Foi no Verão de 2020 que rebentou o caso que envolvia Carlos São Vicente, genro póstumo de Agostinho Neto. O processo começou de forma algo bizarra, com a Procuradoria-Geral da República angolana (PGR) a negar inicialmente qualquer transgressão de São Vicente, para rapidamente mudar de postura.
O certo é que, em 22 de Setembro de 2020, Carlos São Vicente foi preso preventivamente e o processo seguiu o seu curso: houve acusação, instrução contraditória e despacho de pronúncia realizado pelo juiz Adélio Chocolate a 25 de Maio de 2021 (ver aqui, aqui e aqui).
Depois do despacho de pronúncia, que no essencial confirmou a acusação do Ministério Público imputando a Carlos São Vicente a suspeita da prática de peculato, branqueamento de capitais e fraude fiscal, o advogado recorreu desse despacho para o Tribunal Supremo. Esse recurso foi recebido pelo juiz conselheiro Molares de Abreu, em substituição do presidente Joel Leonardo, que rapidamente decidiu que, face ao Código de Processo Penal em vigor, nos termos do artigo 354.º, o despacho de pronúncia era irrecorrível, mesmo na parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais, desde que não fosse agravada a medida de coacção, o que obviamente não aconteceu. Assim sendo, tudo estava pronto para começar o julgamento, o juiz da 3.ª secção da Sala Criminal do Tribunal de Luanda, Edson Escrivão, marcou para o dia 17 de Agosto.
No entanto, nunca nada é simples na justiça angolana. Agora, uns dias antes do início do julgamento, o mesmo juiz conselheiro Molares de Abreu veio pedir de novo o processo, aparentemente para tomar nova decisão acerca da possibilidade de recurso do despacho de pronúncia. No momento em que escrevemos, não se sabe o teor dessa nova decisão, apenas se tem conhecimento deste vaivém inusitado. O que parecia resolvido, não o está, o que estava decidido, vai ser decidido novamente. Tudo isto parece muito confuso de explicar.
Especulativamente, pode-se considerar que estamos perante uma questão de aplicação de lei no tempo. Quando o processo contra Carlos São Vicente começou, a lei processual era outra e admitiria recurso do despacho de pronúncia, o que é uma situação mais favorável ao arguido; assim, pretende-se que tal seja tido em conta pelo Tribunal Supremo, deixando subir o recurso, o que obviamente atrasará o início do julgamento. Segundo algumas fontes, o mesmo juiz conselheiro Molares de Abreu que indeferiu a pretensão inicial de recurso de São Vicente poderá dar como inexistente esse despacho de indeferimento inicial, e alegar que o juiz de primeira instância deu continuidade ao processo sem esperar a resposta do Tribunal Supremo… Na realidade, qualifica-se como algo tresloucado o juiz de primeira instância por fazer andar um processo que deveria estar parado… a ser confirmado pelos factos, é de facto bizarro.
A questão essencial a ter em conta são os prazos de prisão preventiva: quanto mais o processo se atrasar, maior é a probabilidade de a lei automaticamente obrigar à libertação de Carlos São Vicente. De acordo com a Lei das Medidas Cautelares em vigor no momento da detenção do genro póstumo de Agostinho Neto, este terá de ser libertado se não tiver sido condenado em primeira instância até 22 de Novembro de 2021, o mesmo resultando da actual norma do Código do Processo Penal (artigo 283.º, n.º 1).
Facilmente se entende que, caso se reverta a decisão inicial do Tribunal Supremo de considerar irrecorrível o despacho de pronúncia, se chegará à conclusão que não haverá decisão de primeira instância em Novembro de 2021, devendo São Vicente ser imediatamente libertado.
Se há uma geração de novos juízes com boa formação deontológica e jurídica, a verdade é que subsiste um manancial de juízes que não estão preparados para lidar com estas questões.
Essa impreparação contribui para que os objectivos de combate à corrupção sejam desfeitos a partir do momento em que entram nas escadas de um tribunal, não pelo facto de os arguidos serem inocentes e absolvidos, mas pelo facto de alguns juízes serem capturados pelos interesses obscuros da corrupção. Então, a conclusão é que há que rever todo o sistema judiciário de combate à corrupção, isolando-o destas más influências e impedindo-o de ser recapturado por aqueles que devem ser julgados.