Portugal: Na Cimeira do G77 em Havana, José Eduardo dos Santos (JES) já estava pronto para sair do poder

Reunido em Havana para a Cimeira do G77, subiu ao palco e fez um discurso tépido, com a voz trêmula e parca em convicções. Em Lugar de erguer os líderes de países em vias de desenvolvimento que o ouviam com um discurso contra o “Norte Global”, enredou-os em números e percentagens. 

Às tantas, também ele se deixou enredar nas próprias palavras, franzindo a testa, sob os seus cabelos brancos, a cada tropeção. Foi assim mesmo, cansado, que o notou um diplomata durante aquele evento, numa conversa a dois. O então Presidente de Angola não fazia disso segredo.

“Disse-me que estava cansado, depois daqueles anos todos como Presidente”, recorda aquela fonte ao Observador. “Via-se que já estava pronto para sair. Pelo menos era isso que ele dizia.”

Mas não foi bem assim. Resta dizer que esta conversa aconteceu em abril de 2000. Ou seja, dois anos antes do fim da guerra civil em Angola. E 17 anos antes de José Eduardo dos Santos abrir mão do poder. Seria genuína aquela conversa do líder angolano, que disse então ter como prioridade “o fim da guerra e a reconciliação nacional” e que, consumadas as duas realidades, se ia reformar?

“O José Eduardo dos Santos estava usando a estratégia da orfandade, de anunciar a sua renúncia para deixar a militância e o país órfãos”, refere o historiador Carlos Pacheco. “Foi uma jogada muito bem calculada. Ele não queria afastar-se, ele quis apenas testar o sentimento da militância e o sentimento nacional. E as pessoas sentiram-se órfãs e reclamaram: ‘Não, o Presidente não se pode afastar’.”

Aquela conversa em Havana está longe de ter sido a única vez que José Eduardo dos Santos apanhou um ou mais interlocutores a jeito e disse que o cansaço era bem maior do que a vontade de continuar. Chegava a fazê-lo em conversas de circunstância ou nas mais formais das ocasiões, como em reuniões do comité central do MPLA. Em 2001, escreveu o Público, com a cúpula do partido à frente, foi claro: “Quer [as eleições] se realizem em 2002 ou 2003, teremos um ano e meio ou dois anos e meio para que o partido possa preparar o seu candidato para a batalha eleitoral e é claro que esse candidato desta vez não se chamará José Eduardo dos Santos”.

Menos de um ano depois daquelas palavras, o corpo de Jonas Savimbi, cravejado pelas 15 balas que lhe tiraram a vida, seria exibido em todos os noticiários, levando ao fim da guerra civil. As eleições só viriam a acontecer em 2008 — mas, ao contrário do que sugeriu naquela reunião do comité central , o candidato do MPLA chamava-se mesmo José Eduardo dos Santos. Em 2012, repetiu a candidatura. Só em 2017, com a sua saúde debilitada e com uma imagem pública desgastada, tomou a decisão de se afastar.

Suceder a José Eduardo dos Santos afigurou-se, durante muitos anos, o caminho mais periclitante na vida política angolana. Astuto no jogo político, o ex-Presidente foi durante anos um hábil manejador de um pau e de uma cenoura, que usava para atrair todos aqueles dotados da ambição de um dia lhe seguirem as pisadas.

“José Eduardo dos Santos utilizou sempre outsiders, pessoas sem séquito, de grupos minoritários e que por isso nunca iriam ser representantes de um grande número de pessoas”, diz ao Observador o investigador Ricardo Soares de Oliveira, autor do livro “Magnífica e miserável: Angola desde a guerra civil” (Tinta-da China, 2015).

Fazendo-lhes crer que eram delfins, José Eduardo dos Santos transformava-os antes em seus “homens de mão”, continua aquele académico. Ou seja, ao longo dos seus 38 anos de poder — marcados primeiro pela guerra e depois por um crescimento económico ímpar que enriqueceu o topo e nunca a base da sociedade angolana —, tornou-os em executantes de cada um dos seus desígnios. Mas, no seu íntimo, olhou-os sempre como homens incapazes de lhe sucederem.

Foram vários os nomes daqueles que fizeram esse tortuoso caminho de sucessor a engavetado. Foi nele que morreram as mais altas aspirações políticas dos ex-primeiros-ministros Lopo do Nascimento e Marcolino Moco, tal como as de outros destacados membros do MPLA como Fernando da Piedade Dias do Santos “Nandó”, Higino Carneiro ou Danilo Pitra Costa. Também o general João de Matos, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas de 1992 a 2001, e autor moral da derrota das tropas de Jonas Savimbi na fase final da guerra, foi afastado pelo número um. Como recompensa pela audácia demonstrada, foi reduzido à liderança de uma fundação para a defesa da fauna e flora de Angola.

“Havia sempre nomes que eram lançados como sucessores dele que depois nunca vingavam”, diz o historiador luso-angolano Alberto Oliveira Pinto. “Podia ser um teste. Intenção genuína de certeza que não era. Porque logo que a guerra acaba, o próprio José Eduardo dos Santos e a propaganda do MPLA assumem que ele é o Presidente da paz.”

É na mesma direção que aponta um diplomata com experiência em Angola, que só aceita falar com o Observador sob anonimato. “José Eduardo dos Santos era mesmo assim, não deixava as pessoas ficarem muito tempo num cargo”, diz. “Quando via que as pessoas se destacavam muito e as pessoas começavam a gostar deles, mandava-os logo para a embaixada em Tóquio ou coisa que o valha.”

Aos poucos, todos caíram nesse caminho. Mas houve dois que, porém, se levantaram — e que, além de fazerem parte do grupo ultra-restrito de pessoas que efetivamente mandam em Angola, fazem-no agora já sem ser debaixo da sombra de José Eduardo dos Santos. É o caso do atual Presidente, João Lourenço, e do ex-vice-Presidente, Manuel Vicente.

OBSERVADOR 

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