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As eleições que se aproximam têm um grau de disputa e competição pouco visto em muitos países do mundo, e em “Angola são das mais intensas dos últimos tempos”

Nota-se no ar um ambiente de tensão, eléctrico. As eleições que se aproximam têm um grau de disputa e competição pouco visto em muitos países do mundo, e em Angola são das mais intensas dos últimos tempos.

Não se pode dizer que não exista uma democracia prefacial no país – os momentos preparatórios da democracia sucederam e são um facto.

O problema coloca-se quando esta animada disputa não constitui um prefácio à democracia, mas sim um prólogo ao confronto violento e à destruição das instituições. A competição eleitoral não deve ser uma ocasião em que os partidos tentam derrubar a ordem constitucional ou pôr em causa as instituições, mas sim um momento em que, dentro das regras do jogo, alcançam o número de votos suficiente para formar governo e legislar.

Dito de forma simples, o processo eleitoral deve ser encarado como algo que corre dentro de regras por todos aceites e por todos cumpridas; não pode ser um “vale tudo, menos tirar olhos”. É por isso que devem existir instituições acima de qualquer suspeita e que se mantenham fora da discussão. Por exemplo, na Grã-Bretanha, não se coloca a rainha no meio da disputa política, e respeitam-se os tribunais e os juízes, bem como as instituições em geral. Nos Estados Unidos, há uma veneração sagrada à Constituição.

Em Angola não se pode transformar cada eleição numa ameaça a tudo e a todos, e menos ainda à ordem constitucional. Convém que exista consenso entre os partidos políticos sobre algumas matérias fundamentais de Estado, matérias tomadas por todos como permanentes, mesmo no meio das maiores mudanças.

Em artigo anterior, Rafael Marques apelou a um pacto de regime a propósito da instituição das autarquias. Defende aí um período de transição e um calendário de acções acordado entre os partidos políticos, de modo a permitir a implementação por acordo das autarquias em todo o país.

Esta é a melhor forma de criar autarquias locais sem gerar barafunda: firmar-se um acordo prévio e público entre os principais partidos do sistema constitucional quanto às datas e aos modos de implementação das autarquias locais. Assim, como se diz popularmente, todos “puxariam para o mesmo lado”.

Um outro sector que merece intervenção e acordo pluripartidário com vista ao seu regular e eficaz funcionamento é o da Justiça. “Não se pode negar que o mandato do presidente João Lourenço colocou a Justiça no centro das atenções. Nunca se falou tanto de tribunais, de acórdãos e de Direito como agora. No entanto, esse foco apontado à Justiça serviu igualmente para evidenciar as suas falhas e tornou-a objecto de todas as críticas – algumas certeiras, outras sem qualquer sentido”.

Verifica-se nesta pré-campanha eleitoral que a Justiça se tornou um dos principais alvos de crítica. O problema é que muitas não são críticas construtivas ou de melhoramento, mas críticas que colocam em causa a própria existência do sistema de justiça, e ainda a independência e imparcialidade dos tribunais e das suas decisões.

Ora, quando a própria existência da Justiça é contestada, não há ordem constitucional que resista, nem Estado de Direito que permaneça. Portanto, intencionalmente ou não, é devastador determinado discurso que hoje alguns fazem sobre a Justiça no âmbito político-partidário. Pode ter como consequência o descrédito e a inoperância total da Justiça e, nesse sentido, a deflagração da anarquia e da violência, voltando-se àquele sistema tão bem descrito pelo filósofo inglês Hobbes em que o “homem é o lobo do homem”: ou seja, a própria pessoa é capaz de alcançar a máxima destruição da sociedade em que vive.

Ninguém quererá viver numa sociedade sem regras e em que não existe Justiça em que confiar, mas apenas confronto físico permanente. É por isso que é fundamental arrepiar caminho e procurar colocar a Justiça, enquanto instituição, fora da refrega destrutiva político-partidária.

Nessa medida, seria importante chegar-se a um entendimento entre os principais partidos políticos do Governo e da oposição sobre determinados princípios básicos e métodos para se proceder a uma reforma da Justiça.

É neste contexto que se propõe um pacto de regime sobre a Justiça, idêntico ao que Rafael Marques propôs no que respeita às Autarquias Locais.

No que se refere à Justiça, os principais partidos políticos do regime deviam entender-se formalmente, para elaborarem em conjunto um documento aceite por todos, com medidas estruturantes que traduzam um compromisso sério e de médio ou longo prazo (a mais de dez anos) com a transformação da Justiça angolana, através da formação avançada e criteriosa dos seus magistrados, da criação de condições físicas para o bom funcionamento dos tribunais, do melhoramento dos processos de selecção e promoção da estabilidade e financiamento regular, independentemente dos ciclos políticos.

Um pacto de regime é um procedimento habitual em regimes com alguma maturidade. Em Portugal, temos um exemplo típico de pactos de regime nas revisões constitucionais que foram sempre feitas com o acordo dos dois principais partidos do regime, o PS e o PSD; mais tarde, houve um célebre pacto para a Justiça entre os mesmos partidos.

Outro exemplo é a Holanda, que, no final do século XX, tinha uma economia que sofria daquilo a que se chamou “doença holandesa”: “Uma situação em que surgem consequências negativas provenientes do aumento na valorização da moeda de um país, primariamente causado pela descoberta ou exploração de um recurso natural (por exemplo, o petróleo)”. Este conceito foi elaborado pelo The Economist em 1977, para descrever os problemas da economia da Holanda na época. No caso, a exportação de recursos naturais estava relacionada com um enfraquecimento da indústria nacional. Ou seja, verificava-se uma situação saudável no mercado externo, mas havia uma “doença” no mercado interno. Na realidade, isto não difere muito do que se passou a dada altura em Angola. Nessa época, a Holanda procedeu a profundas reformas sociais e de concorrência para dinamizar a economia, as quais só foram possíveis graças a uma participação alargada dos principais agentes políticos, económicos e sociais.

Em Angola, o mecanismo legal do pacto pode ser diferente de uma revisão constitucional ou de legislação aprovada depois de ouvidos os principais interessados. O importante é abrir o caminho para a reforma do poder judicial e cimentá-lo para muitos anos – um caminho com que todos concordem e se comprometam.

É este o desafio que se coloca a todos os partidos políticos: um discurso e uma acção construtivos, para uma reforma consensual da Justiça.

 

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