Um facto muitas vezes não passa de um azar, uma distracção, um erro técnico. Quando assim é, corrige-se facilmente. No entanto, a sua repetição implica outra classificação: um facto sistematicamente repetido torna-se uma norma.
Ora, há um facto proveniente dos juristas que apoiam o presidente da República que se está a transformar numa norma. Esse facto repetido é a confusão permanente sobre o papel e o estatuto dos tribunais num Estado de direito. Parece que para os juristas da Presidência os tribunais são mais um órgão do poder executivo, funcionando como um braço integrado de uma majestática estrutura unificada. De facto, assim é na China. Nesse país, as Comissões de Assuntos Políticos e Jurídicos do Partido Comunista coordenam e têm controlo directo sobre todo o sistema judiciário. Em 2017, Zhou Qiang, presidente do Supremo Tribunal Popular da China, explicitou o conceito e o papel dos tribunais de forma muito expressiva: “[Os tribunais da China] devem resistir firmemente à ideia ocidental de ‘democracia constitucional’, da ‘separação de poderes’ e da ‘independência judicial’. Essas são noções ocidentais erróneas que ameaçam a liderança do Partido Comunista no poder e difamam o caminho socialista chinês no império da lei. Temos de levantar a nossa bandeira e mostrar a nossa espada para lutar contra esses pensamentos. Não devemos cair na armadilha dos pensamentos ocidentais e da independência judicial. Devemos permanecer firmes no caminho do socialismo chinês em relação ao Estado de direito.”
Não é esta a visão adoptada pela Constituição angolana de 2010, que no seu artigo 2.º consagra o Estado democrático de direito de estilo ocidental, e no seu artigo 175.º estabelece que os tribunais, no exercício da função jurisdicional, são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei. Ambas as formulações seguem as tradições do direito ocidental a que se referia Zhou Qhiang, e não as sino-marxistas. Já se sabe que o doutrinador clássico da separação de poderes ocidental é Montesquieu, que no seu famoso livro Espírito das Leis escreveu: “Não há liberdade se o poder judicial não for separado do legislativo e do executivo. Se o poder judicial se juntasse ao legislativo, a vida e a liberdade do súbdito estariam expostas ao controlo arbitrário; pois o juiz seria então o legislador. Se ingressasse no poder executivo, o juiz poderia comportar-se com violência e opressão.”
É fundamental repetir os princípios acerca da separação de poderes e a sua justificação face a determinadas regras menos pensadas e confusas que têm saído da assessoria legal da Presidência.
A primeira proposta descabida – entretanto já corrigida – consistia naquilo que se previa na revisão constitucional acerca do poder judicial, criando-se um poder representado por um órgão administrativo, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, com uma estrutura soberana muito duvidosa que o fazia parecer um Exército, e não um corpo independente de adjudicação. Felizmente, muito sensatamente, os deputados dos vários partidos na Assembleia Nacional perceberam o erro e, com o apoio da larga maioria, rapidamente deixaram cair essa parte estapafúrdia da revisão constitucional. Aqui tivemos um belo exemplo do poder legislativo a funcionar e a ouvir a sociedade civil.
Entretanto, surgiu outro absurdo. O Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março, que aprova o Regime de comparticipação atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos activos, financeiros e não financeiros, por si recuperados.
A ideia subjacente é positiva. Trata-se de entregar aos órgãos de justiça alguns dos bens obtidos no combate à corrupção, criando um estímulo para actuação efectiva e eficiente na recuperação de activos, e em parte inspira-se vagamente no que se passa em Portugal com o Decreto-Lei n.º 11/2007, de 19 de Janeiro, que define o regime jurídico da avaliação, utilização e alienação de bens apreendidos pelos órgãos de polícia criminal. Esse Decreto-Lei permite, no seu artigo 2.º, que os bens apreendidos pelos órgãos de polícia criminal, no âmbito de processos-crime e contra-ordenacionais, que venham a ser declarados perdidos a favor do Estado, sejam afectos a esses órgãos quando possuam interesse criminalístico, histórico, documental ou museológico, ou caso se trate de armas, munições, veículos, aeronaves, embarcações, equipamentos de telecomunicações e de informática ou outros bens fungíveis com interesse para o exercício das respectivas competências legais. Ademais, o n.º 2 do mesmo artigo permite que os mesmos bens possam ser utilizados provisoriamente pelos órgãos de polícia criminal em determinadas condições expressamente previstas.
Consequentemente, pode acontecer que um Inspector da Polícia Judiciária (PJ) apreenda um belo Ferrari vermelho e depois o conduza em operações da PJ. No entanto, a lei portuguesa mencionada é clara em atribuir estas possibilidades apenas aos órgãos de polícia criminal, os quais, para guiarem o tal Ferrari, têm de passar pelo crivo do Ministério Público, de um juiz ou de ambos. Face a esta lei, se um juiz vir o Ferrari e quiser passar a conduzi-lo não tem a prerrogativa de o apreender e passar a sentir diariamente o ronronar do seu motor.
No entanto, não é isto que acontece como o Despacho Presidencial angolano acima mencionado. De acordo com artigo 1.º, n.º 2 os órgãos de justiça a que se aplica o regime de uso dos bens recuperados são a Procuradoria-Geral da República (PGR) e os Tribunais. E no artigo 3.º determina-se que quer a PGR quer os Tribunais receberão 10% do valor líquido de cada activo recuperado. O Despacho levanta algumas dúvidas interpretativas sobre a operacionalização desta medida, as quais não vamos, por agora, discutir.
O conteúdo do Despacho Presidencial n.º 69/21 de 16 de Março, em termos simples, é o seguinte: a PGR e os Tribunais dividirão entre si 10% do valor de todos os activos recuperados. Como se referiu acima, não repugna que a PGR, que tem como função e objectivo recuperar activos e lutar contra a corrupção, beneficie dos seus sucessos. Contudo, não pode ser a PGR a decidir quando vence e fica com os bens. Tem de ser uma entidade independente: os Tribunais. E o problema começa aqui: ao ser atribuída uma parte de 10% aos Tribunais, estes passam a ter um interesse directo na recuperação de activos, pelo que deixam automaticamente de ser independentes e imparciais. O juiz sabe que, se condenar e declarar o Ferrari perdido a favor do Estado, há uma hipótese de beneficiar disso. Esta possibilidade viola totalmente a função soberana de administração da justiça, porque cria um incentivo para a condenação e perda de bens a favor do Estado. Isto é uma confusão e um erro.
O juiz não é um lutador contra a corrupção, não é um recuperador de bens. É o fiel da balança que decide o direito e o justo, defende em simultâneo o acusador e o acusado, o Estado e o arguido. Que arguido acreditará na justiça se sabe que quem o está a julgar pode beneficiar da sua condenação? É por esta razão que a extensão deste Despacho aos juízes é um grave atentado ao Estado de direito e à independência dos juízes. A visão funcionalista que predomina na assessoria legal do presidente em relação aos Tribunais tem de acabar. Há aqui um erro que se repete…