Em ano de eleições, continua em vigor um alegado acordo de publicidade celebrado entre o Governo angolano e a Euronews, canal que assumiu divulgar notícias favoráveis ao regime. Ex-eurodeputada já tinha denunciado caso.
Ana Gomes é contra a propaganda paga com dinheiro público da União Europeia (UE) para promover governos cleptocratas, como era o caso de Angola. Foi a ex-eurodeputada que denunciou junto de instâncias da UE a existência de um contrato de publicidade entre a Euronews e o Governo angolano.
Quando era membro do Parlamento Europeu, a política portuguesa escreveu à alta representante para a política externa, Federica Mogherini, e à comissária para a economia e sociedade digital, Maryia Gabriel, a manifestar o seu desagrado, depois de ter sido alertada sobre a existência de um contrato com o referido canal de televisão.
“Fui contactada pelo próprio diretor da Euronews, que veio ver-me a Bruxelas. Fiz uma visita à Euronews em Lyon (França) e verifiquei que, não obstante terem muito bons jornalistas, confirmava-se este tipo de entendimentos”, afirma a política.
Uma fonte bem informada confirmou a Ana Gomes a existência do referido acordo, estabelecido em 2017, entre o já extinto GRECIMA (Gabinete de Revitalização e Execução da Comunicação Institucional e Marketing da Administração de Angola) e a estação televisiva europeia, então detida por um milionário egípcio.
Ana Gomes diz ter sido alertada pela propaganda que via o canal de televisão a fazer ao regime de José Eduardo dos Santos. “Percebi que havia o mesmo tipo de propaganda, por exemplo, em relação ao regime do Azerbeijão, que era propaganda paga”, conta.
Sem sinais de mudança
“A mim, incomoda-me que as autoridades europeias, em particular da Comissão, com a responsabilidade por uma informação isenta e independente, não tenham atuado de forma mais clara para mudar a situação na Euronews”, conta Ana Gomes, dizendo que não deseja o fim do canal, mas afirma não ter informações acerca da alteração desta situação.
O acordo visava divulgar notícias favoráveis ao regime angolano, com realce para as oportunidades de investimento.
A evidência da parcialidade da Euronews foi mais notória durante a campanha eleitoral em Angola, em 2017, quando o canal televisivo europeu deu ênfase aos discursos do então candidato João Lourenço, omitindo falar das reclamações sobre as irregularidades levantadas pela oposição angolana.
De acordo com Ana Gomes, o então diretor do GRECIMA foi condenado recentemente em Angola a 14 anos de prisão, por utilizar os recursos financeiros públicos do gabinete em causa.
Para a política, isto é um sinal de que o seu alerta à Comissão Europeia era fundamentado e “exigia uma intervenção mais clara e mais determinada” para pôr fim a esta situação, que provavelmente se repete com outros países.
A ex-candidata às presidenciais em Portugal considera que a Euronews tem potencial para ser “um canal sério e independente e que garanta a isenção das notícias”.
Acordos com “mais de 40 governos”
Em reação, a direção da Euronews respondeu à DW África, por e-mail, que “tem acordos de publicidade e patrocínio com mais de 40 governos em todo o mundo”.
A estação dá conta que “a promoção do turismo e investimento é o grande setor de publicidade em todos os canais de notícias internacionais e de negócios”. A direção do canal europeu assume que o acordo com o Governo de Angola “é uma parceria deste género”.
O Gabinete de Relações Públicas da estação refere ainda que “o conteúdo patrocinado, sempre claramente identificado como tal, está em conformidade com as diretrizes de publicidade da lei de difusão francesa e não tem afeta a linha editorial da Euronews.”
Propaganda ao Governo angolano
Sedrick de Carvalho, um dos 17 jovens angolanos julgados e condenados em 2016 por alegados atos preparatórios de rebelião, também denunciou o acordo numa recente conferência no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), à luz dos últimos acontecimentos em Angola.
O ativista, radicado na Europa, diz que “a Euronews continua a fazer uma campanha de propaganda às obras realizadas pelo Governo angolano.”
“Basta assistirmos à Euronews para ver isso. Há uma Angola que acontece na Euronews que quem está em Angola não vê”, afirma o ativista.
Em declarações à DW, Sedrick de Carvalho considera preocupante um contrato desta natureza em ano de eleições em Angola.
“Dado o seu comportamento nas eleições de 2017, temos todos de questionar qual será o posicionamento da Euronews neste ano eleitoral, no que concerne à cobertura da campanha e das eleições que vão desenrolar em Angola”, afirma.
Uma campanha comprada à Europa
Tal como referiu na denúncia, o “contrato é opaco” e, até então, “ninguém teve acesso” ao documento. Por isso, Sedrick de Carvalho receia que “se parta para as eleições com a Euronews a fazer um trabalho de publicidade, de propaganda eleitoral, que favorece nomeadamente o MPLA, no poder desde 1975”.
Sedrick prevê que a estação adotará o mesmo comportamento e que este é “inclusive, discriminatório como foi em 2017”.
Dois anos depois do escândalo “Luanda Leaks”, Ana Gomes lembra a “total cumplicidade” que havia entre Angola e Portugal durante o regime de José Eduardo dos Santos.
E, neste âmbito, aponta o facto de alguns órgãos da comunicação social portuguesa como a SIC, também vítimas de proibições, terem sido impedidos de cobrir o que se passava em Angola.
Ainda em relação à Euronews, Ana Gomes lamenta que a estação europeia tenha sido vendida a um fundo português com “gente pouco recomendável envolvida em negócios altamente questionáveis na Colômbia e na Hungria”.
Interroga, a propósito, sobre qual será o futuro da Euronews se continuar a ser manipulada, “pervertendo” os objetivos de uma informação independente e isenta de um órgão financiado pela União Europeia.