduardo dos Santos, muito menos de denegrir a sua personalidade, como estadista e nacionalista da luta pela independência nacional. Mas sim, de chamar a atenção ao realismo político de reconhecer os factos concretos conforme eles são, sem que haja o sofisma. Queira ou não, o JES é uma figura incontornável da História recente de Angola, e ele deixou um legado político que é difícil de apagar facilmente; sobretudo, enquanto o status quo actual permanecer intacto, no qual o poder político continuar sob alçada do Partido Político que ele ergueu minuciosamente durante 38 anos consecutivos.
Pois, a elite política no poder, que hoje governa o país, foi forjada por ele, na fase mais crítica da História do País. A doutrina filosófica do Estado, da acumulação primitiva da riqueza, que trouxe uma classe capitalista bem endinheirada, que sustenta o partido no poder, foi erguida por ele, em detrimento da população que hoje vive na penúria, na fome e na pobreza extrema. Esta classe capitalista poderosa controla todos os meios de produção, privatizou o Estado e ocupou vastas terras comunitárias em todo o país, transformando-se em latifundiários – Senhores de Terras. E, as Luandas, da Região Leste de Angola, é o exemplo ilustrativo do sistema feudal, dominado por uma aristocracia corrupta, composta por uma elite da nomenclatura partidária, de governantes, de generais e de comandantes da polícia nacional, que se enriqueceram ilicitamente dos diamantes. Enquanto a população local vive na indigência e na opressão, confinada em pequenas aldeias, sem onde cultivar e promover o seu bem-estar social.
Por ironia, os que apontam o dedo acusador ao JES foram os indivíduos mais privilegiados, que andavam sempre na esfera do poder, fazendo batuques da veneração e do endeusamento. É o oportunismo político da pior espécie, que lança a cortina de fumo, distraindo a atenção da juventude e da população mais desfavorecida, vítimas da corrupção e da desgovernação endémica. Não há vontade política de alterar tudo; há sim, a vontade política bem clara de consolidar o regime autoritário, assente na exclusão, na hegemonia, no elitismo, na burguesia nacional, na intolerância política e na corrupção institucionalizada e partidarizada.
Logo, a Historia dirá de quem foi JES? Um soberano frio, astuto, hábil e todo-poderoso, que fizera uma gestão delicada do conflito armado que durou mais de quatro décadas. Mas também, não é menos verdade de que, JES será julgado pela História pelo seu delírio do poder, pelo sectarismo austero e pela corrupção sistémica que mergulhou o país na desgraça e na pobreza extrema. Não houve a vontade política expressa de criar o equilíbrio político no país para uma reconciliação real, genuína, global, inclusiva e digna. Nem esta vontade política existe hoje.
Enfim, o Presidente José Eduardo dos Santos deixou o país dilacerado, dividido entre os ricos e os pobres; entre os donos e os súbditos; e entre os patrícios e os plebes. Esta é a realidade inequívoca que prevalece até hoje, que constitui um grande desafio que o país há-de-enfrentar nas próximas décadas – de incerteza profunda. Não se pode tapar o sol com a peneira. Nem se pode fazer justiça com a injustiça. Atirando-se sobre os mais fracos, porque o seu poder é esmagador. É o abuso do Poder! É a Tirania.
Luanda, 09 de Fevereiro de 2021.