Ao longo de 45 anos de independência, celebrada a 11 de Novembro, Angola tem sido marcada pela extraordinária displicência com que se desperdiçam oportunidades para construir um país melhor. Como muitas vezes se diz, “o angolano não perde uma oportunidade para perder uma oportunidade”.
A 26 de Setembro de 2017, a mudança de presidente da República fez emergir mais uma oportunidade histórica. No entanto, mais uma vez, as esferas política, económica e social permanecem marcadas pela irresponsabilidade e desresponsabilização, por um imediatismo vazio como reacção à vida pública e pelo recurso a uma ideologia da confusão: ou seja, continuam a proliferar os arautos que pretendem empurrar a sociedade angolana para a perda da maior oportunidade histórica para mudar o país e a vida dos seus cidadãos sem derramamento de sangue nem pilhagens.
Três anos volvidos sobre a nova presidência, destacam-se duas importantes medidas de João Lourenço ainda em curso: a garantia da liberdade de expressão e a institucionalização da luta contra a corrupção no lugar da corrupção institucionalizada.
A garantia de liberdade de expressão é o vector fundamental para uma sociedade mais aberta. Constata-se hoje a existência de espaços públicos livres, onde os angolanos podem levar a cabo iniciativas de diálogo, de exposição de ideias e pensamentos críticos e de concertação independente no que diz respeito à situação actual do país em todos os domínios.
A mudança começa, como bem se sabe, no pensamento individual de cada cidadão, na partilha de ideias inovadoras, e depois alastra pela consciência colectiva dos cidadãos sobre o bem comum. Para tal, é necessário construir as ideias de cidadania e de bem comum no seio da população, e fomentar o seu exercício. Têm de emergir lideranças intelectuais, cívicas e comunitárias capazes de estabelecer a noção de responsabilidade e de serviço público, e articular uma visão comum. Essas lideranças têm de saber conduzir o povo à dignificação humana, ao sentido de soberania e à contribuição para definir o rumo do país e o seu futuro.
É isto, no fundo, a construção do Estado. Basta lermos activamente os princípios fundamentais da Constituição para sabermos como promover uma consciência colectiva nova e mais justa. Esta é a chave para colocar os dirigentes políticos no seu lugar de servidores públicos. O governo deve ser uma emanação da vontade do povo e os dirigentes, os servidores directos dessa vontade. Relembramos, aliás, que a palavra “ministro” vem do latim e significa “servidor”. O ministro é o servidor do povo.
Trata-se da soberania do povo. E o povo precisa de ser alertado quanto ao seu poder real e como deve exercê-lo melhor e de forma solidária. Na Constituição angolana, a soberania popular é o primeiro fundamento do Estado de Direito democrático. Só depois surge o primado da lei, por exemplo. A soberania “pertence ao povo”, e isto está escrito. O povo é, em suma, o elemento constitutivo do próprio Estado. Não há Estado sem povo. O povo cria, fundamenta e orienta o Estado.
Logo, os políticos, quer estejam no poder quer estejam na oposição, têm de aprender, por via da consciência global da sociedade, a escutar a voz do povo e as aspirações da sua vontade conjunta. O principal papel de um político é saber ouvir os seus cidadãos. Se não ouve e se não é permeável a opiniões contrárias, então não representa o povo, mas sim o autoritarismo, a ditadura.
Em Angola, desde a proclamação da independência, grassa a confusão sobre o que é o Estado. Inicialmente, o MPLA assumiu-se como sendo o Estado e o povo. Com o advento da democracia, a diferença entre Estado e governo (MPLA) manteve-se indistinta.
Hoje em dia, sobretudo através das redes sociais, inúmeros detentores de ideias estéreis ou de ideias avessas ao bem comum tentam promover uma outra confusão sobre o Estado: tenta-se confundir o Estado com o presidente da República. Isto é uma afirmação da cultura colectiva da irresponsabilidade.
Para que serve a liberdade, se todos esperamos que seja o presidente a mandar remover o cadáver de um cão atropelado, na via pública, por um automobilista? Os cidadãos podem passar, indiferentes ao cadáver; os carros podem atropelá-lo múltiplas vezes até desfazer o animal. Mesmo assim, todos respiramos. E todos ficam à espera do senhor presidente para remover o que resta daquele que um dia foi cão.
João Lourenço, o actual presidente da República de Angola, “destronou” José Eduardo dos Santos depois de décadas de ditadura encapotada.
O povo angolano é reivindicativo, mas não cumpre os seus deveres, seja entre cidadãos, seja para com as instituições públicas e privadas, seja para com o Estado. Por exemplo, onde há energia eléctrica exige-se, e muito bem, a iluminação pública; mas são também os próprios cidadãos quem derruba os postes de iluminação, danifica os postos de transformação e vandaliza os cabos de transmissão.
É urgente inculcar na consciência dos cidadãos o seu poder de soberania e de responsabilidade. O Estado somos todos nós, angolanos, dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas como Angola e com um governo que nos representa, bem ou mal.
O que faz o Estado é a qualidade do seu povo, segundo a sabedoria popular. “Quanto mais qualidades o povo tiver, melhor será o Estado”, reflecte Ibn Al Arabi, um sábio muçulmano.
Perguntamo-nos, então, quais das qualidades do povo angolano se reflectem actualmente no Estado?
A primeira é a resiliência. O povo angolano foi um dos mais escravizados e sofreu a mais extensa colonização, às mãos de Portugal. Viveu uma das mais longas e sangrentas guerras civis de sempre. Foi sujeito às maiores pilhagens, às mãos dos seus próprios dirigentes. Tem resistido pacientemente à cultura de intrigas e de divisionismo que legitima todo este passado e presente de destruição.
Mesmo assim, como se afirma popularmente, “estamos juntos e misturados”. A guerra, com todo o seu poder de destruição, gerou também um sentimento maior de pertença entre os angolanos. A corrupção destruiu o povo, mas não o derrotou. Apesar de todas as formas de aniquilação moral da sociedade, de todas as mortes devido à privação de medicamentos e de serviços essenciais, apesar do poder de destruição das instituições do Estado, o povo mantém o seu imenso potencial de mudança.
Outra das qualidades do povo angolano é a capacidade de perdoar e de superar traumas.
São estas qualidades dos angolanos que garantem a unidade nacional. Contudo, elas não são suficientes como elementos transformadores do Estado, nem para o controlo das riquezas nacionais com vista ao desenvolvimento humano do país.
E há um terrível contraponto: o que é francamente mau é a qualidade dos políticos, dos líderes intelectuais, cívicos, sociais, comunitários e religiosos em Angola. Aqueles que deveriam estar mais próximos da população, a inspirar novas ideias, novas formas de pensar e de agir, aqueles que poderiam conduzir o país a uma nova era, são na verdade os mais fracos e temerosos, e muitos são simplesmente perigosos. Por falta de ideias, preferem a confusão. Há um deserto de ideias alimentado pelo caos.
Há uma grande franja da população que tem manifestado o seu desespero face a este estado de coisas. A reacção imediata é pegar na Constituição, analisar os poderes do presidente da República e atribuir-lhe todas as culpas.
Acontece que também o presidente da República olha para a Constituição à procura de um culpado. Esta não é, contudo, a sua tarefa. Tal como os demais dirigentes e decisores, também o presidente – ou sobretudo o presidente – tem de saber liderar e levar a bom porto as aspirações do povo. Deve rodear-se de executores competentes e responsáveis, capazes de transformar estas aspirações em medidas que conduzam à melhoria das condições de vida da população. O presidente deve ser o fiel depositário das esperanças do povo, e deve ser capaz de manter a motivação dos cidadãos por meio de palavras e de actos. A sua liderança deve ser clara e bem comunicada.
Ao fim destes 45 anos de existência enquanto país livre e independente, concentremo-nos então, por meio da leitura da Constituição, no poder supremo do povo, grande soberano em Angola. Devolver o poder a quem o poder pertence, com vista à construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático, deve ser a principal tarefa de todos aqueles que pensam no bem comum para o povo angolano e no desenvolvimento do país.
Apesar das muitas décadas que entretanto decorreram, mais do que nunca é preciso trabalhar para que tenhamos menos intervenção e mais qualidade do Estado, por via dos actos do governo. Quanto menos o Estado intervier na vida do cidadão, mais este poderá dedicar-se a iniciativas privadas profícuas, promover o desenvolvimento e responsabilizar-se pelo destino comum. Só assim teremos um país de possibilidades.
Precisamos, pois, de mais uma qualidade enquanto povo: a da responsabilidade colectiva. É esta qualidade que nos levará por caminhos virtuosos, em que o presidente da República é somente o escolhido do povo para liderar a sua vontade colectiva por tempo determinado.