Portugal: Miséria lado a lado com “diamantes gera revolta e massacre na Lunda”

Protesto popular e reação policial abalaram o país e aumentaram contestação ao Governo de João Lourenço. Desigualdades económicas e sociais estarão na base dos tumultos

Somos semelhantes a um sino rachado cuja música não se ouve.” O gelo destas palavras do bispo de Luena, D. Tirso Blanco, ilustra a dor e o sentimento de revolta provocados pelo assassínio de sete ativistas, no passado fim de semana, na província da Lunda-Norte. Há ainda um número indeterminado de pessoas feridas e desaparecidas.

Angola permanece em estado de choque, 48 horas após a eclosão de uma rebelião protagonizada pelo chamado Movimento do Protetorado Lunda Tchokwe, na zona diamantífera do Cafunfo, no leste do país. O caudal de mortes e o rasto de violação dos direitos humanos que se lhe seguiu — com manifestações de condenação geral da sociedade civil em ano de pré-campanha eleitoral — estão a causar sérios danos à imagem do Governo e à política de abertura e de diálogo defendido pelo Presidente João Lourenço.

Isso reconheceu um membro do Executivo que, sob anonimato, revelou ao Expresso a sua apreensão pelo crescente “desgoverno instaurado há anos nas zonas diamantíferas das Lundas, que tendem a colocar cada vez mais as suas populações contra a permanente ‘luandização’ do poder”.

Vindo de longe o rastilho de descontentamento, há mais de quinze anos foi proposto ao Governo local um programa de desenvolvimento que, visando satisfazer as reivindicações sociais das populações, contemplava, entre outras ações, a transferência da sede da empresa Endiama de Luanda para a Lunda-Norte.

“Essa transferência, o desenvolvimento da pequena indústria e da agricultura, com recursos locais, trariam um efeito multiplicador extraordinário na criação de empregos e novas sinergias que, dando outra dignidade à vida da província, esbateriam as reivindicações atuais”, acrescentou o mesmo governante.

Tendo o Executivo feito ouvidos de mercador a essas preocupações, os sentimentos de descontentamento foram crescendo. Agora os defensores do protetorado voltam a pedir uma manifestação pacífica.

A sua revolta, desta vez, terá sido precipitada depois de as autoridades policiais terem desencadeado uma série de buscas e detenções de elementos alegadamente provenientes da República Democrática do Congo e de angolanos suspeitos de pretenderem atiçar o fermento separatista.

Não podendo, à luz da Constituição, permitir a legitimação de aspirações separatistas, não autorizámos a manifestação, mas estávamos longe de pensar que a reação assumisse a dimensão de uma verdadeira insurreição”, disse ao Expresso uma fonte policial, que integrou a delegação governamental que se deslocou domingo ao Dundo.

Munidos de armas, catanas e machados, os insurgentes são acusados de terem pretendido assaltar a esquadra policial para libertar os prisioneiros da véspera e de se terem envolvido em cenas de violência. Estas causaram a morte de um tenente-coronel das Forças Armadas Angolanas, golpeado na cabeça, e o ferimento grave do comandante da Polícia de Intervenção Rápida.

Com resposta desproporcional, as forças policiais abateram elementos envolvidos na revolta, provocando o que vários quadrantes da sociedade civil qualificam como “massacre”. Nas redes sociais multiplicaram-se imagens chocantes atribuídas a elementos da polícia.

O vídeo que circula mostra corpos de insurgentes arrastados na via pública e está a provocar veemente repulsa da população local, que questionou, na voz do bispo D. Manuel Imbamba: “Em vez da política dos músculos, não seria mais sensato cultivarmos a política de diálogo para juntos resolvermos e vencermos as assimetrias sociais gritantes e tão notórias”?

A Procuradoria-Geral da República mandou instaurar um inquérito para averiguar, por um lado, os contornos da ação dos ativistas e, por outro, a atuação das forças policiais. Na oposição, a UNITA exige uma Comissão Parlamentar de Inquérito, uma tomada de posição do Presidente e a responsabilização “dos autores morais e materiais deste crime hediondo”. Num comunicado o maior partido da oposição em Angola condena todo o tipo de violência contra populações que “procuram apenas exprimir a vontade de ver os seus problemas resolvidos”.

“É inadmissível que passados tantos anos de independência e contribuindo a província com tantos recursos para o orçamento do Estado, não tenha um médico dentista”, lamenta ao Expresso a moradora local Laurinda Ambrósio, que se vê obrigada a deslocar-se a Luanda sempre que os pais têm problemas de estomatologia.

Nesta linha de pensamento, num extenso artigo na edição de segunda-feira do “Jornal de Angola” sobre conflitos internos, Ismael Mateus, membro do Conselho da República, lembra que “é imoral e inaceitável o contrassenso de as terras que produzem riqueza estarem no limiar da pobreza extrema”.

Acrescenta que “a frustração e a não concretização da responsabilidade social gera o surgimento de grupos movidos pela ganância e, entre os mais radicais, cria a convicção de que só a deflagração de um conflito violento pode permitir uma alteração profunda da situação”.

Perante a abertura “de feridas profundas que” agravadas pela fome, miséria e falta de serviços básicos “não vão cicatrizar facilmente”, adverte D. Tirso Blanco, Mateus, que é professor universitário, defende que a solução para zonas especiais como Cabinda, Lunda Norte e Lunda Sul, detentoras de grande potencial petrolífero e diamantífero, passa por “reinvestir fortemente essas riquezas e adotar a responsabilidade social como prevenção de conflitos e uma garantia de estabilidade”.

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