António Costa e Silva nasceu a 23 de Novembro de 1952 em Angola, em Catabola, na província do Bié. Mais tarde vem para Luanda, entra na universidade e integra os comités Amílcar Cabral. Estava no Largo 1.º de Maio no dia 11 de Novembro de 1975 a aplaudir o discurso de António Agostinho Neto na primeira noite da Nação independente. Em Dezembro de 1977 é preso na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio. Solto em 1980, permanece em Luanda e integra os quadros da Sonangol
Vamos começar com uma pequena subversão: “Visão estratégica para o Plano de Recuperação Económica de ‘Angola’, 2020-2030”, ou prefere que coloque África?
Angola é África. Como sabe, nasci em Angola, é um país a que estou muito ligado. É um país de que gosto muito. Tenho lá muitos dos meus amigos e memórias que acompanham a minha vida, e que me formataram.
Posso fazer aquela pergunta absurda, infantil, mesmo, gosta mais de Angola ou de Portugal?
Gosto dos dois países. Sou daquela tribo de luso-angolanos que se preocupa muito com os dois países e, obviamente, querem o bem dos dois países. Acompanho muito Angola, e África. Acredito que África é o continente do futuro e creio que isso se pode materializar durante este século, porque vai ter um impacto brutal no mundo em termos da população – a população africana é a que mais vai crescer neste século, a par da população asiática, e a demografia é o sustentáculo do desenvolvimento económico. África teve, na primeira década deste século, de 2003 a 2013, uma subida do rendimento global de cerca de 30%, ao contrário de décadas anteriores, quando houve quedas expressivas. Foi uma demonstração clara que há condições para África en-contrar um caminho diferente e gizar um plano de desenvolvimento e prosperidade. Mas para isso acontecer há que mudar muitas coisas. Acompanhei com atenção o discurso do Presidente João Lourenço, no dia 15 de Outubro, na Assembleia Nacional…
O recente discurso do Estado da Nação…
… Na abertura do ano parlamentar, onde focou aquilo que me parecem prioridades absolutamente essenciais: a diversificação da economia, o desenvolvimento do mercado interno – produção de bens, e, sobretudo, bens básicos. O Presidente também referenciou a diversificação do leque das exportações, e depois a protecção do emprego e criação de emprego. Acho que são desígnios extremamente importantes. Angola teve no passado, e foram várias as vezes que o elencou, a possibilidade de diversificar a economia e isso nunca aconteceu…
E começa a ser um discurso vazio, na medida em que a persecução e a acção não correspondem ao discurso?
Primeiro de tudo temos de nos interrogar sobre o que falhou no passado, quando se anunciaram os programas da diversificação da economia e que não funcionaram. Se vamos repetir as mesmas receitas, vai dar ao mesmo, falhamos outra vez. É extremamente importante, no caso de Angola, perceber que no passado houve essa dependência colossal das receitas petrolíferas…
Mas esse também é um problema africano, a dependência excessiva de uma determinada commodity. Na sua opinião em que medida esse problema é caracteristicamente angolano?
O problema é angolano e é de outros países africanos. África é muito heterogénea. Se olharmos para o Botswana, é um país notável, que usou a receita dos diamantes para diversificar a economia, investir na educação das pessoas, na qualificação, na saúde. Portanto, um programa que é muito discutido e que é extremamente importante…
Suspeito que já me está a dizer onde é que Angola falhou?
Angola nunca investiu seriamente na formação e na qualificação das pessoas. Nunca investiu, de uma forma essencial, no sistema nacional de saúde. Não procurou libertar-se da dependência do petróleo e do gás. E essa é uma questão que está estudada: é exactamente nos períodos de boom, em que os preços do petróleo são altos e que as receitas financeiras podem ser geradas e utilizadas para diversificar a economia e apostar fortemente na agricultura. Se olhar para o share da agricultura no PIB nacional é muito baixo em Angola. Como é que é possível um país que é altamente fértil, que tem solos extraordinários, importa a maior parte dos bens alimentares? Não é um caminho sustentável. Eu acho que tem de se começar exactamente por aí, pela agricultura, pelo sector primário, pelo desenvolvimento rural, pelos mercados de trabalho, pela criação de condições para desenvolver a produção agrícola, nem que seja só uma agricultura que sustente as cadeias logísticas locais, porque isso pode transformar completamente o país.
Está a ir ao encontro daquilo que tem dito reiteradamente o Presidente João Lourenço, da aposta na agricultura. Mas para que essa aposta seja consequente, o que é que deve ser feito?
Começa logo na governação do país e na administração pública, que são absolutamente vitais para pôr um país a funcionar. Penso que o Presidente João Lourenço lançou, e muito bem, a campanha contra a corrupção. A corrupção desvirtua o funcionamento quer da economia quer do Estado, é um factor de grande atraso, mas depois são precisas mudanças ao nível da administração pública – mais eficaz, mais agilizada. Acredito que com a qualificação, com a formação das pessoas – porque há quadros qualificados -, e com a própria digitalização da administração pública, se pode mudar muita coisa. Depois é preciso encontrar os players. Não basta enunciar os projectos, é preciso quem os vá executar e definir qual o modelo de governança desse projectos. Penso que em Angola é importante ganhar-se a confiança entre governantes e governados. Por exemplo, a prestação de contas. Hoje em dia, através dos portais públicos, é dito para onde vão as verbas, a que projectos estão alocados, quais são as taxas de execução. O funcionamento da administração e o modelo de governação são absolutamente cruciais. O atraso de muitos países africanos está relacionado com a má governação. Está relacionado com a incapacidade de a administração pública responder. Está relacionado com o facto de muitas vezes as políticas que são enunciadas são vazias no sentido da sua exequibilidade. Tudo isso são factores que armadilham África numa espécie de círculo de pobreza de que tem de se libertar.
Mas temos em Angola a maior parte dos contratos que ainda se faz por decreto presidencial.
Tudo pode mudar se apostarmos nos elementos cruciais que favorecem o desenvolvimento de uma boa administração pública. Com um bom sistema de governação tudo se pode mudar. Por exemplo, no Uganda, o antigo ministro das Finanças quando se apercebeu que muitas das verbas que enviava para as escolas não chegavam ao seu destino e eram desviadas, adoptou uma medida muito simples: para cada escola para onde era enviado o dinheiro, nas aldeias e nas vilas, era anunciado que essa escola recebeu do Estado tantos milhões de dólares para desenvolver os seus projectos. E a prestação pública de contas faz com que a própria população também tenha controle. Angola veio de um período, antes do Presidente João Lourenço, muito dramático, em que a administração se tornou muito opaca, coincidiu – infelizmente, digo eu – com o fim da guerra civil no país, em 2002, exactamente quando houve o boom das commodities e das matérias-primas no mundo. E o que é que se passou? Temos um país que enfrentou um longo ciclo de guerras, Angola tem uma longa luta de libertação nacional contra o regime colonial português, que foi seguida, em 1975/1976, das guerras de intervenção da África do Sul e de outras potências estrangeiras. Depois há uma guerra, também longa, entre 1977 e 1991, que é uma espécie de guerra fria – guerra por procuração – onde as superpotências internacionais usavam o MPLA e a UNITA para fazerem mover os seus interesses, e o país foi altamente penalizado por isso, mas o que é dramático é que a seguir, depois desse período glorioso – que vai de Maio de 1991 até Setembro de 1992, que é um período de paz, e Angola tem uma demonstração clara que houve um dividendo da paz, e que a paz pode trazer benefícios ao desenvolvimento da economia -, a seguir, há a guerra civil, e foi talvez a guerra mais cruel de todas, com a delapidação que aconteceu. E quando os países estão em guerra, os governos estão muito centralizados, e o país, provavelmente, nunca fugiu a isso. E o fim da guerra coincide com o grande boom das matérias-primas, o ciclo brutal dos preços do petróleo e as receitas incalculáveis que o país recebeu e que não foram aplicadas na diversificação, numa aposta na educação, na saúde, na agricultura…
E sabemos agora que foram drenadas para o exterior. Tivemos uma corrupção endémica que enfraqueceu o Estado e a noção de Estado em Angola. O problema é que passaram duas décadas, e duas décadas depois não podemos continuar a explicar tudo de acordo com esse tempo, com a guerra?
O que me parece é que a luta contra a corrupção é uma marca absolutamente decisiva, porque significa dar um recado muito claro a toda a sociedade e a todo o sistema político de que a corrupção não vai ficar impune. E é importante o contraste com o que acontecia antes. Penso que isso é um passo importante que tem de se articular com todos os outros passos da mudança: na governação, na transparência, na prestação de contas e na confiança entre governantes e governados. E se isso não for feito, o país vai ter uma situação difícil. E depois é preciso encarar seriamente as razões do insucesso. E chamo atenção para o livro de Daron Acemoglu e James Robinson, “Porque Falham as Nações”, e eles identificam claramente quais são os factores de sucesso das nações. Um é a qualidade das instituições. Tem de se investir na qualidade das instituições, e o Estado angolano é um Estado fraco, muito fragiliza-do ao longo deste tempo, as elites com toda a sua fraqueza e com o desvirtuamento, di-gamos, do sistema de enriquecimento e da acumulação primitiva, que funcionou a favor das elites e não do país e criou um fosso brutal. An-gola é dos países mais desiguais do mundo. A qualidade das instituições é absolutamente fundamental a começar no sistema de governação. Depois é a inteligência nas políticas públicas, em particular nas políticas económicas, não adianta anunciar a diversificação da economia se não houver políticas públicas consistentes, e que olhem o que se vai fazer ao sector petrolífero no futuro. Angola cometeu alguns erros vitais no sector petrolífero, sobretudo a aposta grande que fez no deep offshore à espera que houvesse em Angola uma espécie de espelho do que se passava no outro lado do Atlântico, no Brasil, mas o pré-sal em Angola não é o pré-sal do Brasil, essa teoria da analogia entre as duas bacias falhou clamorosamente, porque a abertura do Atlântico Sul não foi uma abertura simétrica, foi assimétrica, e as bacias têm geodinâmicas diferentes. Apostar tudo no pré-sal, com as consequências que se revelaram abaixo das expectativas, provavelmente, foi um erro. A própria oferta petrolífera deve ser diversificada. Atenção que as bacias angolanas, em termos de futuro, continuam a ser prolíferas, por exemplo, e do ponto de vista do gás, na bacia do Kwanza o pré-sal pode ser rico em gás, e o gás vai ser uma fonte de energia absolutamente essencial na transição energética, porque é o mais limpo dos combustíveis fósseis. Mas Angola também não olhou para as suas bacias interiores, para os grandes deltas, a começar pelo Cuando Cubango. Não reanalisou a sua coluna litológica, e pôs todos os ovos no pré-sal, ainda por cima os projectos são muito caros…
E em regime de concessões…
E por isso quando se olha para Angola que chegou a 1.8 milhões de barris por dia de produção, em 2015, e o ano passado foi cerca de 1.37, quer dizer que a produção declinou 24 por cento em 5 anos, e portanto o futuro no país não está no petróleo, nem só no petróleo.Tem de diversificar, daí tem de apostar mais no gás, atenção às energias renováveis, Angola é um país que tem muito potencial em energias renováveis, quer eólica quer solar. A energia solar vai ser uma das grandes energias deste século, pela simples razão que em cada dia que passa recebemos do sol oito mil vezes mais energia do que aquela que o planeta consome. Mas atenção aos outros sectores da economia. Angola tem diamantes, ouro, ferro, fosfatos e múltiplas outras áreas, esses sectores são muito importantes, mas o essencial é criar uma indústria transformadora nacional, uma indústria de manufactura. E Angola tem condições para fazer isso, desde as cadeias alimentares às outras. Tudo isto só se consegue se se identificar quais são os actores, quais são as políticas públicas, e pôr o sistema a funcionar sempre na base da transparência e da prestação de contas.
E no mundo pós-Covid, que nos levou a repensar as prioridades, quais são, na sua opinião, as prioridades para Angola?
As prioridades para Angola são aquelas que transformam os países e criam o sucesso dos países. É a educação, é a qualificação das pessoas, é a saúde, é o sector primário, a agricultura – para as pessoas terem com que viver – é a luta contra a pobreza e contra as desigualdades. E do ponto de vista do modelo económico, tem de ser repensado, atenção que a dependência do petróleo foi fatal para Angola ao longo destes tempos. Aliás, há relatos muito interessantes.Eu vi uma vez uma entrevista da antiga ministra das Finanças da Nigéria, Ngozi Okonjo-Iweala, uma senhora notável, ela explicou porque é que não conseguiu fazer a reforma na Nigéria, exactamente quando os preços do petróleo estavam em valores altamente atractivos e o país gerava receitas.Ela gizou um plano de reformas e quando ia falar com os seus colegas ministros eles diziam: “Mas para que é que vamos fazer essas coisas difíceis, se nós temos o dinheiro fácil do petróleo”. E para mim este é o resumo da situação, e Angola não pode cair na armadilha, se amanhã os preços do petróleo voltarem a subir, deve usar essas receitas para diversificar a economia, desde logo no próprio sector petrolífero, na área petroquímica, nas indústrias adjacentes. E, atenção, a todas as indústrias transformadoras, deve olhar para todas as riquezas que tem, mas tem de criar no país um sistema que seja consolidado, e que aposte muito, na sequência da crise daCovid-19, na resiliência das cadeias locais, do sistema de produção e abastecimento locais. E Angola como outros países africanos não tem feito isso. Se olharmos para o comércio que se faz entre os países africanos é residual, apenas 15 por cento do comércio em África é feito entre países africanos. Se olhar para a Ásia são 58 por cento, para a Europa são 67 por cento. O que é que isto significa em termos estratégicos? Angola pode ser um grande hub não só energético, mas comercial para toda a África Austral, fazendo muito mais comércio com todos estes países. E é curioso que antes da Covid, em 2019, foi assinado o acordo entre quase todos os países africanos…
Está a falar da Zona de Comércio…
Esse acordo é fundamental, assinado por 54 dos 55 países africanos, é o maior acordo que foi assinado desde a criação da Organização Mundial do Comércio, em 1994, e é um elemento crucial. Se olhar para a Europa, se olhar para a Ásia, os mercados continentais, quando funcionam, são fonte de riqueza. O Comércio é uma fonte de geração de riqueza, e os países quando se relacionam através do comércio, para já é pacificador…
Mas Angola teve dificuldades várias, mesmo no âmbito da SADC, sempre funcionou como um país muito fechado…
Mas é um erro. Eu sou angolano, sei muito bem como é que os angolanos pensam, numa perspectiva sempre megalómana, nós não precisamos de outros, somos um país rico, e isso é fatal…
Angola pode reactivar a Agricultura
E o anterior Presidente não contrariou muito essa ideia…
Podemos discutir o anterior Presidente, mas é todo este ciclo: da guerra, da centralização absoluta do poder e depois do maná que veio exactamente quando a guerra acabou, penso que a combinação destes factores inquinou muito o desenvolvimento do país. Não podemos revistar isso, mas temos de olhar para o passado, aliás, quanto mais olharmos para o passado mais longe vemos no futuro, não vamos ficar nas mesmas armadilhas.
Sendo que uma das gran-des vulnerabilidades do Continente africano é a industrialização?
Sem dúvida. É uma das grandes questões, muitos países africanos que sofreram os sistemas de opressão colonial e que penalizaram muito as economias locais, quando as independências foram obtidas, o paradigma, digamos assim, que vinha do passado não foi alterado, e, no fundo, transformaram-se em quê? Em países fornecedores de matérias-primas. E as matérias-primas brutas quando são exportadas não criam cadeias de valor.
E no caso de Angola houve ainda o que se perdeu, perdeu-se, por exemplo, a agricultura…
… tudo! Mas Angola já demonstrou em diversos períodos que é possível reactivar isso. E, portanto, o que é que falha? São as políticas públicas, é a segunda condição do diagnóstico de Acemoglu e Robinson, a inteligência das políticas públicas, sobretudo nas políticas económicas, e depois na questão da industrialização, não basta produzir as matérias-primas brutas, por exemplo, temos em Angola a questão das refinarias, não exportar toda a matéria-prima bruta e explorar toda a cadeia de valor. E depois ter atenção às indústrias adjacentes. E há uma coisa muito importante, que os noruegueses fizeram, e que Angola nunca fez, que é definir os programas que eles chamam de local content (conteúdo local). Repare que os noruegueses não tinham ne-nhum conhecimento sobre a indústria do petróleo e do gás quando começaram e hoje são dos mais avançados do mundo, por que conseguiram endogeneizar o conhecimento, endogeneizar a tecnologia, definir sempre os conteúdos locais em todos os programas: as empresas internacionais vêm mas tem de colaborar com esta universidade, tem de formar estes quadros…
… se tentarmos encontrar uma explicação de porque é que os noruegueses fizeram diferente, vamos descobrir que é essa aposta nos quadros locais, nessa interacção com a academia…
… mas foi imposto pelas políticas públicas. As empresas quando chegaram lá não fizeram isso de mote próprio, as políticas públicas é que determinavam: vem, tem esta concessão, mas é obrigado a formar estas pessoas, a criar estes centros tecnológicos, a ter um processo de endogeneização da tecnologia e do conhecimento. E é isso que muitas vezes os países africanos não fazem.
Não sendo cruel, olhando para a história recente de Angola, o que temos a esse nível de políticas públicas são facilitadores, comissionistas, corrupção, não houve qualquer outro tipo de preocupação, e isso agora paga-se caro.
Mas, repare, sobre as indústrias extractivas há um programa de transparência internacional, e aí os países têm de cumprir aquelas normas, e se Angola aderir – não sei, nesta altura, se aderiu ou não –, mas há uma série de procedimentos que mudam. As próprias multinacionais são obrigadas a declarar o que é que pagam ao Estado, o que pagam e para onde vão esses dinheiros. É por isso que eu insisto na transparência e na prestação de contas, como absolutamente essencial, e hoje pode fazer-se isso porque a informação pode estar digitalizada e dessa forma fazer-se o escrutínio. E é essa a grande transformação que tem de ser feita. É evidente que os problemas e os desafios do Presidente João Lourenço são muito grandes, mas o próprio facto de ter dado esse sinal, e se agora conseguir consolidar todo este programa, pode ser positivo em termos de inaugurar um novo ciclo. Agora tem de ser acompanhado por outros mecanismos, a questão das políticas públicas e sobretudo a mudança no sistema da governação.
O Sr.º Eng.º entra na Sonangol logo nos primeiros anos da criação da empresa?
Entro na Sonangol em 1980.
Quando entrou na Sonangol e viveu esses primeiros anos da petrolífera, alguma vez lhe passou pela cabeça que a empresa se viesse a transformar no “polvo da corrupção” em Angola?
Não. A Sonangol nesses anos, que são os anos imediatamente a seguir à independência, é um case study no mundo todo, e tem a ver com o facto de ser criada num país que estava numa turbulência brutal, e isso deve-se ao Presidente Agostinho Neto que teve visão e a clarividência de dizer: “vamos criar esta companhia, e esta companhia vai ser essencial”. E a Sonangol foi sempre um universo à parte no sistema político angolano. Porque o próprio Presidente sabia que a companhia tinha de funcionar num país em guerra, em guerra também devido à intervenção das superpotências. E poucos meses após a independência, em Março de 1975, já os quadros da Sonangol, o Percy Freudhteal e aquela primeira direcção, estavam em Lisboa a falar com as companhias internacionais, as americanas e sobretudo a Cabinda Gulf, hoje Chevron, que tinha as concessões em Cabinda. E enquanto havia uma grande turbulência no país, eles conseguiram estabilizar os contratos, a Chevron regressou, a produção desenvolveu-se…
A Sonangol era uma bolha?
Uma bolha que funcionou, porque em pouco tempo a produção do país aumentou várias vezes. É um caso de sucesso como tal. E isso mostra que Angola pode fazer as coisas, se tiver as equipas correctas, as políticas correctas e se tiver um mandato muito claro para executar as suas funções. E eu trabalhei nesse período, com o engenheiro Carlos Amaral, com o engenheiro Van Dest, técnicos absolutamente extraordinários, e nós tentávamos controlar a produção em Cabinda com as primeiras máquinas de calcular. Era um desafio. E sempre se desenvolveu uma cultura de defesa dos interesses do país e de relação muito clara com as companhias internacionais com base em regras.
Porque é que saiu da Sonangol.
Em 1982, vim a Portugal tratar da minha vista, na sequência dos três anos que passei na prisão de São Paulo em Luanda, e quando passei por Lisboa, a minha família apelou a que não regressasse, e são aquelas decisões que se tomam e marcam a vida. Mas esse período na Sonangol foi um tempo galvanizador, senti que estávamos a construir uma companhia nova, havia uma relação com as grandes companhias internacionais e a clara assumpção que tínhamos de defender os interesses do país.
E onde é que está o turn point, quando é que a Sonangol se tornou no tal “polvo de corrupção”?
O que pode explicar é, se quiser, o contrataste com a Noruega, e é a questão das instituições e da qualidade das instituições. Repare: Angola é um país jovem que teve a sua independência que tem a sua galinha dos ovos de ouro, que é a Sonangol.
E sobre a qualidade das instituições, acha que estamos a assistir a avanços neste mandato do Presidente João Lourenço?
Para mim é difícil julgar porque não vivo em Angola e não acompanho o dia-a-dia, mas acompanho os grandes desígnios, e eu penso que o Presidente João Lourenço tem razão nos grandes desígnios, na luta contra a corrupção, na moralização da administração pública e nas mudanças que está a introduzir a esse nível. No discurso na Assembleia Nacional, o discurso do dia 15 de Outubro, acho que apontou, e muito bem, aqueles pontos que já focamos sobre a economia, a mudança de modelo económico, a diversificação, o reforço do mercado interno e da produção nacional e depois a diversificação do leque de exportações, e tudo isso ligado a questão da criação de emprego e protecção do emprego, as coisas que eu penso que faltam aqui é uma aposta muito grande, e como já falamos, na qualificação, na educação, na saúde, que são componentes para tudo isto funcionar. Agora o que se passa é que temos que nos interrogar se são as mesmas receitas do passado que estão a ser aplicadas para diversificar a economia, porque se forem as mesmas receitas vai falhar.
E com menos dinheiro hoje…
Com menos dinheiro e com as dificuldades todas que o país tem. Mas eu penso que Angola tem realmente um potencial elevado, agora tem que partir da estrutura produtiva que existe.
Dava-lhe gosto fazer o tal plano de visão estratégica para Angola?
Gosto sempre de pensar em termos estratégicos. Trabalho na indústria do petróleo e gás, a geopolítica e a geoestratégia são parte integrante do meu trabalho, e isso é um aspecto muito interessante. Para responder à sua pergunta, não sei, a vida é o que é, vamos ver o que é que acontece no futuro. A vida é sempre uma surpresa. Não adianta muito às vezes pensarmos o que é que vai ser o futuro. Mas é óbvio que Angola é sempre um país que está no meu coração e que eu acompanho.
O Sr. Eng. passou pela cadeia de São Paulo três longos anos, mas sinto que, apesar disso, é um homem reconciliado com Angola?
Absolutamente.
Como é que vê a relação de Portugal com Angola
São os ciclos habituais de amor e ódio, penso que a relação tem de ser pacificada é do interesse dos dois países trabalharem juntos. Portugal pode ajudar muito em Angola em tudo o que tem a ver com a educação, a qualificação da população, o próprio apoio em termos do sistema nacional de saúde, sobre o território angolano.
Que mensagem final para os leitores?
Eu sou tudo menos fatalista. O futuro está sempre em aberto. Depende de nós, do nosso em-penho e das nossas escolhas, e nós nunca podemos deixar que nos digam que o futuro foi abolido e vai por um determinado caminho. Cabe-nos a nós enquanto cidadãos transformar as coisas. O futuro está sempre em aberto e pode ser uma surpresa boa se trabalharmos para isso.