Portugal: José Eduardo dos Santos (JES) era refém dos militares

A imagem de Paladino de Paz desgastou-se nos últimos anos do governo de José Eduardo dos Santos (JES), reconhece Marcolino Moco. A repressão aos jovens activistas que foram presos, os corpos dos outros dois que encabeçavam uma manifestação atirados aos crocodilos e alguns desaparecimentos, por exemplo, mostram como o ex-Presidente endureceu o seu caráter pacifista. 

O ex-dirigente do MPLA refere-se à perseguição feita aos jovens no conhecido processo dos 15+2 em que 13 foram presos por estarem a discutir um livro (Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura, Filosofia Política da Libertação para Angola, do académico angolano Domingos da Cruz, uma adaptação de From Dictatorship to Democracy de Gene Sharp) e levou alguns deles à greve de fome. O braço de ferro foi intenso e só seriam libertados depois de muita pressão internacional.

Há outros casos que ensombram a parte final da gestão de José Eduardo dos Santos, principalmente a partir de 2012, quando o medo dos angolanos perante um sistema opressor parecia ter diminuído (na mesma proporção em que a população jovem se munia de telemóveis e ligação à internet) e algumas vozes romperam o silêncio asfixiante em que viviam.

Em Maio desse ano, um grupo descontente com o governo reunido em casa de um rapper foi brutalmente agredido com barras de ferro e catanas.

Em Novembro de 2013, um opositor da política de JES foi assassinado quando, dentro da lei, estava a colar um cartaz anti-Governo. O regime reprimiu o funeral: um contingente de polícia armada saiu para a rua com tanques e um helicóptero. Não vigiou apenas — usou gás lacrimogéneo para acabar com a marcha de protesto pacífico que seguia para o cemitério.

“JES era refém dos militares, ele podia ter o poder, mas o poder real era deles. Porque é que ele saía com 300 homens armados? Era ele que queria ou os generais diziam que só estava seguro com eles?”.

Dois anos depois, em Maio de 2015, terá ocorrido um massacre da seita A Luz do Mundo, no Huambo. A polícia quis prender o líder, Julino Kalupeteka, e dispersar a multidão que se juntou no cimo de um monte à espera do fim do mundo mas houve confrontos e quatro agentes morreram. As forças policiais retiraram-se para regressar e disparar sobre os fiéis. Os números de mortos são muito diferentes consoante as fontes de informação: as oficiais falam em 13, testemunhas oculares em 700 e a UNITA em 1008. O assunto chegou ao alto comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que pediu uma comissão independente para investigar o sucedido, logo recusada pelas autoridades angolanas. Analistas angolanos viram nesta acção da polícia um aviso aos umbundos do Huambo que tradicionalmente estão do lado da UNITA.

Mais recentemente, numa investigação feita entre abril de 2016 e novembro de 2017, Rafael Marques denunciou os “esquadrões da morte”. Agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC) tinham executado sumariamente 92 jovens, alegadamente delinquentes. O ativista referiu, na altura, que estas práticas extrajudiciais tinham um pendor político. Já em 2018, no mandato de João Lourenço, o ministro do Interior veio negar a existência dos esquadrões admitindo excessos de alguns agentes. Porém, este não foi caso único — Rafael Marques noticiou no Maka Angola, por exemplo, a morte de João Dala, que não resistiu aos ferimentos de 15 horas de uma tortura atroz, com alicates e catanas, pela SIC.

Mas muitos, como o angolano Alexandre Lajes, executivo de uma multinacional e crítico veemente do regime de JES, continuam em 2020 a defender o seu papel moderado e pacifista: “Ladrão, sim; assassino e sanguinário, não”. Atribuem antes os atos de repressão e os assassinatos a excesso de zelo dos seus subalternos e não a ordens expressas do então Presidente.

“Será que ele mandava fazer isso? Ou as pessoas para lhe agradar agiam assim ou sentiam ‘este está a incomodar o chefe, vamos dar um jeito?”, interroga-se David Mendes, deputado independente pela UNITA e presidente da associação Mãos Limpas, que durante anos se opôs ao antigo Presidente. Invocando o tempo em que trabalhou com José Eduardo dos Santos como secretário de Estado do Ambiente (2000 a 2008) conclui: “Não acredito que mandasse matar pessoas.” Refere que “até os ditadores muito suaves” têm “sanguinários que os cercam, não toleram e por vezes trazem informações deturpadas”. O advogado já o disse uma vez e repetiu-o ao Observador: “JES era refém dos militares, ele podia ter o poder, mas o poder real era deles. Porque é que ele saía com 300 homens armados? Era ele que queria ou os generais diziam que só estava seguro com eles?”.

Mário Pinto de Andrade, secretário para os Assuntos Políticos e Eleitorais do Bureau Político do MPLA, não tem dúvidas de que “o maior legado do ex-Presidente é a paz”. “Quem viu este país, em guerra, como eu — que andei no interior —, nunca mais quer guerra. A própria oposição respeita-o, até a UNITA. Mas o seu governo, do ponto de vista económico, cometeu erros. Temos de saber diferenciar o trigo do joio. Ele próprio reconheceu, pediu perdão aos militantes e aos angolanos no congresso e disse que só não erra quem não governa”.

Nada desmente o papel que JES desempenhou para a paz do país, insiste António Monteiro, para quem ele “fez a construção da nação mais ainda do que a construção do Estado”. No entanto, ressalva, “deveria ter deixado há uns anos o poder, antes de ser conotado como o Presidente da corrupção”.

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