Entre 1642 e 1651, Inglaterra viveu uma violenta guerra civil, que levou até à execução do rei Carlos I em 1649, e fez com que o famoso filósofo Thomas Hobbes escrevesse que a vida não é mais do que um medo contínuo da morte violenta; além de ser pobre, desagradável, brutal e curta.
Depois destes eventos catastróficos, o sistema político inglês foi-se adaptando e, sobretudo a partir da chamada Revolução Gloriosa, em 1688, pautou-se por uma evolução feita a partir da reforma dialogante, e não a partir de guerras ou revoluções. Não quer isto dizer que tudo tenha sido pacífico desde 1688 em Inglaterra, mas sempre se foram encontrado possibilidades de reforma das instituições, das pessoas e dos sistemas político e económico. Foi dada preponderância à negociação e a mecanismos políticos e de diálogo, mesmo que em confronto, evitando rupturas violentas.
Assim, o Reino Unido criou um sistema político que se tornou um dos exemplos para o mundo da boa governação e da abertura reformista. Não foram necessárias revoluções ou confrontos violentos para alcançar mudanças: bastou a abertura política, o diálogo e a disputa viva e livre de ideias.
Mais recentemente, Espanha conheceu uma violentíssima e sanguinária guerra civil, entre 1936 e 1939. O país foi literalmente dividido ao meio entre franquistas (apoiantes do general Franco) e republicanos, e os espanhóis mataram-se com intensidade apavorante.
Franco, ditador de direita, católico e monárquico, inspirado pelo fascismo de Mussolini, que adaptou às condições espanholas, ganhou a guerra e governou o país até 1975, escolhendo como seu sucessor aquele que veio a ser o rei Juan Carlos I.
Ora, após a morte de Franco, o rei Juan Carlos I e Adolfo Suarez, líder do partido no poder (uma espécie de MPLA espanhol, na altura) engendraram uma transição pacífica para a democracia, que culminou na aprovação da Constituição democrática espanhola de 1978, que ainda hoje vigora. Dois supostos franquistas foram os responsáveis pelo encerramento do franquismo. E assim se fez uma bonita transição da ditadura para a democracia e o progresso económico e social.
Suarez iniciou o processo de transição com uns belos versos do poeta espanhol António Machado: “Está el hoy abierto / al mañana. Mañana, al infinito. / Hombres de España, ni el pasado ha muerto, / ni está el mañana en el ayer escrito.” (“Está o hoje aberto / para amanhã. Amanhã para o infinito. / Homens de Espanha, nem o passado está morto, / nem está o amanhã escrito no ontem.”)
As mesmas palavras podem ser adoptadas agora em Angola. O hoje está aberto para o amanhã infinito, e não tem de ser igual ao passado!
Angola foi mal governada política e economicamente, pelo menos, desde 2002. Se dúvidas existissem, basta ver e pensar bem nas reportagens que são transmitidas pela TPA, denominadas “O Banquete”, que no fundo repetem muito daquilo que se escreveu ao longo dos anos no Maka Angola.
A imensa riqueza irrepetível do petróleo foi usurpada e açambarcada por um pequeno núcleo de pessoas que orbitavam à volta do presidente José Eduardo dos Santos, enquanto a população foi condenada à pobreza persistente e permanente.
Obviamente que uma transição é necessária. O sistema político-económico que regeu Angola nos últimos 18 anos, desde o fim da guerra civil, tem de terminar e ser substituído por outro que finalmente traga bem-estar e liberdade para o povo.
Não há dúvidas de que o presidente João Lourenço está a tentar encetar essa mudança, apesar dos vários escolhos. Uma mudança sempre difícil, porque tem de ser feita por dentro, como a que Juan Carlos e Adolfo Suarez tentaram fazer em Espanha, e ainda mais desafiadora, porque decorre num contexto de grande crise económica.
Importa salientar que tal mudança tem de ser feita com o povo e em diálogo entre as várias forças. Se cada um se extremar na sua posição, então não haverá mudança, mas sim repressão e violência, que não se sabe onde terminam. Ninguém quer mais guerra e mortes.
O célebre encontro com a juventude foi um acto positivo no sentido dessa mudança em diálogo. Não foi perfeito, mas foi simbólico. O activista Mbanza Hamza acabou por se tornar um símbolo. Ainda há poucos anos, o presidente da República de Angola mandou prendê-lo, e hoje um outro presidente dá-lhe o microfone para ouvir as suas críticas.
É evidente que muitos dirão que este encontro só surgiu devido à repressão inaceitável nas manifestações anteriores, ou afirmarão que nada de palpável vai sair daqui. A primeira parte é verdade, a segunda não sabemos. Mas sabemos que foi criado o embrião de um mecanismo de diálogo entre a sociedade civil e o poder político, e esse instrumento é fundamental para quem queira abandonar o confronto estéril e garantir que uma verdadeira transição tem finalmente lugar.
Não nos parece que alguém deseje voltar ao passado, a um sistema oligárquico de rapinanço do património do Estado e de exercício do poder absoluto. E, se não se quer voltar ao passado, então é preciso, pragmaticamente, no presente, construir as alternativas possíveis e caminhar rumo a um futuro diferente em paz e concórdia.