Juristas angolanos consideraram hoje um retrocesso à liberdade de expressão, o polémico artigo 333º do novo Código Penal do país, que condena o ultraje à figura do Presidente da República e órgãos de soberania.
A Lusa ouviu hoje alguns juristas sobre as discussões em torno deste artigo, como Sebastião Vinte e Cinco, que considera esta norma uma ameaça para as liberdades de expressão e de imprensa.
“É um claro retrocesso, temos de convir que é um retrocesso ao nível dos direitos e garantias, mais em concreto para a liberdade de expressão e de imprensa”, disse o advogado, sublinhando que prevê para os próximos tempos “muitos excessos de poder por conta deste artigo”.
Para Sebastião Vinte e Cinco, neste caso, a oposição e as instituições, que ao abrigo da lei e da Constituição têm a faculdade de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalidade das normas, “têm de prestar esse serviço e levarem a questão a tribunal, para ver se se declara inconstitucional essa norma”.
“Se não ocorrer, estarão a consentir numa medida que é simplesmente retrógrada para o contexto universal”, frisou, admitindo que é necessário “haver sempre regras”, referindo-se ao aumento nos últimos tempos do uso da imagem do Presidente da República nas redes sociais em críticas à situação socioeconómica e política do país.
Contudo, considera que “uma coisa é limitar a liberdade de expressão das pessoas físicas, enquanto individualmente consideradas, e outra coisa é, no exercício de profissões nobres, como é o jornalismo e a reportagem, que têm o dever de trazer informações para todo o mundo”.
“Se amordaço um determinado setor da comunicação social estou a criar condições para trazer um tipo de informação só, haverá um monólogo e tudo o resto que estiver em direção diferente ou contrária pode ser criminalizado, a este nível temos aqui um receio muito grande e fundado”, referiu.
Já Benja Satula, diretor do Centro de Investigação do Direito da Universidade Católica de Angola, lembrou que o modelo do novo código estava desenhado para a era do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, e o atual chefe de Estado angolano está a responder como o autor.
Segundo Benja Satula, “como as pessoas que estão a assessorar (o Presidente João Lourenço) são as mesmas, o sistema é o mesmo, ele não teve tempo de ver as repercussões”.
“Se o código tivesse sido aprovado na era de José Eduardo dos Santos, provavelmente eles com toda a máfia que tinham de controlar a comunicação, as pessoas e os movimentos dissonantes, teriam abafado isto, só que o Presidente João Lourenço não tem esta máquina e agora está assumir e vai levar como se tivesse sido ele a chancelar. Ele promulgou é como se estivesse de acordo, esse é que é o grande problema, infelizmente. Isso é azar, é o que eu chamo”, frisou.
Por sua vez, o ex-bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, Inglês Pinto, realçou que o código corresponde àquilo que é mais moderno, em termos de doutrina penal, e atende aos novos valores, atendendo a que o código anterior, de 1886, estava desatualizado.
Inglês Pinto considerou que o problema é a sua adaptação à realidade concreta do país, podendo acontecer o mesmo que ao código de 1886, “que tinha institutos que não eram aplicados” e quase ridículos como o crime do adultério.
“Aquilo nunca foi aplicado”, sublinhou.
“É o problema da realidade concreta do país, quer da realidade sociopolítico e económica como cultural. É preciso ter muito em atenção a esse aspeto, não obstante o facto de ser moderno, faz parte da legislação de outros países, nós temos uma outra realidade”, disse.
Como exemplo mais concreto da sua apreciação, o jurista falou do artigo 333º, que do ponto de vista político, pode condicionar a atividade dos cartoonistas.
“É evidente que como se protege a honra, o bom nome, de qualquer cidadão, o Presidente também tem este direito mas temos que ter atenção que há entidades, do ponto de vista político, que podem ser submetidas a análises, do ponto de vista literário, de criatividade pela personalidade”, defendeu.
O ex-bastonário da Ordem de Advogados de Angola concorda que se um indivíduo utilizar expressões de injúria, de falta de ética e urbanismo, é legítimo a sua penalização, mas não quando se trata de uma caricatura.
“E o que acontece é que as pessoas vão fazendo interpretação extensiva, vão fazer interpretação de excesso de zelo e podem pôr em causa a liberdade de criação”, realçou.
O novo Código Penal e o Código de Processo Penal foram publicados em Diário da República a 11 de novembro para entrar em vigor dentro de 90 dias, em fevereiro do próximo ano.