O jornalismo é, sabemos, um ofício geralmente pouco seguro. Um jornalista que se preze, digno dessa denominação, tem noção de que os perigos contra a liberdade de imprensa não envolvem somente assassinatos, mas há também ataques não letais (verbais) e ameaças de agressão física, mesmo contra as suas fontes, não estando as famílias dos profissionais isentas deste perigo.
Em qualquer um dos casos, nunca uma ameaça deve constituir motivo para que os jornalistas deixem de cumprir com o seu dever profissional de informar, o dever que torna nobre a missão.
O direito de ser informado não é apenas um direito consagrado na Constituição angolana. Informar e ser informado é um direito humano fundamental, reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos [ONU].
Vem essa questão a propósito de um comunicado do principal canal de televisão do regime de Luanda, a Televisão Pública de Angola [TPA], que anunciou não mais cobrir as actividades da UNITA, o maior partido na oposição, até que a direção de Adalberto Costa Júnior peça desculpas públicas e se retrate sobre a agressão verbal de que foi alvo uma equipa de jornalistas do referido órgão destacada na marcha de sábado [11.09], na capital angolana.
Não se sabe, em rigor, se os supostos agressores teriam sido militantes ou apenas jovens simpatizantes e defensores da causa denominada “transparência e eleições livres e justas” em 2022. Evidentemente, se foram ou não militantes, o ônus da responsabilidade recairá sempre sobre o organizador da manifestação.
Entretanto, dois dias depois (13.09), uma outra estação, a Tv Zimbo, anteriormente ligado a antigos homens de confiança do ex-presidente José Eduardo dos Santos e que ficou sob controlo do Estado angolano, emitiu um comunicado idêntico, reafirmando que, doravante, deixará ”de dar cobertura às actividades promovidas pela UNITA, não entrevistar os seus dirigentes, nem militantes ou outros responsáveis do partido”.
Tanto o comunicado da TPA como o da Tv Zimbo foram apoiados, no mesmo dia, por dois outros, do Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social (MINTTICS) e do secretariado do Bureau Político do MPLA, o órgão de gestão do partido do Governo.
Na história do jornalismo universal, nunca se tinha assistido a coisa do gênero. Na Europa, onde cada vez mais se assiste à ascensão da extrema direita, que coloca em causa os princípios de cooperação, não discriminação, solidariedade e democracia, não há registo idêntico.
Nem mesmo, aliás, nos regimes mais repressivos do mundo, a exemplo dos de Daniel Ortega e de Nicólas Maduro, os senhores deuses da Nicarágua e da Venezuela. A mídia pública destes regimes autoritários, pelo que se tem memória, nunca decidiu “vetar” as actividades da oposição…
O raciocínio é simples. Pode o Josina Machel (uma das principais unidades de saúde de Angola), um hospital público, recusar-se a atender um paciente pelo facto dos familiares deste terem agredido, verbalmente, alguns funcionários da instituição?
Pode um órgão de comunicação social, mais ainda se tratando de uma estação pública, paga com o dinheiro dos contribuintes para prestar serviço público à sociedade, se recusar a fazer cobertura das actividades do segundo maior partido?
O que seria do mundo e do jornalismo em si se não existissem jornalistas como a alemã Souad Mekhennet, que nos últimos 20 anos arriscou a sua vida para cobrir o extremismo islâmico e entrevistou líderes da alta hierarquia da Al Qaeda, dos Talibãs e do autoproclamado Estado Islâmico (EI), apesar de centenas de jornalistas terem sido decapitados por estes grupos extremistas muçulmanos?
Apesar de qualquer agressão contra jornalistas constituir motivo de indignação e um entrave à liberdade de imprensa, não deixa de ser subversivo aos valores do jornalismo e do estado democrático de direito o anúncio das duas televisões públicas de Angola. Uma postura que, em rigor, espelha o endurecimento do regime do Presidente João Lourenço contra aquele que mais periga o seu poder: Adalberto Costa Júnior.
Se antes o alvo a abater era apenas o líder da oposição, o foco de um “plano” engendrado pelo MPLA, e desvendado pelo semanário angolano Novo Jornal, tudo indica que, agora, a estratégia de manutenção do poder passe por silenciar toda a organização (UNITA).
Um plano que inclui a vigilância da imprensa autónoma do Governo. Com mais de 30 milhões de habitantes, não deixa de ser curioso que Angola possua apenas dois jornais em circulação (Novo Jornal e Expansão), exceptuando o Jornal de Angola, uma espécie de voz oficial do Governo. Ainda esta semana, na sequência da “chuva” de suspensões da licença de vários órgãos de comunicação social, a 21 de abril passado, o ministro responsável pela comunicação social do Governo Lourenço, Manuel Homem, fez saber aos gestores da ZAP VIVA, pertencente a Isabel dos Santos, que o regresso da emissão está condicionado ao encerramento da área de informação. Ou seja, o regime quer assegurar que o canal de televisão da filha do ex-presidente não passará informações que não estejam alinhadas com o actual poder.
É a ditadura disfarçada de cordeiro.
Jornalista e Fotografo