Estamos perante uma tarefa complexa e exigente, mas que pode colocar Portugal numa posição privilegiada para atrair pessoas e empresas da Gig Economy.
O tema da qualificação jurídica de quem presta atividade através de plataformas digitais (e.g., Uber, Glovo) tem ocupado um espaço crescente na agenda social dos governos e feito correr muita tinta em tribunais um pouco por todo o mundo.
Não se pode dizer que se trata propriamente de uma questão nova (há decisões judiciais conhecidas sobre estas matérias desde, pelo menos, 2015), mas o curioso é que, à medida que os anos vão passando, teima em não existir uma resposta uniforme (a nível jurisprudencial, mas também legislativo) para um problema que se coloca à escala mundial, nomeadamente, de saber se estes profissionais devem ser enquadrados como prestadores de serviços ou, antagonicamente, trabalhadores por conta de outrem.
O Presidente-eleito dos Estados Unidos da América, Joe Biden, vem, pelo menos assim o propõe no programa eleitoral, com vontade de terraplanar esta matéria a nível federal. De entre as várias propostas de cariz laboral que constam do programa eleitoral – sob o lema “empower workers” propõe aplicar medidas como: (i) o aumento do salário mínimo nacional para 15$/hora em todos os Estados, (ii) a promoção da contratação coletiva, (iii) a eliminação de cláusulas de não concorrência que restrinjam os trabalhadores de procurar melhores salários, benefícios e condições de trabalho por via da mudança de empregador –, existe uma medida em concreto que visa assegurar que aqueles que trabalhem na Gig Economy sejam corretamente qualificados como trabalhadores ou prestadores de serviços, consoante o caso. De acordo com o previsto no programa eleitoral, a sucessiva classificação incorreta destas pessoas como prestadores de serviços (em vez de trabalhadores) – o que chamam de “epidemia da desqualificação” ou da “qualificação incorreta” e que se deve à ambiguidade dos testes jurídicos existentes e à falta de diretrizes para os órgãos governamentais e tribunais a este respeito – priva-as de benefícios e proteções a que teriam direito se fossem diferentemente qualificadas (como trabalhadores).
Qual é, assim, a cura proposta pelos Democratas para esta epidemia? Generalizar o Teste ABC, o qual foi inicialmente implementado na Califórnia, e que compete às empresas realizar, de modo a qualificar corretamente uma pessoa como trabalhador ou prestador de serviços. Ora, de acordo com este teste, uma pessoa deve ser qualificada como trabalhador subordinado, exceto se a empresa demonstrar que todos os seguintes requisitos se encontram verificados:
(Teste A) A pessoa seja livre dos poderes de controlo e direção da empresa contratante em relação à prestação dos serviços, tanto do ponto de vista contratual como factual;
(Teste B) A atividade prestada pela pessoa não se encontre relacionada com a atividade principal da empresa contratante; e
(Teste C) A pessoa seja habitualmente contratada num comércio, ocupação ou negócio estabelecido de forma independente, da mesma natureza que a envolvida nos serviços prestados.
Apenas verificados cumulativamente estes três requisitos é que uma empresa pode qualificar uma pessoa como prestador de serviços, correndo o risco de, não o fazendo, incorrer na aplicação de coimas.
Se estas medidas vierem, de facto, a ser implementadas pelos democratas, poderemos estar perante um processo massivo de enquadramento de trabalhadores e um significativo revés para as entidades que operam na Gig Economy.
Ora, chegados a este ponto, e fazendo o zoom in para o nosso país, é público que o atual Governo está a trabalhar numa proposta legislativa nesta matéria, tendo o próprio Secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita, referido que está a ser feito um exercício de benchmarking com referência às legislações de outros países, bem como que serão tidas em consideração as orientações da Comissão Europeia e da Organização Internacional do Trabalho a este respeito.
É para nós evidente que o caminho não passa por este Teste ABC, não só porque já dispomos de um mecanismo legal semelhante (os indícios de laboralidade previstos no Código do Trabalho) e bem sedimentado na doutrina e jurisprudência, como a própria a “Lei TVDE” veio já indicar alguns caminhos. Porém, existem alguns pontos que o Governo não pode deixar de considerar na ponderação desta legislação, tais como, (i) perceber que as novas gerações (de empresas e, sobretudo, de pessoas) procuram modelos de trabalho que lhes tragam flexibilidade e liberdade, (ii) perceber que as soluções atualmente existentes foram pensadas para um mercado de trabalho em vias de extinção e em constante e rápida mutação e (iii) perceber que o modelo proposto tem de ser claro e transparente, de modo a não gerar um aumento da já considerável litigância laboral.
Estamos perante uma tarefa complexa e exigente, mas que nos pode colocar numa posição privilegiada para atrair pessoas e empresas da Gig Economy quando estejam a ponderar onde se estabelecer. Portugal é, por vários motivos, a escolha natural. Façamos com que seja a escolha certa.
Manuel Ferreira Mendes