O Estado Estuprador de direitos na República de Angola

Manifestante presente na manifestação contra o governo em Luanda,  24 de Outubro 2020

 “… Presidente da República Senhor João Lourenço, o aviso está a vir do programa 3600, por via da Camunda News. Pode mandar o Eugênio Laborinho teu ministro do interior. Pode mandar o Fernando Miala, ministro do SENSE (Serviços de Inteligência e Segurança do Estado). Pode mandar o Paulo de Almeida, que é comandante da policia nacional,  os peitos estão aqui manos (bateu na mesa como motivo de indignação ao sucedido no ato de manifestação, duais pessoas mortas e 103 pessoas detidas pela policia nacional), estamos fartos disto meu, fartos wei1, nos olhávamos para ti como a esperança desse povo, hoje morreu dois irmãos nossos, dois jovens, jovens desgraçados  e miseráveis…”

Nelson Adelino Dembo, Gangsta Ativista Social, 24 de outubro de 2020.

 

A enunciação feita acima por um daqueles que do ponto de vista de muitos jovens  angolanos que residem dentro e fora de Angola, desde acadêmicos perpassando por outros grupos como as nossas mamãs zungueiras2, artistas, músicos,  se tornara um símbolo de inspiração.  Em conjunto com outros ativistas sociais: Isidro Fortunato, Herlander  Napoleão e Jerónimo Nsisa, estes  jovens são considerados símbolos de resistência e resiliência face ao poder opressor instalado em Angola. Por causa das suas intervenções incisivas, articuladas e bastante sistematizada e com um prognóstico sobre o estado socioeconômico, político e cultural, muito mais apurada em grande medida  do que vários pseudointeletuais do país,  com uma linguagem fácil de se entender, demonstra de alguma  forma a insatisfação da situação do estado deplorável em que se encontra o país e da atuação dos órgãos que seriam o garante da segurança dos cidadãos  dentro de um país que se quererá chamar de “democrático”, mas que sistematicamente estupram os direitos de exercício da cidadania reiteradamente no caso o ato de manifestação.

A violação do exercício de cidadania em Angola é uma prática  recorrente do governo angolano, sob a égide do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Neste artigo de opinião trago algumas reflexões a respeito das últimas manifestações ocorridas em todo território nacional, mas focalizando a manifestação do dia 24 de Outubro de 2020. Essas reflexões são resultados das várias análises realizadas em diferentes órgãos de comunicação social (controladas pelo estado) e canais do youtube com grande alcance e influência em Angola.

O dia 24 de outubro de 2020, foi um dia de consternação e o ápice de um descontentamento por parte do povo Angolano, encabeçados por Jovens da sociedade civil organizada, na sua maioria sem nenhuma filiação partidária. O protesto foi realizado contra a má governação em Angola, tendo como o Movimento Popular de Libertação de Angola  (MPLA) que de popular e libertação só ficou mesmo os nomes, por que na prática está cada vez mais distante de fazer face aos reais anseios da população na atualidade e em especial aos jovens desta nação sofrida e que constantemente  é humilhada por parte daqueles que o  governam.

Lembro-me das conversas com os  meus amigos Nigerianos, Camaroneses  e da Guiné Conacri, no dia 26 de outubro 2020, dando força e partilhando os incentivos, dizendo que estamos com os nossos irmãos e irmãs Angolanos, me apercebendo que é um movimento de jovens que buscam mudanças e que vislumbram novos anseios,  existem aproximações e distanciamentos nas reivindicações  de um país para o outro, mas o desejo e busca de melhorias de suas vidas  é o denominador  comum e que nos uni mais ainda em pró desta empreitada.

Se de um lado existia jovens angolanos de outros países  africanos que estavam satisfeitos com o despertar da população que manifestava contra a má governação do MPLA, do outro lado as tínhamos os órgãos de informação que nada teciam narrativas que visavam desprestigiar a luta dos jovens.

Entender as narrativas dos órgãos oficias de informação  (Televisão Pública de Angola -TPA, TV Zimbo, Rádio Nacional de Angola etc.) e todos os seus pretensiosismos  e intencionalidades  não é uma tarefa fácil, pois  o público-alvo é uma população com índices de analfabetismo  e analfabetismo funcional  são elevadíssimos . Neste caso, quem possui o controlo da mesma acaba tendo uma influência sobremaneira no curso e procedência  dos acontecimentos e principalmente os atos que vão contra os interesses do partido-estado.  Apoiando-me em Foucault, ele vai dizer que:  a análise de discurso seria os modos como, no interior dos discursos, um objeto é produzido a partir das práticas relacionadas aos seus modos/possibilidades de enunciação (KROETZ, SOUSA, FERRARO 2017, p. 177), ou seja, se  eu tenho ao meu controlo os modos e possibilidades  de enunciação eu possuo também em grandes  proporções a capacidade de manipular as coisas ao meu favor.

Como dizia Albano Mendes3 em um dialogo ameno:

“… Sabe antes de militantes de um partido, somos angolanos e como angolanos, as pautas lançadas na manifestação envolve a situação de todos os jovens angolanos não apenas do partido A ou B ou C. A juventude em idade ativa,  na sua maioria está desempregada as políticas públicas não funcionam para todos. A má gestão afeta todos angolanos. Essa coisa de partidarizar tudo e não admitir os erros é que faz o país não andar. Precisamos admitir os erros para pensarmos em possibilidades de soluções mais eficazes. O tempo de chuva está se aproximando vamos ver notícia sobre as enchentes em Luanda, o preço da alimentação está extremamente alto. As escolas estão sem água canalizada. Teve a notícia que a Universidade Agostinho Neto não começou às aulas por causa de falta de energia. Esses problemas envolvem todos angolanos. E sinceramente somos adultos o suficiente para analisar e saber que isso é um golpe baixo culpar a UNITA pelos jovens sair para manifestar insatisfação. E como militantes de um partido-estado é bom que sejamos verdadeiros…”

Esta passagem é o retrato do atual cenário político e social do país. O governo não admite seus fracassos que resultam em desigualdade sociais que desencadearam as  manifestações popular. Eles atribuem a responsabilidade e culpa ao partido da oposição (UNITA) e, para o governo, a UNITA  foi o galvanizador me pleno estado de crise sanitária. Em nenhum momento o governo admitiu seu fracasso.

Em 2017 realizou-se eleições presidências e foi eleito João Gonçalves Lourenço Como presidente, após longos 38 anos de governação de José Eduardo dos Santos. A eleição de um novo presidente da república, representou  o vislumbrar de novos olhares, diferentes maneiras  de ser e estar Imbuídos pela  esperança de viver um futuro próximo melhor. Foi-lhe dado o beneficio da dúvida, porque ele pertence no mesmo partido político do homem que durante mais de 30 anos guiou ou desviou (deixo ao vosso critério a palavra certa, ou seja depende do que vocês preferirem chamar) os destinos desta nação rica do ponto de vista dos recursos naturais, mas com a maioria da população paupérrima.

As palavras do Jovem  ativista Manuel Chivonde Baptista Nito Alves, mais conhecido por Nito Alves,  ainda ecoam na minha cabeça que dizia “Estamos sendo tratados como animais irracionais, estamos a dormir no chão de betão, não temos água para tomar banho, não temos alimentação, nem nos campos de concentração nazista as pessoas eram tratados desses jeito”  claro, guardadas as devidas proporções , sobre a dimensão desumana com que estão sendo tratados os jovens detidos por se manifestar e demonstrarem o seu desagrado a atual situação socioeconômica do país e principalmente contra o discurso do atual Presidente  João Gonçalves Lourenço que prometera 500 mil empregos e que em três anos de governação nem um quinto desta cifra foi alcançada. Para além das duais mortes nomeadamente o jovem conhecido por  Mamã África e Marcelina Joaquim, e 103 detidos dentre as quais se tem vários relatos da existência de números consideráveis  de menores  de idade como o caso da menina de 17 anos de idade de nome Alexandra de Viana.

Foto: Print feita pelo autor.

Segundo uma conferência de impressa apresentadas pelo Ativista social José Hata, ainda faltam por  identificar mais de 387 cidadãos que se encontram desaparecidos.  A violação sistemática  dos direitos humanos (ou como eu estou chamando de estupro dos direitos  humanos) em angola não é algo novo ela se constitui e é constituinte  do estado e é uma das formas  de modus operandi  do partido no poder desde a independência do país. Vários outros acontecimentos perpetrados pelo maior  partido representado na assembleia nacional , tais como sexta feira sangrenta e o 27 de maio, só para citar aqui alguns.

Jerónimo (2013) vai dizer que a pobreza e acesso limitado aos serviços sociais: Os níveis de pobreza continuam a ser muito elevados e o acesso aos serviços sociais (saúde, educação, alojamento, água potável, segurança alimentar, segurança social, etc.) continua a ser limitado. Segundo dados de 2008, da Amnistia Internacional e do Gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 68% da população angolana vive abaixo da linha de pobreza (1$ ou 1.25$, por dia) e, destes, 28% vivem em condições de extrema pobreza.  Ou seja, quando analisados esses dados e seus respetivos índices nos apercebemos do nível abismal de precariedades que a população de forma geral apresenta e a situação de vida da mesma.

Manifestantes em frente ao Tribunal Dona Ana Joaquin, exigindo liberdade aos 103 detidos. Print feita pelo autor.

Angola é um país “petrodependente” e sua economia  é constituída em níveis muito alto pela informalidade. Há um discurso utópico de diversificação da economia que do ponto de vista prático está aquém da realidade. Acrescido a isso surge a baixa do preço do barril do petróleo no mercado internacional, a corrupção e Covid-19 que contribuíram para o agravamento das desigualdades, ampliando o fosso de precariedade existente no país. E como aponta Nsisa “É utópico falar da preservação da paz num país em que o povo continua em guerra no prato”.

 

 

Frase para Pensar

 “O despertar de um povo pode demorar o tempo que for necessário, mas quando ela chegar nem pretensos santos nem os “donos” do país poderão nos parar “4.

Flávio Facha Gaspar*

 

Referências

GASPAR, Flávio Facha.  Análise do Plano Integrado de Intervenção nos Municípios – PIIM: reflexões e apontamentos em volta da transparência na base da sua construção. Florianópolis, Santa Catarina, 2020. (Em andamento)

JERÓNIMO, Patrícia. Os direitos humanos em Angola.  Braga, Portugal. 2013

KROETZ, Ketlin; SOUSA, C.S; FERRARO, S.L.J. Michel Foucault e a Análise do Discurso. In: LIMA, R. M. V; HARRES, S. B. J; PAULA, C. M (orgs). Caminhos da Pesquisa Qualitativa no Campo da Educação em Ciências: Pressupostos, Abordagens e Possibilidades. Rio Grande do Sul: EdiPUCRS, 2017.

Notas

*Graduando em Administração Pública no Centro de Ciências da Administração e Socioeconômico (ESAG) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) . CEP: 88035-001, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: flaviofachagaspar9@gmail.com

  1. Wei termo atribuído a uma pessoa quando não chamas o nome dele, normalmente alguém próximo ou que tenhas intimidade com a mesma.
  2. Zungueira – termo comum em Angola para denominar uma vendedora ambulante.
  3. Albano Mendes – Estudante Universitário – Ciência da Computação – UFSC
  4. Frase dita pelo autor, Flávio Facha Gaspar.

UNITA – União Nacional de Independência Total de Angola

Agradecimentos especial ao Boio, Laurindo e Delfina.

 

 

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