Angola: Pensar (o) País 45 anos depois

“E, no entanto, ela move-se.” Galilei Galilei

As músicas, muitas, reflectem um tempo, um espaço, memórias colectivas e pessoais, anatomias de vozes e instrumentos cujas cadências fazem (res)soar as partituras de um país, de uma nação, de um povo. Assim (também) “nasceu” Angola, numa partitura dissonante que o coro de milhões com uma orquestra capitaneada por emoções ao rubro, cantando a uma só voz, a independência do país, não conseguiu disfaçar, e muito menos apagar, as diferentes toadas e desafinações.

Assim é que se revisitarmos algumas das músicas que fazem parte do nosso cancioneiro, verificamos que elas não só fazem parte da nossa história, marcaram épocas, as nossas vidas, entre alegrias e desditas, como também nos fizeram e fazem parar, para pensar. Veja-se o caso de uma música do grande mestre do semba, Carlos Burity. Apesar de à pergunta “se hoje era mais fácil cantar a realidade de Angola” (entrevista republicada a 12.08.2020 na Nova Gazeta, por altura do seu desaparecimento físico) ter respondido que “como cantor tens de te situar, não te podes insurgir.

Podes cair no descrédito. Se queres realmente singrar como músico, tens que saber situar-te na sociedade”, Carlos Burity cantou a realidade socio-política de Angola com a canção “zé da graxa”, proibida quando saiu (ainda segundo o cantor na mesma entrevista) – aos mais novos que a não conhecem, recomendo que a oiçam.

Quererá isso dizer que, para o cantor, terá sido mais fácil criticar as condições sociais e políticas do passado colonial, do que fazê-lo depois da independência. E compreende-se. Compreende-se porque enquanto o período anterior à independência era, indubitavelmente, para ser rechaçado, o pós-independência deixou-nos comprometidos com a necessidade, se não a imposição, de intransigentemente defendermos tudo quanto o (novo) poder instituído estruturou, organizou, definiu como caminho a seguir.

Não que isso passasse pelas cabeças dos revolucionários de então (e eram todos, de uma ou de outra forma!), mas defender, criticar o contrário, ou admitir a existência de coisas boas do passado (colonial) podia ser interpretado como um regresso ao passado.

De forma inconsciente, sentiam os “finalmente livres” (poder) ser um crime de lesa pátria, no pósindependência, a crítica ao sistema, dir-se-ia uma traição se se ousasse pensar, contrariar o establishment – certamente a psicologia e também a ciência política terão explicações para o fenómeno.

As mentes foram e estavam estruturadas, organizadas para acolher um tempo novo que fosse, no mínimo, se não em tudo, oposto ao anterior. As mentes e os espíritos estavam, por conseguinte, talhados para a oposição a tudo quanto contrariasse o status quo entretanto estabelecido – os mais novos, entre adolescentes e jovens, aprenderam a “gostar” de estar na bicha (agora fila) para receber uma lata de leite, 1 de óleo e, com o andar do tempo, a normalizar a falta de água, de energia, de carteiras nas salas de aula (entretanto substituídas por latas de leite), a falta de quase tudo, a conviver com a carência. A privação deixou de assim ser entendida, e passou a ser reconhecida antes como provação – afinal, estávamos em guerra.

Eis que, 45 anos depois, verificamos que para além de desconhecermos a nossa história, inclusivé a dos últimos 45 anos (que urge desbravar ouvindo, recolhendo, [re]escrevendo a partir de diferentes fontes), que afinal a história não é somente a do mpla; que 45 anos depois, reconhecida a mobilidade social que o 11 de Novembro promoveu, é mais do que claro e evidente que as assimetrias continuam a fazer parte do quotiano das gentes. 45 anos depois, constatamos que o mpla anda distraído (ou ultrapassado?) por não ter e estar a conseguir acompanhar e interpretar os ventos da história; que depois de normalizada a corrupção, o compadrio, a impunidade, acomodadas as gentes, as resistências às mudanças se manifestem.

É natural. 45 anos depois, natural é que o quotidiano das gentes esteja inquinado pela inacção. 45 anos depois, natural é que vozes desassombradas se levantem. Mas, 45 anos depois, não é hora de carpir as mágoas, apesar do regresso do “zé da graxa”. Importa, sim, perceber porquê, quais as razões para o regresso do “zé da graxa” e outras mais razões para o agigantar da pobreza. 45 anos depois, precisamos, é urgente, é imperioso pensarmos (o) país!

E pensar (o) país é pensar grande. É perceber que o país não é o mesmo de há 45 anos, e não é o mesmo de há 3 anos. Pensar (o) país é ter presente o ressentimento que povoa muitos dos nossos concidadãos, que o mesmo é real, que o final de uma reportagem da SIC (tv portuguesa), há cerca de 20 anos, deu conta, com a fala de um adolescente.

Pensar (o) país é ter presente a pobreza, o desemprego, mas também a massa crítica que em crescendo vinha, e vem, há já algum tempo, mostrando que existe. Pensar (o) país é despirmo-nos das vestes ideológicas de ontem, é “desconformar-nos”, é saber interpretar os ventos da mudança e agir em conformidade.

Pensar (o) país não é dramatizar mas sim, 45 anos depois, fazer o balanço do feito e do que ficou por fazer e pespectivar, sem sofismas, um futuro que se constrói hoje. Pensar (o) país é programar, estabelecer e definir planos, estratégias, metas. Pensar (o) país é ter ambição.

A ambição de, no colecivo, criar um país, a Angola ontem sonhada e que hoje precisa de cuidados intensivos. Pensar (o) país não é dizer o que se quer ouvir, mas o que se precisa de ouvir e o que precisa de ser dito. Pensar (o) país é priorizar a ciência (estudar, problematizar, compreender, prever, antecipar, gizar, rever, recuar, actualizar…) e não as ideologias, a competência e não a militância partidária.

Pensar (o) país é ter em atenção que a governação tem que ser dirigida para os angolanos e não (somente) para o FMI e potenciais investidores, é considerar as vozes singulares que o país já mostrou ter, é promover outras tantas singularidades acantonadas, adormecidas.

Passando do registo do interessante e entusiasmante de anteriores crónicas para este da preocupação de um país que tinha e tem tudo para dar certo, de um PR e de um governo que até parece(m) estar a (querer) fazer alguma coisa mas que tem, contra si, ele próprio. Sim, é o governo e o partido do governo que parecem estar completamente perdidos, que se estão a sabotar, que estão com dificuldades em reconhecer que ”no entanto, ela move-se”.

ELISABETE CEITA VERA CRUZ

Professora e Investigadora

OPAIS

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