Luto e lágrimas na manifestação de 24 de Outubro

O dia 24 de Outubro do corrente ano entra nos anais da história dos protestos de Luanda pelas causas que todos nós sabemos e, se ainda não sábias, passarei a mencionar: morte, torturas, disparos à queima-roupa, uso abusivo de armas de fogo, violências, lançamento de gás lacrimogéneo, choques eléctricos, destruição de e queimada de motorizadas da Polícia, queimada de pneus na vida pública e muitos outros factos que nem sempre conseguimos descrevê-los por completo.

O jornalismo é uma profissão que tem a responsabilidade de acompanhar todos os fenómenos sociais do País. Enquanto jornalista e cidadão preocupado com o modo como o país está a caminhar, fiz o meu papel de aparecer e realizar a constatação de como os manifestantes seriam tratados pela Polícia Nacional, de Eugénio Laborinho e João Lourenço! Fiz vídeos directos a partir do 1° de Maio, numa altura em que centenas de manifestantes já estavam a ser brutalmente espancados na zona do Congolenses, onde a corporação fez um grande cordão para travar o acesso dos contestatários ao largo da independência.
Mais de uma década de profissão na área jornalística faz qualquer profissional compreender que viver num país injusto e com elevados índices de violação dos direitos humanos, sendo o mesmo que viver numa tirania com uma fingida Constituição da República que sustenta sermos: “… um país democrático e de direito”.

Para compreender bem como as coisas funcionam, sugiro recuar um pouco no tempo.

Estávamos no ano 2003, altura em que participei pela primeira vez de uma manifestação pacífica. Eu não era ainda jornalista! Era um cidadão, que acompanhou os protestos do único partido político que estava na linha da frente dos principais movimentos contestatários. Foi o partido de Carlos Leitão e Marinho Capelo (PADEPA), que com as suas bravuras e discursos elaborados mobilizaram centenas de jovens revolucionários, transformando-se num partido que influenciou o surgimento dos actuais cenários e meandros das manifestações em Angola.

Os sangues derramados, as torturas e as detenções arbitrárias foram tantos que aumentavam a popularidade dos protestos do PADEPA, em Angola e no exterior. Mas não me recordo de ter havido uma queimada de pneus e morte de manifestante ou políticos deste movimentos de reivindicações públicas.

Muitos músicos revolucionários também estavam na linha da frente a apoiar estes protestos, o que deu origem a colocarem o Carlos Leitão, Nfulumpinga Lando Victor e tantos outros defensores dos direitos humanos nalgumas das suas canções de mobilização social.

Cansados de cantar e mobilizar a sociedade através da música, distribuição de folhetos, vários artistas decidiram entrar na linha da frente dos protestos de Luanda. Assim foi com o José Gomes Hata, Hitler Samussuku, MC-K, Brigadeiro Mata Frakus, Capitão F, Demolidor e tantos outros que não surgiram na minha memória no momento em que escrevia o artigo. Outros são os intelectuais e académicos que também não queriam mais ficar limitados às mobilizações na sala de aula, como é o caso de Domingos da Cruz, Nuno Álvaro Dala, Fernando Macedo, Filomeno Vieira Lopes, António Ventura, só para citar alguns.

Hoje, os que aparecem nas manifestações são jovens desempregados, estudantes do ensino médio e universitários, enfermeiros, médicos, taxistas, lotadores de táxi, zungueiras e outros angolanos descontentes com o sistema de governação de mais de quatro décadas do partido no poder, o MPLA.

No dia 24 de Outubro, por sinal, desloquei-me ao centro da cidade para a cobertura da manifestação anunciada pelos jovens angolanos da minha faixa etária, lúcidos, sofredores e muitos dos quais também no top do desemprego. Outros com trabalhos, mas entendem que são vulneráveis devido a ausência do bem-estar social.

Estar no 1° de Maio foi uma tortura, pois aquela que é considerada Praça Pública, se tornou tão privada porque o número de militares que circulava por aquele local para impedir a presença de manifestantes, era elevado. Lá haviam Polícias de todas as especialidades! Até militares nos carros da Polícia Nacional! Foi como muitos estavam a perceber a partir de casa!

Mantive uma conversa com as pessoas que circulavam pela cidade para saber o que elas entendiam sobre o dia 24. Mas um dos jovens estudante universitário da Universidade Jean Piaget, que não citarei o nome, recebeu uma ligação da sua irmã que alertava para sair da zona dos Congoleses porque apercebeu-se de que no mesmo local havia guerra.

Completamente suado, assustado e desconfiado, tive de exibir o meu passe para deixar aquele jovem mais tranquilo porque revelou-nos que no meio do grupo dos manifestantes haviam vários infiltrados e, um dos que estava trajado com roupa normal, acabou por largar gás lacrimogéneo no meio dos manifestantes que estavam em protestos. Até ao momento, tivemos acesso da informação da morte da jovem Marcelina, assassinada durante a manifestação de sábado último, conforme informações de responsáveis dos protestos. Os feridos são tantos que ainda não conseguimos obter um número exacto. Mas as detenções, segundo relatos de manifestantes, são contabilizados 104 participantes devidamente identificados.

Dentre as imagens que estão a circular pelo mundo temos a do activista e membro dos 15+Duas, Benedito Jeremias, que foi brutalmente espancado ao ponto de perder os sentidos. Ficou estatelado no chão sem forças para se levantar!

Mas muitos também haviam tomado conhecimento da marcha, pelo noticiário parcial da Rádio Nacional de Angola de sexta-feira, 23, onde um jovem que se apresentou com membro de uma organização da sociedade civil alertava para ninguém aderir à manifestação porque, segundo o mesmo, “os responsáveis não deram rostos e apenas anunciaram pelas redes sociais”. É tudo mentira bem montada que os órgãos de comunicação e os mesmos estão a ser ameaçados por internautas que entendem que os mesmos foram financiados para alimentar polémicas e atrair atenção com publicações difamatórias para reduzir o impacto das manifestações, criando assim associações descabidas de haver participação de partidos políticos.

Os promotores da marcha são jovens activistas, académicos, professores universitários e demais cidadãos devidamente identificados que perceberam que deve haver uma resposta prática dos problemas sociais que os angolanos estão a enfrentar.

Das várias manifestações que fiz a cobertura jornalística, esta foi a mais intensa e com mais disparos de arma de fogo. Mas também foi a que mais resposta houve da parte dos manifestantes com queimas de pneus, movimentação de contentores, barramento da via pública, panfletos e folhetos bem escritos, participação de estudantes, zungueiras, taxistas, motoqueiros e várias individualidades que sempre fizeram parte dos principais protestos já realizados no País.

A lição que sai deste protesto é que o número de cidadãos que estão a compreender os modelos de exigir os seus direitos tem estado a aumentar. E a repressão policial tem estado a se transformar num combustível de saturação para mais pessoas se juntarem de forma solidárias aos protestos.

Jornalista, antigo editor do Semanário Agora, CEO e Fundador do Portal de Notícias Culturais Marimba Selutu, colaborador do Portal de Notícias Por dentro da África, Autor, Palestrante, Formado em Psicologia e Membro Fundador da Associação Científica de Angola.

 

Fernando Guelengue
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