Há vinte anos, as dissensões políticas em Angola resolviam-se pela força das armas, resultando em mortes, violência e destruição. Depois de 2002, instalou-se uma espécie de anestesia geral provocada pelo efeito soporífero do dinheiro espalhado a eito; qualquer confronto político era apaziguado por automóveis de luxo e outras mordomias.
A crise económica e financeira que começou em 2014, e que esvaziou definitivamente os cofres públicos, obrigou ao corte com a política de esbanjamento e impôs o início daquilo que se denominou como o combate à corrupção. A necessária reforma económica, aliada à luta contra a corrupção, conduziu à caducidade do consenso político pós-2002 e à intensificação da batalha política, que neste momento atinge um auge poucas vezes visto nos anos mais recentes.
No entanto, apesar da estridência verbal do combate político actual, a verdade é que não se ouvem armas nem tiros: a disputa tornou-se essencialmente legal, logo, judicial. Trata-se de um resultado da opção inicial de João Lourenço de judicializar, através dos meios comuns existentes, o combate à corrupção. O foco virou-se indelevelmente para os tribunais, os juízes e o aparato circundante. Trata-se de uma enorme vantagem civilizacional: o confronto já não é resolvido pelos tiros das armas, mas pelo embate entre advogados, arbitrado por juízes. O confronto decorre num novo cenário e é resolvido de forma pacífica.
Este foco no poder judicial tem trazido à tona o desempenho dos tribunais superiores, e os seus presidentes, que antes de 2017 eram figuras desconhecidas e pouco discutidas, tornaram-se objecto de escrutínio, veneração ou aviltamento nas redes sociais e entre a opinião pública. Basta lembrar que, no início do mandato, quando João Lourenço promoveu a troca dos presidentes do Supremo Tribunal pelo Tribunal Constitucional, e Manuel Aragão sucedeu a Rui Ferreira e vice-versa, foram poucos os que tomaram atenção. Hoje é diferente: “qualquer mudança na cúpula dos tribunais é observada atentamente, gerando comentários e comoções intensas entre os cidadãos”.
São estas mesmas reacções que nos levam a atentar no papel desempenhado pelos recentes presidentes dos tribunais Constitucional e Supremo, e nas expectativas criadas, respectivamente, em torno de Laurinda Cardoso e de Joel Leonardo.
Comecemos por Laurinda Cardoso. A sua nomeação foi recebida com algum cepticismo, por razões objectivas: vem directamente do Bureau Político e do governo, o que exige um escrutínio reforçado do exercício das suas funções. Mas é preocupante que isto tenha conduzido imediatamente a um excessivo alarde, atribuindo-se à nova juiz-presidente todos os defeitos e más intenções. Há que reafirmar o óbvio: a nomeação de Laurinda Cardoso como juiz-presidente do Tribunal Constitucional obedeceu aos trâmites constitucionais e legais e, embora existam razões objectivas para a sujeitar a uma reforçada vigilância pública, não se deve esquecer que existe um ethos judicial que se espera que todos os juízes respeitem.
O ethos judicial define que, a partir do momento em que uma pessoa assume funções judiciais, passa a desempenhar essa função como árbitro imparcial e independente, que aplica a justiça segundo o Direito.
Ora, em relação à juíza Laurinda Cardoso, este é o tempo de espera e de esperança: espera para ver a sua actuação concreta e a forma como interiorizou o ethos judicial; e esperança de que venha a revelar-se uma juíza à altura das suas funções.
Relembremos a história do juiz Earl Warren, que foi presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos entre 1953 e 1969 e é considerado um dos melhores presidentes, se não o melhor, desta instituição. Na época de Warren, o Supremo Tribunal proibiu a segregação racial, criou os chamados Miranda Rights – a famosa expressão que vemos nos filmes, “you have the right to remain silent”, usada no momento da detenção policial –, entre outras inovações e progressos sociais. Foi uma época de revolução judicial. E, no entanto, Earl Warren era um político pertencente ao Partido Republicano, que tinha sido candidato a vice-presidente dos Estados Unidos por esse Partido em 1948, e governador da Califórnia entre 1943 e 1953. Foi nomeado para o Supremo por Dwight Eisenhower, presidente dos EUA que integrava o Partido Republicano. Earl Warren foi um político nomeado presidente do Supremo Tribunal por um militante do seu próprio partido, tendo-se transformado no mais progressista e admirado dos presidentes do Supremo Tribunal. Ou seja, alguém que absorveu magistralmente o ethos judicial.
No caso de Joel Leonardo, nomeado presidente do Supremo em Angola em finais de 2019, o que tem vindo a constatar-se é que não corresponde às expectativas. Desde logo, um dos principais obstáculos na luta contra a corrupção é o mau funcionamento dos tribunais. É certo que a Procuradoria-Geral da República (PGR), embora com deficiências técnicas e alguns atrasos, tem levado a cabo e encerrado muitos processos criminais, procedendo à respectiva acusação. E tem sido nos tribunais, sobretudo no Supremo, que os processos esbarram, se enrolam ou entram em labirintos inexplicáveis. O próprio Joel Leonardo é, de tempos em tempos, alvo de acusações de nepotismo ou arrogância por parte de colegas, o que torna o seu magistério sempre discutível e alvo de dúvidas permanentes. Não tinha de ser assim. Joel Leonardo poderia ter privilegiado, no seu mandato, a celeridade judicial, a transparência de procedimentos e a harmonia entre juízes.
A conclusão que se retira é que este é o tempo dos juízes: eles estão sob os holofotes da sociedade civil e da opinião pública, e deles dependerá o futuro do Estado Democrático de Direito em Angola.