O Ministério Público de Portugal tem em curso uma investigação que está a bater à porta de um grupo empresarial israelita próximo do poder angolano e envolve Jorge Almeida Marques, um empresário português que, há quatro anos, tentou comprar o SIRESP. Em causa está um contrato milionário de 596 milhões de dólares. O caso já subiu ao Tribunal da Relação de Lisboa, que criticou os procuradores.
Nos seis parágrafos do comunicado da Polícia Judiciária (PJ), de 13 de julho de 2021, não houve sequer uma única, ainda que fugaz, referência a Angola. O lacónico documento mencionou só uma operação de buscas e o congelamento de 24 milhões de euros, por suspeitas de burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
Mas, nesta altura, os investigadores já sabiam que estavam no rasto de um contrato milionário entre o Estado angolano e um grupo israelita, a Mitrelli, no valor de 596 milhões de dólares, porque, um ano antes da operação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC), uma conta bancária no Millennium BCP recebeu 7% daquele valor (43 milhões de dólares), colocando sob suspeita dois advogados portugueses e o empresário Jorge Almeida Marques – que, em 2017, tentou comprar o SIRESP, a rede de comunicações de emergência do Estado.
A investigação da UNCC iniciou-se, a 7 de abril de 2020, com um alerta do BCP, informando o Ministério Público (MP) e a PJ sobre um conjunto de transferências, ocorridas entre 8 de fevereiro de 2019 e 4 de fevereiro de 2020. Um total de cerca de 43 milhões de dólares saiu de uma conta titulada pela sociedade Geodata Services LTD, no Wells Fargo Bank, nos Estados Unidos da América, para outra, em Portugal, em nome da Lawlab – Consultoria e Negócios SA, uma sociedade angolana gerida por um casal de advogados portugueses, Carla Vieira Mesquita e Tomás de Oliveira – ambos constituídos arguidos no processo e que também são sócios no escritório de advogados Vieira Mesquita & Associados, em Portugal, um dos alvos das buscas de julho de 2021. Na sua página na internet (www.lawlab.co.ao), a empresa angolana apresenta-se como uma prestadora de “serviços de assessoria jurídica em todas as áreas de negócio”, com “advogados qualificados nas mais diversas áreas do Direito”, o que, segundo a mesma fonte, “lhe permite posicionar-se como um distinto escritório internacional de assessoria jurídica”.
O banco, segundo informações recolhidas pela VISÃO, terá considerado existir uma certa opacidade nos movimentos financeiros, falta de demonstração na contabilidade que justificasse o movimento, e também terá classificado Angola, o ponto de partida do dinheiro, como uma geografia de risco.
Durante mais de um ano, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) foi investigando os movimentos na conta da Lawlab em Portugal, concluindo que, após a chegada dos tais 43 milhões, metade foi usada no interesse dos próprios sócios do escritório: uma parte para investimento em unidades de participação de um fundo; o restante aplicado na compra de imóveis, carros e em pagamentos à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.
A outra metade acabaria por ser encaminhada para a Orange Capital, uma empresa sediada nas Ilhas Virgens Britânicas e ligada a Jorge Almeida Marques – também constituído arguido no processo. Mal os fundos ali chegaram, o empresário começou a distribuí-los por várias sociedades offshore por si controladas, como a Green Innovations Holdings, a JPTE International Limited e a Italent Limited. Radicado há alguns anos em Angola, este empresário apresentou, em 2017, uma proposta para a compra de 33% do capital do SIRESP através da sociedade Green Services Innovations, apresentando-a, numa carta de intenções revelada pelo Observador, como uma empresa de capitais angolanos, com escritório em Londres, detendo uma participação no grupo Mitrelli.
É aqui que o caso começa a complicar-se, com a entrada no negócio de uma empresa ligada a Jorge Almeida Marques, que, por sua vez, já estava relacionado com a adjudicatária do contrato, a Mitrelli, como fundador e administrador, e com a sua subsidiária, a Geodata. Em janeiro de 2017, a Orange Capital, outra sociedade sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, apresentou uma proposta à Lawlab para a realização do trabalho, faturando, entre maio de 2019 e fevereiro de 2020, 21 milhões de dólares, com a apresentação das respetivas faturas.
A ligação entre os intervenientes nos negócios em investigação começa em 2016, com a advogada Carla Vieira Mesquita a criar, em Angola, a sociedade Lawlab. Um ano mais tarde, a Geodata subcontratou a Lawlab para um primeiro trabalho de assessoria jurídica, nos registos de propriedade e outros serviços, de legalização de 20 mil habitações na cidade do Kilamba, pagando três milhões de dólares. O Ministério Público realçou ainda que, em Portugal, o escritório de advogados de Carla Vieira Mesquita e Tomás de Oliveira só faturava por serviços prestados a outras empresas de Jorge Almeida Marques.
Entretanto, a relação entre as duas empresas aprofundou-se e a Lawlab viria, ainda em 2017, a assinar um novo contrato com a Geodata para prestar assessoria na totalidade do projeto. A empresa de Carla Vieira Mesquita teve necessidade, por sua vez, de contratar uma terceira sociedade com capacidade e competências técnicas para assegurar a criação e a manutenção de uma plataforma informática que aglutinasse e indexasse toda a informação. Sucederam-se então vários contratos entre a consultora angolana e sociedades domiciliadas no Chipre e no Dubai, aparentemente controladas por Jorge Almeida Marques.
Mitrelli próxima do poder
Na origem do dinheiro está um contrato celebrado, em 2014, pelo Estado angolano e o grupo Mitrelli para a “Regularização e a Legalização Imobiliária do Património Habitacional do Estado”, aprovado pelo decreto presidencial 15/12, ainda durante a presidência de José Eduardo dos Santos, mas cuja concretização já terá decorrido durante a liderança de João Lourenço.
A relação entre o grupo liderado pelo empresário Haim Taib e a presidência de João Lourenço tem-se fortalecido nos últimos anos. Em janeiro deste ano, o jornal Expansão descrevia o grupo empresarial como “um polvo de longos tentáculos, que atingem diversos setores de atividade”. De acordo com a comunicação social angolana, a Mitrelli opera como adjudicatária de grandes obras públicas e também como financiadora do próprio Estado angolano. “O grupo Mitrelli, nos anos 2012 – 2013, financiou o Estado angolano em sete mil milhões de dólares e, com este recurso, foram construídas nove centralidades no país, que, na sua maioria, já estão habitadas e oferecem cerca de 27 500 fogos habitacionais”, disse o Presidente, durante uma entrevista a cinco órgãos de comunicação social (Expansão, TV Zimbo, Jornal de Angola, O País e Agência Lusa).
Como referiu uma fonte à VISÃO, caso a investigação judicial portuguesa, sobre a ligação atual entre o grupo israelita e o poder angolano, avance para “territórios complicados”, pode provocar, nas relações diplomáticas entre os dois países, mais um “irritante” – expressão empregada pelo ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, e depois usada quer por António Costa quer por Marcelo Rebelo de Sousa durante a crise diplomática desencadeada pelo chamado “Caso Manuel Vicente”, antigo vice-presidente de Angola que chegou a ser suspeito de corrupção ativa em Portugal.
Até porque – embora rejeitando que o grupo seja, à semelhança da Gemcorp, Carrinho e Omatapalo, favorecido pelo atual poder de Luanda – João Lourenço fez questão de referir, durante a entrevista, que os financiamentos concedidos pela Mitrelli têm permitido “cobrir as despesas de construção da [sede] CNE [Comissão Nacional Eleitoral], centro nacional de escrutínio” e “vão cobrir despesas de construção e apetrechamento dos novos hospitais do Bengo, Sumbe, Ndalatando, do novo hospital militar central, do novo hospital universitário, de três mil fogos habitacionais na província de Cabinda, de mil fogos habitacionais no Bengo, de mil no Cunene, da construção de dois estádios de futebol para a província do Huambo e Uíge e da conclusão das obras do Centro de Ciência e Tecnologia na cidade de Luanda e da linha de transporte de energia Sumbe-Gabela”. Ou seja, a Mitrelli é um parceiro estratégico do país.
Já em fevereiro deste ano, por despacho presidencial de João Lourenço, foi adjudicada à Mitrelli a obra de eletrificação de vários municípios da província de Uíge.
Documentos a que a VISÃO teve acesso revelam ainda que, em 2013, o grupo israelita tinha uma forte presença em Angola, sendo um dos interlocutores do antigo Banco Espírito Santo Angola (BESA). Em julho de 2013, o então administrador executivo do BESA, Rui Guerra, trocou vários emails com um cidadão israelita relativamente aos procedimentos de segurança para uma viagem do administrador Amílcar Morais Pires. Na troca de mensagens, é referido que a Mitrelli iria disponibilizar dois “guarda-costas” para acompanharem o então administrador do BES durante a sua estada em Luanda.