Em parte incerta, e com um mandado de captura internacional, Isabel dos Santos acusa o governo angolano de “perseguição” e manifesta interesse no futuro político do país. Reveja a entrevista transcrita e na íntegra da TVI/CNN Portugal.
Sente-se uma mulher livre ou uma prisioneira?
Eu acho que estes últimos anos, para mim, têm sido uma uma batalha, mas também uma lição de vida. Tenho aprendido muitas lições, houve momentos muito difíceis, obviamente, de um ponto de vista pessoal. Também do ponto de vista profissional. Mas é uma jornada, é um caminho, e eu acredito que a vida tem que ser vivida e nós estamos aqui com uma missão. Estamos aqui na Terra para transformar o mundo num lugar melhor. Pelo menos é assim que eu vejo isto e, enquanto estiver aqui, sinto essa liberdade de viver.
O seu espaço, digamos que era todo durante muitos anos. Tinha uma base em Angola, tinha interesse em Portugal, tinha negócios noutros sítios e esse espaço de repente ficou mais pequeno, mais pequeno, mais pequeno. E a notícia das últimas semanas é que há um mandado internacional de detenção. A minha pergunta vai nesse sentido. Isso de alguma forma a transforma numa prisioneira?
Eu acho que hoje há uma maior compreensão do que realmente se está a passar e não há dúvidas de que nós estamos perante um cenário de perseguição política. Olhando para Angola e para o nosso sistema jurídico, é fácil de entender que o procurador-geral da República recebe ordens diretamente do Presidente. Ou seja, ao contrário de alguns países, onde um procurador é independente, ou depende de um outro organismo.
Não há uma separação de poderes.
Não. Em Angola, o procurador, portanto, o general Pitta Grós, recebe ordens diretamente do general Lourenço, do presidente João Lourenço. Então, qualquer ordem desse tipo é uma ordem direta do presidente.
“Isto é lawfare”
Já encontrou as motivações para isso que descreve como uma vingança política, mas também quase pessoal.
“Lawfare”, que é no fundo usar a lei para fazer guerra ou utilizar as instituições estatais, públicas, utilizar os próprios tribunais e utilizar a lei para combater um opositor, um opositor económico e um opositor político. Portanto, eu acho que a razão é fundamentalmente essa, é que não se quer ter concorrência com outras pessoas que tenham outras ideias ou outras vozes, a entrarem na política em Angola e a dominar a economia. Eu vou utilizar as leis, vou manipular o sistema jurídico para causar muitos problemas jurídicos a um opositor. Um opositor político ou económico, por exemplo. E ao mesmo tempo, na opinião pública, vou criar toda uma impressão, uma opinião pública sobre essa pessoa utilizando os media. Então, há uma série de informações que são passadas aos media, que são efetivamente falsas.
Por que acha que isto aparece nesta altura concreta e não apareceu mais cedo? Estou a falar especificamente do mandado que foi emitido pela Interpol.
Eu não tenho conhecimento do documento oficial. Não sei do que é que se trata. Não ouvi, apenas estou a comentar o que tenho ouvido nas notícias e o que tenho lido. E a mim, o que me parece é que isto está sem dúvida ligado à nacionalização da Unitel. Quando nós vemos a nova lei da nacionalização em Angola, há uma cláusula muito estranha que diz que se houver um processo ou um inquérito, a empresa ou a pessoa visada não tem direito a uma indemnização.
Porque é que uma empresária privada, bem sucedida, vai a certa altura para a Sonangol, que era um óbvio problema? Vai lá para resolver o problema?
Naquela altura, o Ministério das Finanças pediu a uma das minhas empresas para ser consultora e assinou um contrato connosco, um contrato que foi validado, inclusive no Tribunal de Contas. Para nós prestarmos uma consultoria na restruturação do setor dos petróleos. Do que é que podia ser feito para tornar mais competitivo e, em particular, olhar para a Sonangol. Eu e a minha equipa fazemos a apresentação desse modelo ao Ministério das Finanças, e com base nisso foi criada uma comissão, uma comissão de reestruturação do setor petrolífero e da Sonangol. Naquele momento, eles tomam conhecimento do trabalho, e felizmente é um modelo que foi adotado e que o presidente João Lourenço continua a adotar até hoje. Eu sou convidada pela comissão, porque eles dizem que precisam de um angolano ou de uma angolana que consiga implementar aquilo, e que não havia muitos. Como eu já tinha participado e tinha efetivamente mentorado este novo modelo, gostariam que fosse eu e a minha empresa a implementar. E é assim que nós somos convidados e vamos como consultores. Eu sou convidada pessoalmente para ir como PCA não executivo, naquele momento, e é um momento muito difícil para a empresa. Há muitas dívidas. Quando eu cheguei, recordo-me que não havia dinheiro para pagar salários. Recebi uma carta dos bancos internacionais a cobrarem 450 milhões de dólares e deram-me 45 dias para pagar, e não havia dinheiro. Portanto, tive que entrar logo em negociações com a banca internacional para fazer uma reestruturação da dívida, tive que rapidamente entrar em negociações com a banca nacional para ver como é que nós podíamos otimizar algum cash flow. Era importante proteger os empregos e os salários, e proteger as pessoas que trabalhavam na empresa, porque eu precisava dessas pessoas para poder reconstruir a empresa.
É nessa altura que decide também chamar consultores internacionais, sociedades de advogados portuguesas. E isso é, digamos, o que dá origem, depois, àquilo a que aqueles que a acusam chamam “Luanda Leaks”. Ainda hoje mantém a afirmação de que aquilo que dizem ter acontecido não aconteceu.
É em 2015, quando a minha empresa começa a trabalhar com o Ministério das Finanças, que estes consultores começam a trabalhar comigo. Ou seja, nós criamos um núcleo de consultores, eu sou o consultor principal e temos um núcleo de consultores que trabalha connosco. Trabalha comigo diretamente, pessoas com quem conversamos, analisamos, olhamos para vários modelos, comparamos o modelo da Noruega com o modelo da Arábia Saudita, por exemplo, comparamos com o modelo de Angola. Portanto, fazemos esse trabalho profundo, que é um novo modelo para o setor.
Mas ainda hoje está convencida de que a solução que encontrou, eventualmente comparável com essas de que está a dar conta, foi a melhor para a Sonangol. Isto é, não tinha sido mais transparente pagar diretamente à Pricewaterhouse? Não tinha sido mais transparente pagar diretamente à VDA? Era preciso envolver outras entidades nessa manobra?
Primeiro, não foi uma manobra. Como eu disse desde o início, a empresa foi contratada, foi a minha empresa. No âmbito desta reestruturação, eu vou para a Sonangol com um mandato muito específico de reestruturar a empresa. O que é acusado hoje é que estes consultores não existiram e que não estiveram na Sonangol e não prestaram serviços. Se ler as entrevistas do procurador-geral da República, as alegações que ele faz é que não houve serviços prestados à Sonangol, e aí é que é mentira, que é grave, porque houve os serviços, os serviços foram prestados. E depois disso ainda diz mais: que todo este contrato de reestruturação da Sonangol é uma manobra, é uma ficção, que nunca houve restruturação nenhuma.
Para serem desviados 131 milhões de dólares.
Exatamente. Agora eu pergunto: a reestruturação da Sonangol foi uma ficção? Há dúvidas na opinião pública de que a Sonangol estava falida? Há dúvidas de que houve uma reestruturação? Não há. A Sonangol estava mal? Estava. As pessoas sabiam que estava mal. Havia relatórios sobre isso, havia informações sobre isso, havia notícias sobre isso. Portanto, era de facto, de conhecimento público. Houve consultores. Era público o conhecimento? Era. Eu lembro-me, na altura, das notícias que vinham para os jornais: “porque é que a engenheira Isabel dos Santos encheu a Sonangol de consultores?”. É preciso perceber que a Sonangol não é só uma empresa, são 90, e depois tem uma empresa de aviação, então tem que entender de aviões. Tem uma empresa de hospitais, tem que entender de saúde, tem uma empresa de mobiliário, tem que perceber de construção. Aquilo são montes de empresas diferentes e muitas delas com grandes dificuldades.
A esta distância, prefere dizer que quando encontrou a Sonangol nesse estado, que a culpa tinha morrido solteira? Ou que o responsável pelo estado a que a Sonangol chegou era Manuel Vicente, porque, no fundo, ele tinha sido o homem da Sonangol durante grande parte desses anos.
O que eu quero hoje é o reconhecimento por parte da PGR e do Estado, que esta história de contar que não houve consultores e que não foram pagos não é verdadeira. E o que é muito aborrecido é que é esta história que eles usam para depois emitir mandados ou emitir manobras restritivas, ou inclusive fazer arrestos. É com esta história, não é com outra.
Mas eu perguntei-lhe sobre Manuel Vicente. Não quer responder.
Vou responder, porque é uma boa pergunta. Porque é que a Sonangol estava no estado em que está quando eu cheguei? Ora, eu vou tentar resumir em três grandes linhas de pensamento. Primeiro, porque era uma empresa que não era competitiva, ou seja, era uma empresa que tinha uma cultura de gestão estatal e uma cultura de gestão pública. Não tinha sido desenhada como uma empresa que ía concorrer com outras. Ao contrário das minhas empresas, que sempre concorreram. Por exemplo, na ZAP eu concorro com a DSTV, na Unitel concorria com a Angola Telecom e Movicel, na Candando concorro com a Shoprite, com o Kero, com a Casa dos Frescos. No Banco concorro com o Banco Económico, com a Caixa. Eu sempre tive empresas que tinham que concorrer e a primeira coisa que eu notei é que a Sonangol não tinha que concorrer com ninguém, porque os direitos eram de concessionário, eram direitos adquiridos. Isso era um problema de competitividade. Segunda questão é que a Sonangol tinha muitos projetos que eram altamente deficitários, que perdiam dinheiro. Aí sim, concordo consigo que as gestões anteriores às minhas não deviam ter investido em projetos deficitários. A mim já aconteceu investir em projetos que não tenham gerado lucro, isso não é um crime, mas quando o projeto não gera lucro, tem que se rever e tem que se parar. Coisa que eles não fizeram. Nós temos o caso da Refinaria do Lobito, um projeto de quase 15 anos onde foram gastos 1,4 mil milhões de euros, e não há refinaria. Não há edifício, só há terraplanagem.
Para onde é que foi o dinheiro?
Pelos vistos foi para terraplanagem, mas aí já é uma gestão irresponsável e danosa.
Posso depreender que está a chamar gestor irresponsável e gestor danoso a Manuel Vicente ou é um abuso da minha parte?
Manuel Vicente não agiu sozinho. Manuel Vicente foi o PCA da Sonangol. Havia um Conselho de Administração, portanto eram vários administradores, eram vários diretores. Havia pessoas com vários pelouros. Ele não geriu sozinho. Da mesma maneira que quando eu estive na Sonangol também não estive lá sozinha. Como disse, foi falta de competitividade por um lado, projetos e investimentos que não eram rentáveis, e também encontrei más práticas.
Encontrei contratos que talvez custassem duas ou três vezes mais do que deviam custar, encontrei empresas de diretores a prestarem serviços a preços exorbitantes. Enfim, encontrei muitas coisas que estavam erradas e cortei. Eu baixei os custos da Sonangol em 18 meses, em 40%. É muito. Obviamente que as pessoas não gostaram disto. Têm um contrato de limpeza que limpa todos edifícios da Sonangol por milhões e milhões. Eu chego, faço um estudo comparativo e digo “não, desculpe, esta empresa até pode continuar, mas já não pode ser milhões e milhões”. Tem que ser milhões e milhões, menos os 40% para ser ao mesmo nível que o preço do mercado.
“Luanda Leaks é uma história muito mal contada”
Quando diz que o Luanda Leaks foi uma construção, foi uma construção de quem?
Do Estado angolano. Do presidente João Lourenço, especificamente.
Vem da cúpula. Não tem dúvidas sobre isso.
Não, não tenho, hoje tenho provas sobre isso. Quando o Luanda Leaks acontece é muito estranho, primeiro porque é uma história muito mal contada. Quem lê 715 mil documentos? É impossível. E até hoje ninguém os viu, vimos 140 documentos no website.
Foram forjados, na sua visão?
Quando se vai olhar para os 140 documentos do website, a maior parte desses documentos são completamente inócuos. Os jornalistas têm um papel muito importante e a media tornou-se o quarto poder, disso não temos dúvida. Ao mesmo tempo, também tem uma responsabilidade que é informar, mas informar com conhecimento daquilo que informa. Pergunto: um jornalista que não fala português, que não conhece as leis angolanas, não conhece as leis portuguesas, está a julgar?
Mas havia jornalistas portugueses no consórcio.
Havia.
E fizeram o seu trabalho.
Bom, se me disser que um jornalista sabe ler um contrato, e de um ponto de vista jurídico julgar se o contrato é legal ou ilegal, para mim seria uma surpresa. A não ser que fosse um jornalista que tivesse uma formação jurídica, que não me parece que fosse o caso.
A questão de Luanda Leaks tem um efeito em cascata, porque tem um efeito em Angola, a seguir tem um efeito em Portugal e tem um efeito até noutras geografias. Na Holanda, uma parte nos Estados Unidos.
Fazer “lawfare” não é uma ação nova. Eu não sou a primeira vítima de “lawfare”. Há outros casos também.
Há várias pessoas a braços com a Justiça, que usam a expressão “lawfare” justamente para dar conta de, na sua visão, ser aquilo que lhes está a acontecer. Temos casos como Lula, no Brasil, Sócrates, em Portugal.
Há vários casos. Agora, eu pergunto: se o Estado tem provas contra um cidadão, porque é que no meu caso, do arresto civil em Luanda, há oito documentos falsos? Por que é que a PGR falsifica um passaporte? Falsifica emails que vêm de uma conta de gmail e consultant, um tal de Mohamed que ninguém sabe quem é? Por que é que a PGR apresenta como prova uma carta dos serviços secretos de Angola a testemunhar um encontro, numa reunião de trabalho minha que nunca aconteceu? Em data e num sítio onde nunca estive. Ou seja, se é um Estado de boa fé, vai forjar provas para arrestar património do empresário?
No caso português, acha que as autoridades em Lisboa agiram quase por contágio daquilo que se passava em Angola, ou aqui não há má fé e boa fé?
Portugal está a tentar perceber se as alegações que houve, que saíram no jornal, são verdadeiras ou falsas. Principalmente, esta questão dos consultores é muito interessante, porque ainda durante o processo de inquérito, o juiz do inquérito já confirmou que todos os pagamentos foram feitos e todos os consultores foram pagos e que os serviços foram prestados, e que não houve dinheiro do Estado ou dinheiro da Sonangol que tenha sido tirado para meu benefício próprio. Isso está lá escrito, a decisão do juiz de inquérito. E é muito raro, numa fase de inquérito, já os juízes terem tanta certeza do que estão a dizer, porque quando eles tomaram contacto com os elementos de prova contraditórios, efetivamente viram que aquilo que tenho tentado dizer durante muito tempo era verdade, e que o que o Estado angolado estava a dizer não era. Entretanto, Portugal tem um acordo que é o Tratado da CPLP, as comunidades de língua portuguesa. Nesse acordo, se há um pedido, e nesse caso não civil, que venha na base de um processo criminal, aí Portugal tem que atender o pedido. E foi isto que aconteceu. Só que, bizarramente, eu em Angola não tenho um processo crime em tribunal.
Então o que aconteceu?
Há uma decisão forjada do juiz do Tribunal Supremo que é enviada para Portugal, e Portugal pega nessa decisão forjada e age sobre essa decisão forjada.
Houve aquela expressão muito citada em Lisboa, que era o “irritante”, por causa do caso que na Justiça em Portugal envolvia o então ex-vice-presidente Manuel Vicente. Acha que a Justiça em Portugal teve dois pesos e duas medidas em relação a si e ao ex-vice-presidente? Por ação do poder político, por alguma intervenção do poder político?
O caso jurídico do engenheiro Manuel Vicente, eu não conheço os detalhes porque não é um caso que eu siga. Eu acho que hoje a Justiça em Portugal é morosa, é lenta. Talvez porque o sistema em si não tem capacidade de processamento suficiente. Acho que é morosa, e esta demora que existe no meu caso e no caso das minhas empresas não é boa, porque há decisões que precisam de ser tomadas, como por exemplo o pagamento de impostos, pagamentos de rendas, pagamento de salários, e que a justiça portuguesa não autoriza. Quando um juiz português não autoriza uma empresa minha a pagar salários aos trabalhadores, não é a mim que ele está a prejudicar. Ele está a prejudicar as famílias portuguesas, as pessoas que estão a trabalhar. Quando um juiz português não autoriza o pagamento de rendas, internet, água, luz, a empresa tem que fechar, porque uma empresa pode viver sem escritório. Então eu acho que é uma falta de sensibilidade por parte da Justiça.
O facto de estar muito património arrestado é quase uma condenação?
É uma condenação. Estou a assistir hoje à Justiça portuguesa a condenar empresas portuguesas e empregos portugueses, pelas decisões que têm tomado.
Essa é a dimensão empresarial, depois há outra, porque também há património arrestado que está em nome de offshores, com casas no Algarve, na Quinta do Lago. Isso também faz parte do mesmo universo ou não?
Isso faz parte da ficção do Luanda Leaks.
Há uma parte que é realidade e outra parte que é ficção?
Não tenho casa no Algarve. Eu gosto do Algarve, mas não tenho casa no Algarve. Se um dia tivesse comprado uma casa no Algarve podia ter em nome de uma empresa, talvez por questões fiscais, se eu quisesse alugar, mas com certeza que, se tivesse uma casa no Algarve, não negaria tê-la.
“As minhas relações em Portugal foram com os empresários”
O poder político em Lisboa nunca a ajudou?
Os meus contactos foram sempre empresariais. Não tive contactos com o Governo, a não ser os normais dos licenciamentos, quando às vezes as empresas têm que licenciar algum documento e enviam, mas isso são coisas das próprias empresas. A minha relação com Portugal foi sempre através dos investimentos privados, e se esses investimentos privados tivessem sucesso nas parcerias com quem eu estava a conversar naquele momento, com aquelas pessoas, ou se me quisessem vender as ações, ou se quisessem receber um investimento, chegavam a bom porto.
E esse padrão de comportamento foi igual com os governos do PSD e com os governos do Partido Socialista?
Durante todo o período que eu investi em Portugal, as minhas relações foram com os empresários portugueses.
E também nunca sentiu da parte dos governos portugueses um pedido de ajuda para que investisse na economia portuguesa nos anos mais complicados, designadamente nos anos da troika?
Pedidos específicos, não. Não tive pedido específico de investir em Portugal por parte do Governo português
Nem no caso da Efacec?
No caso da Efacec, eu comecei a trabalhar no setor das telecomunicações em 98 e a minha visão era uma visão para África, porque havia muito poucos telefones naquela altura. No meu país, sobretudo, e no continente em geral. Uma vez que as telecomunicações foram um boom e que o mercado estava cada vez mais atendido, eu comecei a olhar de um ponto de vista estratégico, para qual é que seria o próximo setor no qual eu queria investir, e era o setor da energia. Queria investir no setor da energia em Angola, em África, e criar uma empresa competitiva exatamente nesses mercados. Aí, a Efacec era uma oportunidade, porque ela estava à venda. Havia vários compradores, houve um processo, nós participámos num processo de licitação, portanto não éramos os únicos. Não foi ajuste direto, havia várias propostas, estavam a ser analisadas, etc. E nós participámos nesse processo, porque eu tinha interesse em adquirir uma empresa de energia com as valências que a Efacec tinha, porque permitiria fazer muito trabalho em África, de uma forma geral. Não só em Angola, mas no continente.
Para a compra da Efacec beneficiou do empréstimo da Caixa Geral, mas acha que se tratou de um negócio limpo, normal? Isto é, um empresário muitas vezes vai à banca para se financiar.
Gostei muito do que acabou de dizer, porque acabou de confirmar que, para o negócio da Efacec, tive acesso, em parte, ao financiamento bancário. Infelizmente, quando se ouve, uma vez mais, o que Angola diz a Portugal, dizem que o investimento foi feito com dinheiro do Estado angolano.
Não houve aval do Estado angolano?
Não, de todo.
O antigo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, no seu livro chamado exatamente “O governador”, disse que num determinado momento do seu mandato recebeu uma chamada do primeiro-ministro António Costa, em que António Costa interferia a seu favor e a expressão era esta: “Nós não podemos tratar mal a filha de um chefe de Estado amigo”. E depois descreve até que foi um telefonema muito irado. Primeiro, acha possível que isso tenha acontecido? Segundo, alguma vez pediu ajuda a António Costa especificamente para ele interferir junto do governador?
Nas minhas relações que eu tive com Portugal, foram realmente relações com o setor privado. Não tenho contactos ou relações com ministros em Portugal ou proximidade com o Governo. Os meus investimentos foram investimentos diretos, privados. Não acredito que tenha tido um apoio específico do Estado português, porque inclusive eram investimentos de risco. O BPN, quando nós comprámos, era um banco que estava falido.
Está a fugir à pergunta.
Não vou fugir à pergunta, vou é dizer a relação que eu tive lá, porque disso eu posso falar. E a relação que eu tive em Portugal não foi uma relação com o Governo, foi efetivamente uma relação com os privados, e os negócios que fiz. Lembro-me da audiência que tive no Banco de Portugal, que foi uma audiência para tratar de ações relacionadas com o Banco BIC. Foi uma reunião curta e só me lembro que tenha havido uma reunião, e foi profissional.
Portanto, esta chamada ter acontecido foi por iniciativa do primeiro-ministro, mas não há pedido seu.
Eu não sei se a chamada aconteceu ou não. Não fiz parte de chamada alguma. O que eu posso dizer é que, do meu lado, as relações que eu tive com Portugal foram sempre pelo lado empresarial e não pelo lado do Governo, nem pelo lado do Estado.
E de um ponto de vista institucional, o seu pai nunca a ajudou?
Eu podia ter trabalhado com o meu pai se assim o tivesse decidido há muitos anos atrás na minha carreira. Se eu quisesse ter ido para política, por exemplo, teria trabalhado com o meu pai. Mas eu não quis ir para a política naquela altura.
“Querem impedir-me de um dia fazer a diferença”
Acha que o seu futuro pode passar por um papel em termos políticos em Angola? Ambiciona isso?
Eu não tenho dúvida que, de uma forma ou de outra, vou contribuir para o futuro político do meu país.
Mas com protagonismo ou num papel mais lateral?
Eu acredito que Angola precisa de um novo futuro político. Acho que nós, hoje, temos desafios que são outros. Já não são os desafios da independência, já não são os desafios da revolução. Hoje são os desafios da economia, do emprego, são os desafios sociais, do bem estar social, como as pessoas vivem melhor. Temos um grande desafio, que é a urbanização. Como é que nós vamos preparar as nossas cidades de forma a poderem receber estes milhões de pessoas que nascem todos os anos, com água, com luz, e que não seja só conversa. Outro desafio que nós temos é a segurança alimentar. Nós produzimos muito pouco e vimos que na altura do covid, quando os preços dos contentores, da logística, dispararam, que os preços em Angola também subiram muito. A comida ficou muito, muito cara. Portanto, a questão da segurança alimentar com uma população que está a chegar a 30 milhões é um dos outros temas. E acredito que hoje os partidos políticos que estão no poder ou que estão na oposição não estão a olhar para estas questões. Não há uma visão, não há um plano. Para Angola, hoje, não há um plano estratégico de como desenvolver, como tornar Angola competitiva.
Do que está a falar, acha que pode protagonizar essa visão e esse plano estratégico para um país que é muito diferente daquilo que tem sido.
Eu ambiciono um país diferente.
Agora, para lá chegar, tem que se libertar das questões que tem em braços com a Justiça. Como é que acha que vai fazer isso? Eu tenho à minha frente uma mulher de 48 anos, que neste momento viu o seu império empresarial congelado, apertado, diminuído, e que está a braços com um mandado da Interpol. Como é que vai sair desse labirinto onde a meteram?
Esta questão ocorre numa perseguição política, exatamente para me impedir de um dia poder fazer a diferença em Angola. As questões jurídicas, elas em si, se a lei for cumprida, não têm base. Mas hoje eu vivo num país onde a lei não é cumprida. Vivo numa Angola que não tem um Estado democrático de direito. Vivo numa Angola que viola a Constituição, viola os direitos do cidadão. Portanto, vivo num país em que a lei não é cumprida. Os nossos tribunais não são independentes, os nossos juízes recebem instruções. Não todos, mas há alguns juízes que são utilizados pelo sistema para cumprirem uma agenda política do poder político.
E se eu tomar como bom aquilo que está a dizer, o que é que a leva a pensar que isso vai mudar? E como é que vai mudar?
Eu acredito que vai mudar, e vai mudar.
Como é que vai mudar?
A história diz-nos que todos os sistemas ou regimes que não entenderam que era necessária a mudança, não entenderam que era necessário atender às aspirações das novas gerações, todos fracassam.
Somos pessoas que vão obrigar a uma mudança do regime.
A nova geração, que quer uma outra Angola, quer outras coisas para Angola, tem outras ambições e ambicionam ver uma Angola diferente. Eles vão fazer a mudança, sem dúvida.
Já disse que, por norma, os seus dias eram muito preenchidos, muito ocupados e eu andei a fazer algum trabalho de casa. Também sei que era assim. Como é que é hoje o seu dia a dia?
Quando eu estive na Sonangol, curiosamente, os meus dias eram realmente muito ocupados. Eram muitas vezes das 7 horas até às 21 horas. Também foi um período muito especial na minha vida, porque eu estava à espera de um bebé. Portanto, imagine, eu tive 18 meses na Sonangol e durante nove daqueles 18 meses estava à espera de um bebé. O bebé nasceu em Julho, ou seja, ainda mais dois ou três meses pós-parto depois disso. Tive ali um período que, fisicamente, foi muito exigente e não tive muito próxima da minha família, gastei muito tempo. E antes disso, nas minhas empresas, antes de 2016 também, sempre trabalhei muito, porque gosto de ser ativa. Sou uma pessoa operacional, gosto de ir para o terreno, pôr a mão na obra, ir para a obra, estar lá com um capacete, com as minhas equipas, trabalhar. Fiquei muito tempo longe da minha família para poder construir as empresas que eu construí, para poder alcançar e chegar onde eu cheguei, e fiz muitos sacrifícios pessoais. A minha presença, o estar com os meus filhos, estar com a minha família. E hoje tenho mais tempo, e é isso a que eu me dedico, efetivamente poder estar presente na vida deles, poder ser mais ativa na educação dos meus filhos, e obviamente tenho um desafio, e que não é pouco, que são todas estas batalhas que me são postas pelo Estado angolano, que apesar de eu já não estar em Angola há quatro anos, continua a perseguir-me por todo o lado.
Sente-se a salvo no país onde estamos?
Eu acredito que nos países onde a lei funciona e os tribunais são justos, imparciais e independentes, eu estarei sempre a salvo. O único sítio onde eu não estarei a salvo é efetivamente em Angola, onde os tribunais não são independentes e onde a lei não se cumpre. Mas todos os outros países no mundo que cumprirem a lei e em que os tribunais sejam independentes, eu acredito que que eu estarei em condições de segurança.
“Mais do que meu pai, ele era pai da nação”
Responda-me como entender, mas gostava de lhe perguntar. Foi a Barcelona e esteve em Barcelona nos últimos dias do seu pai, mas acha que se despediu dele da maneira como queria?
O meu pai, em 2018, manifestou a vontade de deixar de viver em Angola e queria viver comigo e com o meu esposo. Portanto, eu tenho acompanhado e tenho vivido com o meu pai desde aquela altura. Não foram só apenas os últimos dias em Barcelona, foi realmente desde aquela altura. Ele veio para Espanha, depois temporariamente voltou a Luanda. Essa viagem, em que ele foi a Luanda, foi uma viagem muito difícil para ele. Queria ficar menos tempo. Infelizmente, as autoridades em Angola, de alguma maneira, impediram ou não facilitaram o regresso mais cedo. Finalmente, voltou em março e nós ficámos muito felizes que ele pudesse ter voltado. Enfim, a vida é triste.
Mas despediu-se dele da maneira que queria ou acabou por não ter essa oportunidade?
Eu estive com o meu pai em todos os momentos. Mais do que meu pai, ele era sem dúvida o pai da nação e o presidente da República. E houve um debate muito alargado entre a família e o próprio Estado angolano, sobre como é que devia ter sido a homenagem a José Eduardo Santos. Na altura, e até hoje, eu acho que houve uma precipitação do lado do Estado. E foi uma pena, porque muitos angolanos que se podiam ter despedido dele com muita mais calma, sem estarem preocupados em quem vão votar, em quem não vão votar, podiam tê-lo feito. Podiam ter tido tempo. E esse tempo não lhes foi dado.
Tem nacionalidade russa?
Eu tenho nacionalidade russa, nasci na Rússia. Esse é um fato público.
E admite vir a viver na Rússia nas atuais circunstâncias da sua vida particular?
Eu tenho um carinho especial porque é a terra da minha mãe, portanto é um sítio onde tenho família, e que respeito muito a cultura, a história. É um país que tem teatro, música, ballet, é um país com uma cultura fenomenal. Gosto do país, acho que é bonito.
Como é que alguém que tem essa dimensão pessoal, de ligação com o país, olha para o conflito da Rússia com a Ucrânia e para a invasão russa?
Eu espero que as coisas se resolvam.
Não se lhe oferece dizer mais nada.
Espero que as coisas se resolvam. Paz é importante para todos.