Angola: PCA da Afritrack Angola: “A crise veio separar o investidor daquele que só transferia os lucros”

A Empresária Sabena Yohannes, PCA da Afritrack Angola, afirma que muitos que estavam na construção “foram arrastados pela ilusão”, por isso as suas obras paralisaram por razões financeiras e por impreparação. Critica ainda a presença de empresas chinesas que cá entraram com carpinteiros e pedreiros e que hoje são empresários.

Como avalia a evolução do sector da construção civil em Angola?
A crise não se verifica só em Angola, é mundial. Mas, no caso concreto do nosso país, foi mais difícil, porque muita gente entrou no mercado da construção sem avaliar as dificuldades em termos de engenharia. Os bancos também não estavam lá muito acessíveis para as necessidades de financiamento das empresas.

E hoje está mais acessível a banca?
Para se obter financiamento, é preciso ter capacidade. As empresas têm de ter know-how. Algumas só estavam aqui para facturar. A crise separou muitas coisas, ou seja, quem estava aqui para investir e o que veio fazer negócio e repatriar os lucros. A crise também abriu o sector financeiro angolano e o próprio Estado está mais cuidadoso do que antes.

Mas, em Luanda, só para citar a cidade capital, há muitas obras estagnadas…
Muitos estavam no sector copiando o fulano ou o sicrano. Foram arrastados, não estavam preparados. Então, muitas obras estão paralisadas por falta de cálculo financeiro, cálculo de engenharia, portanto não foram futuristas.

Não haverá outras razões?
Falta de financiamento, por exemplo… Os bancos nunca foram benevolentes. Mas, com o país em crescimento, a actividade estava em marcha. O país saiu da guerra, em 2002, logo, era muito difícil o Estado agarrar tudo. Ou seja, naquela azáfama, pensava- -se que todas as maiores empresas estrangeiras que cá entraram eram de boa-fé. Algumas eram, mas outras não tinham especialização de construção para beneficiar a população e o próprio Estado. Os chineses, por exemplo, vieram com muitos trabalhadores, desde pedreiros, carpinteiros, a serralheiros e boa parte destes tornaram-se empresários. Isso provoca o desequilíbrio em termos de construção, qualidade de obras e fiscalização.

Para lá da crise que se arrasta desde 2014, como analisa o impacto da covid-19?
Em primeiro lugar, temos dois tipos de investidores. Eu, por exemplo, estou aqui a fundo, quer dizer, estou de raiz. Tudo o que ganhei em mais de 20 anos investi aqui, porque reconheci que Angola tem muito futuro. Os outros são aqueles que não estão preocupados com o país e apenas transferem os dividendos para os países de origem.

Mas a pandemia, especificamente, em que medida impactou na construção?
A pandemia atrapalha, mas tanto em África como em Angola está a mitigar-se o problema mais que nos países europeus e americanos. As empresas não devem parar por isso, mas devem criar condições de biossegurança e até mesmo de alimentação, para que os trabalhadores se mantenham nos postos. Tem de se usar a cabeça e capacidade intelectual e formar os trabalhadores, porque, se as empresas paralisam, isso também dificultará ainda mais o país e as famílias.

Que medida tomou a nível da sua empresa?
Esta crise não vai acabar amanhã. Por isso, no caso concreto da Afritrack, como engenheira e economista, tomei a decisão de ficarmos mais de 100 trabalhadores confinados no estaleiro em quarentena, mas a trabalhar para não fecharmos as portas. Criámos todas as condições de alimentação, biossegurança, desinfestação, máscaras e aumentámos os meios de transporte. Também formámos os trabalhadores para as medidas de distanciamento. Portanto, se a guerra mata pessoas, você também tem de ser guerreiro e mostrar liderança nos bons e maus momentos.

Qual é a estratégia para manter os investimentos numa altura em que escasseiam divisas para a importação?
No mau tempo, temos de criar boas coisas. Desde 2014 que não importamos nada. Criámos muitas coisas para produzir materiais de que necessitamos no nosso estaleiro. Temos uma central de betão, carpintaria, caixilharia e até mesmo estruturas mais complexas são fabricadas localmente. É isso que nos tem ajudado, portanto, temos uma empresa praticamente autónoma em vários domínios.

Qual é o volume de negócios da empresa?
É incalculável. Aliás, é por isso mesmo que não gosto de falar de números, por se tratar de muito dinheiro que ganhei e investi no país.

As obras em que interveio também não têm nomes?
Refiro-me, por exemplo, à construção do Instituto Politécnico do Soyo, à ponte cais do Noqui, ou ainda à construção das residências para professores no município do Cuimba, todas no Zaire. Em Luanda, construímos em betão armado o troço rodoviário de 70 quilómetros no Morro Bento, vias secundárias e duas mil casas no Zango 3.

Há sete anos, com recurso ao Banco BIC, a Afritrack iniciou a construção de 306 casas. Qual foi o valor desse investimento?
É um valor enorme. Volto a dizer- -lhe que tudo o que ganhei em pouco mais de duas décadas estou a investir neste projecto, que é um negócio e um sonho.

Quando é que serão concluídas e como serão comercializadas as casas?
O projecto será concluído em Abril do próximo ano. Negociámos com o Banco BIC para financiar aquelas pessoas que não têm poder de compra para que consigam fazê-lo num horizonte de 30 anos. As casas de tipologia A, B, C e D são vivendas com uma infra-estrutura pouco comum no continente e estão para todos os bolsos. Mas, além das vivendas, temos uma piscina cuja configuração lembra o mapa de África, uma clínica, um shopping e uma universidade. Nesse aspecto, o meu foco é a formação de uma nova geração de quadros de qualidade no domínio das tecnologias de medicina. Queremos cientistas e, para isso, contamos com o compromisso de vários países africanos e americanos. Vamos negociar para termos aqui esta grande universidade.

Mas as casas não têm preço?
Serão comercializadas entre 200 mil e 400 mil dólares. Não pensam entrar no segmento de baixa renda? Já temos o modelo de casas que pensamos implementar com custos a rondar entre os 18 milhões e 30 milhões de kwanzas. Estamos a negociar com vários bancos para esse projecto e, ao mesmo tempo, à procura de terreno, onde poderão ser implantadas essas casas familiares. Tal como o condomínio ‘Aida Cristina’, os moradores dessas casas terão acesso a vários serviços como lojas, centro infantil e áreas de lazer. Na mesma linha, estamos a fazer acertos para a criação de várias cooperativas e depois vamos pedir terreno. Acredito que o Governo virá a seguir para apoiar esta iniciativa.

Mas não acha que é um risco investir por esta altura de crise?
Não há risco nenhum. Tenho muita fé em Angola. Muito investidor relaciona Angola com o petróleo e os diamantes, que nem chegam a 10%. A riqueza do país são vários outros minérios, sobretudo a agricultura e o turismo. Angola tem mais de mil quilómetros de praia, mesmo a África do Sul não tem esta dimensão. O país pode aproveitar essas potencialidades. Como Africana e Angolana tenho muito orgulho, mas é preciso pôr estes enormes recursos ao serviço do desenvolvimento.

Que horizonte avança para o retorno do investimento no condomínio ‘Aida Cristina’ no Zango?
Não tenho pressa, porque estou no meu país.

O banco não cobra o crédito?
Se devo ao banco, vou pagar. Sabe que o banco empresta quando há confiança. Aliás, nenhum banco financia sem saber se o projecto é ou não rentável. Digo-lhe mesmo, publicidade à parte, em África, há poucos projectos com essa sustentabilidade. Além disso, à frente está uma mulher, o que é uma vantagem (risos).

Como avalia o ambiente de negócios em Angola?
Há muitos países onde o ambiente de negócios é ainda mais difícil.

Onde é mais difícil?
Na Etiópia, por exemplo, não é fácil criar e registar uma empresa. Em Angola, temos a Zona Económica Especial (ZEE) bem infra-estruturada e o Estado criou um sector que simplifica os procedimentos para o registo da empresa em uma ou duas horas. Quando cá cheguei, na ZEE não havia estrada, água nem energia eléctrica. Quem quer fazer alguma coisa não deve esperar que o Estado faça tudo. Veja que a estrada da nossa rua foi feita por nós, os empresários.

O que deve fazer quem quer apostar no mercado angolano?
Tanto para os investidores nacionais como para os estrangeiros, este é o momento certo para investir. Não se deve esperar que o preço do petróleo aumente. Há muitas oportunidades em Angola. Mesmo o lixo é negócio, o que falta é o conhecimento. Cada um, mesmo o jornalista, pode investir na agricultura. Veja que, na nossa empresa, estamos a criar uma cooperativa agrícola. Já fizemos estudos. Quer dizer que, quando o trabalhador for à reforma, terá o seu quinhão na agricultura. A partir daí, pensamos na exploração do ecoturismo.

Quantos trabalhadores tem a empresa?
Antes da pandemia, tínhamos mais de 700 trabalhadores, dispensámos os eventuais e ficaram 420, 5% dos quais são expatriados. Mas, depois da conclusão dos projectos em curso, teremos mais de mil empregos.

Fala muito de África e, sobretudo, da mulher no processo de desenvolvimento. Acha que os governos do continente fazem pouco para o seu empoderamento?
Para mim, mulher é riqueza. Onde ela estiver haverá muita dedicação. Por isso, os governos deviam olhar mais para essa franja, incentivando- -a a criar cooperativas, enfim, criar condições financeiras para desenvolverem facilmente os negócios. A ‘zunga’, por exemplo, pode dar rendimento, mas é preciso ajudar para aumentar a sua renda. Com isso, ganham as famílias e a sociedade.

O que pensa da luta contra a corrupção?
Como não faço parte do Governo, não comento. Digo apenas que o meu negócio foi todo feito com lisura. Como individual, fiz a minha parte. Por isso acho que cada angolano no Governo, ou não, deve fazer também a sua parte para combater a corrupção.

O Governo fala na criação de 83.500 empregos até 2021. É uma meta possível?
É possível e até 83.500 é pouco, mas não é o Estado que tem de criar. Em nenhum país no mundo o Governo, por si, cria emprego, mas sim em parceria com os privados. O Governo deve apenas fazer a gestão dos impostos. Temos de evoluir. É preciso abandonar o pensamento negativo. E investir porque há muitas oportunidades. Veja que Angola importa comida, mas tem das melhores terras aráveis com possibilidade de produzir para alimentar metade de África. Muitos países do continente não têm tractores, trabalham com a tracção animal de cavalos. O que falta é a mentalidade e liderança para fazer acontecer as coisas.

Luanda é uma cidade com muitos problemas de saneamento básico e há engenheiros que defendem um rio a dividir a urbe. É uma boa ideia?
O cidadão deve participar. Em muitos países que conheço, os moradores participam da limpeza ao seu redor. Aqui esperamos que venha a empresa de limpeza. Esse espírito tem de acabar. O Governo é responsável, mas a população também deve ajudar.

Como analisa o facto de o comércio precário estar a ser exercido, em larga escala, por estrangeiros?
Aos estrangeiros só se devia emitir alvará para o comércio grossista ou em grandes superfícies, as cantinas deviam ser geridas por nacionais.

PERFIL DE UMA ETÍOPE ASSUMIDAMENTE ANGOLANA

‘Deixou o umbigo’ na Etiópia, mas vive em Angola há 23 anos. No ano passado, recebeu nacionalidade angolana. “Onde nasci não importa. Nem mesmo devia perguntar porque o meu trabalho espelha que sou profundamente angolana”.

Sabena Yohannes lidera a Afritrack “com ‘mão de ferro’”, mas, em todos os seus actos, consulta os trabalhadores que a “ajudam na concretização dos sonhos”.

É especialista em engenharia civil e economia, mas prefere ser tratada como “uma cientista” que concebeu todos os projectos levados a cabo pela empresa, incluindo o condomínio ‘Aida Cristina’.

Mãe de dois filhos, Yohannes, que chegou a ser elogiada por ‘pesadas’ figuras do Estado angolano, afirma que o desenvolvimento de África depende da própria inteligência dos africanos “e não dos estrangeiros ávidos por ignorar as nossas competências, para continuarmos a viver com a mão estendida aos financiamentos externos”.

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