Sem referir diretamente o nome de João Lourenço, o presidente da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), Adalberto Costa Júnior, não poupa o mandato do Presidente angolano, que critica, em particular, no que diz respeito ao combate à corrupção e na recusa em realizar eleições autárquicas pela primeira vez na história do país.
Em entrevista ao Observador durante uma passagem por Lisboa, Adalberto Costa Júnior diz que “foi um balde de água fria” não se terem realizado autárquicas em 2020 e crê que tal também não venha a acontecer este ano. “O MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] sabe que não ganha, e este é o motivo único e exclusivo porque tem vindo a adiar o país”, atira.
O presidente da UNITA, partido que há vários anos exige mudanças na Constituição, critica também a revisão constitucional anunciada em março por João Lourenço, considerando que é uma proposta “fechada”, que exclui a sociedade e os partidos, surgindo em pleno ambiente pré-eleitoral. Ataca, particularmente, o facto de a proposta não incluir mudanças na forma de eleger o Chefe de Estado. “É um modelo absolutamente atípico”, sublinha, defendendo a eleição direta do Presidente da República.
Já de olhos postos nas eleições gerais de 2022, Adalberto Costa Júnior confirma que estão em curso negociações com o antigo membro da UNITA Abel Chivukuvuku e com o Bloco Democrático para a formação de uma “frente democrática” contra o MPLA. No entanto, antevê dificuldades e exige “transparência” às autoridades, defendendo a presença de observadores internacionais nas próximas eleições.
Sobre a corrupção, que considera “endémica” em Angola, o líder da UNITA considera que as autoridades angolanas se refugiam em “processos ilustres” — como os casos que envolvem os filhos do ex-Presidente José Eduardo dos Santos — que apenas servem para convencer a comunidade internacional de que a corrupção está a ser combatida. Contudo, na sua ótica, a realidade é que existe um duplo padrão: “A proteção dos amigos e a exposição dos adversários”.
Está há cerca de um ano e meio na presidência da UNITA, sendo que grande parte desse período foi passado em contexto de Covid-19. Começo por lhe perguntar que avaliação faz da resposta do governo angolano ao combate à pandemia?
O governo angolano reagiu muito rápido, e reagiu bem, no início. Tomou a decisão de propor o estado de emergência — a UNITA antecipou a posição do governo — e agiu mais rápido, inclusive, do que o Governo português. Mas, depois, em Angola não se investe muito na compra de testes, temos funcionado quase só com ofertas. Angola não é um país assim tão pequeno, destituído de meios, que tenha de funcionar da solidariedade. Apesar da crise, apesar das dificuldades, há dinheiro para se gastar em tantas outras questões, algumas supérfluas. Esta é uma prioridade e dever-se-ia investir muito mais, porque este é um verdadeiro drama. A segunda questão é que a pandemia de Covid-19 serviu, infelizmente, para o governo incumprir metas estratégicas — este é que é o lado mais grave —, nomeadamente a não realização das eleições locais, das autarquias, a anulação para um período de absoluto desconhecimento, e o risco que existe hoje de em quaisquer circunstâncias, que se possam entender como negativas para a projeção do partido que está no governo, poder-se adiar o país em função de interesses de âmbito partidário. Este risco, em Angola, infelizmente existe.
Acredita que existe possibilidade de que as eleições autárquicas se realizem em 2021?
Citando o senhor Presidente da República, elas não se vão realizar. Porque o Presidente da República, já em 2020, quando afirmou que não haveria eleições, no mesmo ato afirmou também que elas não se realizariam em 2021. Foi um balde de água fria para todos. Nós sabemos que as eleições, em si só, não vão fazer um milagre para solucionar a crise económica. Mas é um caminho incontornável para a estabilidade, para a partilha de direitos, para o acréscimo de cidadania e para acrescentar condições e fatores de desenvolvimento. Angola é o único país naquela região que, ao longo destas dezenas de anos, mesmo com a guerra terminada, não tem poder local instituído. E todos sabemos que o poder local é um complemento ao poder central, e é uma governação autónoma, que traz uma maior responsabilização, uma intervenção de maior proximidade entre os governantes e os governados. E no caso de Angola, onde há vícios, onde há uma enorme desorganização, onde há assaltos ao erário permanentes, a fiscalidade de proximidade do cidadão acabaria com muito desmando. Nós continuamos a pensar que precisamos de realizar autárquicas em todo o país, e em simultâneo. Este é um dos grandes elementos de divisão entre nós e a visão do MPLA/governo, que defende a realização das autárquicas, mas não em simultâneo. Quer iniciar um processo e terminá-lo 30 ou 40 anos depois. Isto vai trazer mais dessintonia, mais desigualdades, diferenças no mesmo país. Tudo isto é absolutamente inaceitável. O MPLA apenas tem uma lógica de poder, infelizmente. Não uma lógica de sociedade.
Hoje, os governantes são os multimilionários do país e estes não conseguem justificar nos seus vencimentos o património bilionário que possuem, dentro e fora do país
Pensa que João Lourenço, de alguma forma, possa temer que, caso as autárquicas se realizem antes das eleições gerais, a oposição poderia ter um bom resultado? Acha que esse é um dos motivos para que estas eleições tenham sido sucessivamente adiadas?
Angola, desde a sua independência, tem sido governada pelo mesmo partido. Portanto, desde 1975 até hoje, tem sido o MPLA que tem governado o país, o que criou inúmeros vícios. O MPLA tem sondagens, mandou fazê-las, e portanto sabe que não se encontra em momento de poder ganhar eleições. Por efeito da sua governação de longo prazo, que tem desgastes; por efeito da má governação; por efeito da corrupção alta que está casada com o MPLA, isto é completamente indesmentível. Hoje, os governantes são os multimilionários do país e estes não conseguem justificar nos seus vencimentos o património bilionário que possuem, dentro e fora do país. O combate à corrupção que tanto se divulga, na prática, não se verifica. Melhora-se um bocadinho uma ou outra linguagem, mas a prática não mudou. Portanto, o MPLA está com uma enorme dificuldade de virar esta página, e tem medo do day after. O MPLA sabe que não ganha, e este é o motivo único e exclusivo por que tem vindo a adiar o país.
João Lourenço anunciou uma revisão constitucional, que é uma das reivindicações que a UNITA tem feito ao longo dos anos. Porque é o que partido se absteve, em março, na votação no parlamento angolano?
Disse bem, a UNITA há muitos anos que tem proposto a necessidade de se fazer uma revisão da Constituição. A Constituição que temos hoje foi aprovada em 2010 e trouxe, de imediato, uma enorme contestação da sociedade no seu todo. Angola continua a ser um Estado partidário, onde todas as instituições têm uma extensão dos interesses do partido, mais do que uma extensão do serviço público. O senhor Presidente da República sempre disse que não iria tomar a iniciativa de abraçar a revisão da Constituição. De repente, numa altura em que estamos em pré-campanha eleitoral, em fase imprópria, aparece uma proposta fechada, que não foi partilhada com ninguém. Não é aconselhável que, num país em que toda a sociedade vem, ano após ano, a pedir uma revisão da Constituição, ela surja sem diálogo.
Foi por ser uma proposta fechada que a UNITA se decidiu abster na votação?
A sociedade toda está a criticar, não apenas a UNITA. E a abstenção foi uma medida, até, no limite do bom senso. Porque apresentar uma proposta destas… até diria que, provavelmente, deveríamos ter uma posição mais dura do que esta. Vamos tentar neste espaço fechado melhorar alguns destes aspetos, porque estamos a ver uma proposta de revisão que vai levar a regressões.
Olhando para a proposta do Presidente João Lourenço, com que aspetos é que concorda e quais são aqueles que realmente não estão presentes e que para UNITA são fundamentais?
É fundamental termos os angolanos a escolherem quem os governa de forma absoluta.
Ou seja, a eleição direta do Presidente da República.
O modelo presidencial em que assenta o sistema político do nosso país aconselha a que o Presidente da República tenha um escrutínio democrático na sua escolha. Porque hoje não se escolhe o Presidente da República de forma direta. Ele vem de boleia na eleição do parlamento, num modelo absolutamente atípico. De um só boletim elegem-se dois órgãos de soberania distintos. Isto é impensável! Ainda por cima, na Constituição, o Presidente é o titular único do poder executivo. Na nossa Constituição diz que os ministros são meros auxiliares do titular único do poder executivo. Há ali uma espécie de um Deus com poderes reforçadíssimos, que manda em tudo e em todos, e que ainda por cima não vai à Assembleia [Nacional] prestar contas. Esta é uma questão muito perigosa.
Nós estamos à procura de formatar uma ampla frente democrática para a alternância. Exatamente porque temos a razão da consequência do que é termos um partido único na governação. Temos bem a noção de que Angola carece de inclusão, de atrair os cidadãos a terem confiança nos seus governantes
Chegou a afirmar, quando foi anunciada esta revisão constitucional, que temia que a mesma fosse utilizada como uma desculpa para adiar as eleições gerais de 2022. Ainda tem este receio?
Naturalmente. Não faz sentido dizer “não, não, não, não” quando havia tempo, e quando chega a pré-campanha dizer sim. A proposta de revisão constitucional nem sequer foi feita na Assembleia Nacional, o que seria a coisa mais normal. Foi feita no conselho de ministros, o que já de si determina uma imagem e uma forma de ver as instituições que é um bocado preocupante.
Como referiu, já estamos, de certa forma, em pré-campanha eleitoral. A UNITA propôs uma frente patriótica, uma coligação com o PRA JÁ — Servir Angola e com o Bloco Democrático, para tentar impedir a vitória do MPLA. Como estão a correr as negociações? Podemos esperar um anúncio definitivo sobre esta coligação em breve?
Não é para tentar impedir a vitória do MPLA. Isto dá a ideia que a vitória do MPLA é uma realidade já confirmada. Este é um outro elemento perigoso que temos no país. Hoje já se tem a certeza que os resultados já estão formatados. E vem de onde este posicionamento? Vem do facto de que os resultados eleitorais não têm saído das urnas. Nós estamos à procura de formatar uma ampla frente democrática para a alternância. Exatamente porque temos a razão da consequência do que é termos um partido único na governação. Temos bem a noção de que Angola carece de inclusão, de atrair os cidadãos a terem confiança nos seus governantes. E, de facto, nós temos hoje uma negociação com o Abel [Chivukuvuku] e os seus apoiantes e também com o Bloco Democrático. É uma negociação que ainda não foi totalmente fechada, mas que está muito bem encaminhada. Mas não é exclusiva, não se limita apenas a estas duas organizações.
Admite, portanto, estender esta coligação a outros partidos? Por exemplo, a Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), o segundo maior partido da oposição, não está, para já, incluída.
Nós não excluímos ninguém. Tal como disse, estamos a formatar a criação desta ampla frente democrática para fazermos alternância e, acima de tudo, termos a sociedade civil connosco, que é um fator fundamental.
Caso esta coligação vá adiante, quem será o cabeça de lista para as eleições gerais de 2022? Comparativamente a Abel Chivukuvuku [do PRA JÁ — Servir Angola, partido rejeitado pelo Tribunal Constitucional] e Justino Pinto de Andrade [líder do Bloco Democrático], considera-se como o candidato natural por ser o líder do maior partido da oposição?
Estamos em fase de negociação dos conteúdos e seria um erro irmos para a nossa visão exclusiva da modalidade de o fazer. Temos um tempo limite para concluir estas abordagens e, tal como já o afirmei e é uma realidade, em Angola está-se em pré-campanha e não há intenção de abraçá-la com atrasos. Mais menos mês menos mês teremos tudo fechado e aí vamos entender em que modalidades é que tal se concluiu.
Quais vão ser os principais desafios para a oposição angolana nestas eleições que se aproximam?
O maior desafio, indiscutivelmente, é a transparência, a democraticidade do processo eleitoral, a segurança do voto. Nós temos desafios que já conhecemos do passado, nomeadamente o papel da Indra e da Sinfic, empresas que têm trazido muita polémica nos processos eleitorais anteriores e que ninguém de bom-senso em Angola está em condições de voltar a abraçar. Elas não foram fatores de transparência, e foram repetidamente trazidas exatamente por isso. Estamos antecipadamente avisados de que temos necessidade de abraçar um processo em que estejam garantidos os pressupostos da democracia, da pluralidade, da transparência e também a presença da observação internacional. Nos últimos atos eleitorais, o governo angolano não aceitou a presença de observadores, por exemplo, portugueses ou europeus. Pergunto-me porquê. Vamos ter a necessidade de fazer diferente.
O combate à corrupção foi uma das prioridades apresentadas pelo Presidente João Lourenço quando foi eleito. Considera que Angola melhorou neste aspeto nestes quase quatro anos de presidência?
O custo de vida está muito mais elevado, o desemprego disparou, a pobreza disparou, o kwanza desvalorizou incomensuravelmente. Angola está, economicamente, numa circunstância dramática, muito pior em 2021 do que em 2017. Temos um país em que a dívida pública ultrapassou de longe o PIB. Nestas circunstâncias, é preciso encontrar respostas pragmáticas e claras que invertam este quadro. O assalto ao erário público não diminuiu, não desapareceu, e a estratégia do repatriamento de capitais não está a funcionar. Eu sou deputado e, no primeiro ano [2017] em que o Presidente recém eleito foi à Assembleia Nacional e fez um estado da nação, foi mais um estado de promessas. Foram imensíssimas promessas e não houve diagnóstico.
Sente-se dececionado com as promessas feitas por João Lourenço?
A corrupção é endémica em Angola, infelizmente. E os fatores claros de combate à corrupção não estão excluídos da prática comum. Dou-lhe um dos mais negativos de todos eles. Quando se tem uma governação, tem-se uma liderança. Olha-se para aquela liderança como um exemplo a seguir. Mas quando esta liderança que deveria ser o exemplo a seguir não reformou os seus métodos e continua a fazer negócios consigo própria, é quase impossível impedir o caminho de degradação dos atos e dos comportamentos, porque são imitados logo a seguir. Hoje, temos alguns processos ilustres, que serviram para que uma certa comunidade internacional pudesse acreditar que estávamos numa nova era.
A que processos é que se refere?
Processos ilustres que envolveram a prisão de um filho de um ex-Presidente da República [José Filomeno “Zenu” dos Santos], a prisão de um ex-ministro dos Transportes [Augusto Tomás], a prisão de uma ou duas figuras de exceção ou os processos a Isabel dos Santos. [Estes processos] criaram a ideia de que o combate à corrupção era uma realidade efetiva. O tempo trouxe outras realidades. Um ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente da República [Edeltrudes Costa], com evidentes indicadores de corrupção, foi protegido pelo Presidente da República. O processo está a repetir-se. Ministros acusados de desvios escandalosos de bens públicos, protegidos mais uma vez. O que estamos a ver hoje é que há um sentido duplo de atitude. “Perseguem-se” adversários e protegem-se outros. Com esta atitude, o combate à corrupção está perdido.
No início desta semana, foi noticiado que a Justiça portuguesa entregou a Angola uma lista de fortunas angolanas aqui em Portugal. Nessa lista temos nomes de vários filhos do ex-Presidente José Eduardo dos Santos. Este é um avanço importante no combate à corrupção em Angola?
Gostaria que fosse. Depende dos passos que se farão a seguir. Nós não conhecemos essa listagem e li por estes dias que não houve entrega da lista. Não sei se é verdade ou não. Há uma série de notícias contraditórias. Mas quero acreditar que esta entrega foi feita e faço votos de que o levantamento tenha sido efetivamente universal, que não tenham ficado escondidos os membros do governo que estejam envolvidos na alta corrupção e que tenham bens em Portugal, ou que tenham administradores nomeados dos seus bens com facilidade de identificação de que aqueles bens lhe pertençam. Que seja uma lista que denote universalidade na sua constituição e não uma repetição do que temos visto: a proteção dos amigos e a exposição dos adversários.
Quem é que João Lourenço tem protegido? Já referiu o caso do chefe de gabinete, Edeltrudes Costa.
Eu não substituo a Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola. Não é meu propósito fazê-lo, mas olhamos para o governo e para uma boa parte dos administradores e vivem vidas incompatíveis com os seus salários. Só por aqui há indicadores mais do que objetivos para a PGR atuar. Mas depois temos outros casos que foram denunciados de forma muito clara, e se mesmo os casos escandalosamente denunciados não estão a ser investigados por serem membros do governo, então temos muito trabalho pela frente.
Queria ainda falar sobre a questão dos jovens, um grupo que tem sofrido bastante com a crise económica, perante a falta de perspetivas de futuro. Como é que responde à ansiedade dos jovens?
Antes de mais, com diálogo. Os jovens precisam de compreensão, precisam de ver as suas instituições abertas. As instituições devem também saber interpretar as ansiedades da juventude. Deve haver proximidade e interação, porque a juventude sofre imenso. É comum ouvir-se dizer que a juventude está radical nos seus posicionamentos. Ela resulta efetivamente da existência destes pressupostos. Mesmo assim, com muito esforço, com pagamentos bastante elevados de propinas, há um número elevado de jovens que acaba por concluir a sua formação. O que é expectável é que, concluída a sua formação, num país daquela dimensão, conseguissem emprego, mas não é isso que acontece. Um jovem que acabe hoje a sua formação tem uma licenciatura que não lhe permite obter um emprego. Uma boa parte desta realidade assenta no facto de que o país carece de quadros técnico-profissionais. É preciso, antes de mais, reformar o próprio sistema de educação. É preciso fazer uma profunda reforma nos comportamentos, é preciso criar uma nova mentalidade, responsabilizar as pessoas. É urgentíssimo mudar o status quo.
Perante a falta de resposta, muitos jovens têm saído às ruas. Nos últimos meses, lembro-me de grandes manifestações em Luanda, em novembro do ano passado, ou no Cafunfo, em fevereiro deste ano. Como avalia a resposta das autoridades às reivindicações dos manifestantes, que têm sido sobretudo jovens?
Infelizmente começaram por agir de forma violenta, com mortes, com muitos danos, prisões e raptos das lideranças das manifestações. E hoje está visível que, quando a manifestação é tida como não letal, é autorizada. Quando a manifestação é tida como não positiva, porque está a criticar, não é autorizada e continua-se a prática do rapto das lideranças das manifestações. É tudo isto que circunscreve violações à constituição, aos direitos individuais e coletivos. Cafunfo, então, é um caso de facto lamentável, onde temos de nos fixar e parar um pouco: afinal de contas, o que é que aconteceu em Cafunfo?
E tem resposta para isso?
As autoridades hoje continuam a dizer que houve seis mortes e, infelizmente, vi com muita preocupação a mais alta entidade do Estado vir falar do número de mortos antes de a comissão de inquérito ir para ao terreno. É muito difícil que uma comissão de inquérito vá desmentir o Presidente da República. Quando este, numa conferência, afirma que morreram X pessoas, a definir as balizas do que ocorreu, sem que a comissão de inquérito tivesse feito o seu trabalho, fiquei preocupadíssimo, para não dizer assustado. As entidades independentes dizem absolutamente o contrário do que o que está a dizer o governo, e isso é perigoso e mau. Temos a igreja católica, através da Comissão de Justiça e Paz, a apresentar um relatório, fruto de uma investigação no terreno, que desmente categoricamente o que governo diz. E este relatório fala num massacre claro, fala de 55 mortos. Fala de desaparecidos que não estão ainda todos identificados, de rusgas, de operações de limpeza, de tortura, de pessoas chamadas para os comandos da polícia e sujeitas a um produto químico que as coloca inconscientes, mas, durante o processo, fazem declarações, que depois não sabem o que disseram. Isto circunscreve um quadro perigosíssimo de violações de direitos humanos. Pensávamos que estávamos já sem este tipo de práticas no nosso país.