Manifestantes detidos pela polícia são acusados de desobedecerem decreto que proíbe aglomerações de mais de cinco pessoas na via pública. No entanto, impedimento legal à realização de protestos em Angola é questionável.
O protesto de sábado (24.10) em Luanda ocorreu no dia em que entrou em vigor a nova legislação que impede ajuntamentos de mais de cinco pessoas em espaços públicos em Angola por causa da pandemia de Covid-19.
Mesmo assim, não há impedimento legal e constitucional que impeça a realização de manifestações durante a pandemia. É o que afirma o jurista angolano Manuel Pinheiro em declarações à DW África.
“Não sendo a situação da pandemia enquadrada nas três situações constantes no ordenamento jurídico angolano – designadamente o estado de necessidade constitucional, o estado de guerra, o estado de sítio e o estado de exceção – não há qualquer obstáculo legal à realização de manifestações”, avalia o jurista.
Para além dos requisitos constitucionais e legais para a realização de protestos de rua, o jurista aponta outro elemento que deve ser observado em tempo de pandemia da Covid-19: “O que se impõe é o cumprimento das medidas de biossegurança, que, no fundo, são indicações permanentes para o seu cumprimento”.
Os manifestantes detidos pela polícia são acusados de desobedecerem ao decreto presidencial, que proíbe ajuntamentos de mais de cinco pessoas na via pública. Alguns manifestantes são também acusados de ofensas corporais.
“Foi simplesmente deplorável”
Reagindo aos incidentes de sábado, a governadora de Luanda, Joana Lina, disse que as medidas impostas pelo decreto visam proteger vidas. Lina considera que as manifestações estão previstas na Constituição e na lei, assim como carta angolana exige ponderação entre liberdade de manifestar-se e dever de proteger a vida humana.
“O que nós assistimos foi simplesmente deplorável. Não é normal. Nunca devia ter se chegado a esse ponto”, classifica a governadora de Luanda.
Os pronunciamentos da governante foram alvo de críticas durante a semana. O jurista Manuel Pinheiro reitera que o decreto presidencial sobre o estado de calamidade não pode limitar direitos fundamentais como, por exemplo, a manifestação.
Luanda: “Governo assassino, acaba de me matar”
Segundo Pinheiro, a interpretação de Joana Lina não deveria vincular o Estado. “Penso que é uma opinião pessoal que, de per si, não pode engajar o Estado angolano, uma vez que o Estado angolano conduz-se pela Constituição e pela lei”, salienta.
Mortes alegadas ou escondidas?
Segundo os organizadores dos protestos, duas pessoas morreram e mais de 50 ficaram feridas durante a ação de repressão policial. Para o analista Ilídio Manuel, ficou claro que o Executivo tinha a intenção de impedir a realização da manifestação.
“Se houvesse mesmo vontade que a manifestação se realizasse, eles deviam ser educados no sentido de se agrupar em grupos de cinco pessoas, como o próprio decreto determina. Seria uma forma, já que havia esse receio de que viriam a ser contaminados”, lembra Manuel.
Para o analista, a probabilidade de contágio entre os manifestantes nas celas pode ser ainda maior e a detenção seria um contrassenso “porque eles [os manifestantes] poderiam ser identificados e soltos sob termo de identidade e residência”.
Polícia é acusada de excessos
Líderes políticos, religiosos e jovens têm ido até ao Palácio Presidencial para falar sobre o momento que o país vive com o chefe de Estado, João Lourenço. Na segunda-feira (26.10), o ex-presidente da UNITA, Isaías Samakuva, foi até à Cidade Alta. Na terça-feira, deslocaram-se Isaías Kalunga, presidente do Conselho Nacional da Juventude, e o arcebispo de Luanda, Dom Filomeno Vieira Dias, que apelou à unidade entre políticos e sociedade civil.
O analista político Ilídio Manuel entende que é preciso dialogar urgentemente com os manifestantes. “Nada me garante que, daqui a mais algum tempo, não teremos novamente jovens nas ruas, porque procura-se combater os efeitos e não a causa. É necessário sentar-se com os jovens, alinhar estratégias e saber ouvi-los”, sugere.
Nas ruas de Luanda, cidadãos apontam para a discrepância entre o que está previsto no decreto que vigora desde sábado e a realidade na capital angolana.
Enquanto o decreto prevê apenas um aglomerado de até cinco pessoas na via pública, as paragens de táxi e transportes públicos, bem como as igrejas estão cheias. “Este diploma não acautelou devidamente as circunstâncias em que se estava a legislar,” comenta Manuel Pinheiro.