Um dos intelectuais angolanos mais respeitados em África, o Professor Luís Kandjimbo tem dedicado parte significativa do seu tempo à reflexão sobre questões filosóficas e literárias numa perspectiva endógena.
Na entrevista que a seguir se publica, a propósito do 25 de Maio, o Dia de África, Luís Kandjimbo afirma que “as elites políticas são responsáveis pelas catástrofes que devastam o continente”, isto porque “se deixam seduzir por teorias monistas e eurocêntricas, suportadas por uma ignorância epistémica das complexas realidades continentais”
África continua por realizar o seu desígnio de independência económica e desenvolvimento. O que é que impede ou dificulta a realização desse desígnio?
As razões são múltiplas, multiformes. Aparentemente, os problemas económicos do nosso continente resumem-se simplesmente ao conceito monista de “desenvolvimento”. Isto quer dizer que a ausência de “desenvolvimento” é a causa da miséria existencial e material dos africanos. O que é o “desenvolvimento”, afinal, se se perder de vista a dimensão ética da economia? A resposta e a compreensão da problemática referente à independência económica de África, deve ter o seu verdadeiro centro na condição existencial das mulheres e dos homens que povoam o continente. Por essa razão, integro aquela legião de africanos que não reduzem a existência dos humanos à quantificação dos bens instrumentais que devem estar ao seu serviço. Portanto, se a independência, a autonomia, a autosuficiência das comunidades humanas é mais complexa do que o reducionismo economicista parece fazer crer, então o que pode conduzir à realização desse desígnio não pode ser encontrado nos modelos filosóficos, culturais, políticos e económicos que se tomam de empréstimo ao Ocidente e, mais recentemente, ao Oriente. Como dizem alguns por aí, em África não se inventou nada. A “roda já foi inventada”. Isto é uma manifesta amnésia acerca do símbolo da justiça, a balança, por exemplo, que foi inventada no Egipto Antigo. Por isso, o centro do problema está por desvendar porque ele reside, em primeiro lugar, na compreensão do Homem na sua plenitude e que os modelos económicos devem servir. Quer dizer, há aí um imperativo cultural, em primeiro lugar, já que o Homem é antes de mais um animal cultural. Do ponto de vista conceptual, há que contar irrevogavelmente com o carácter endógeno dos aparatos teóricos, calibrando as ferramentas analíticas suportadas por cabeças assentes em vértebras próprias, nossas, que não sejam próteses. Na história intelectual continental estas ideias têm os seus clássicos. De igual modo em Angola.
Dir-se-ia que África tem sido “traída” pelas suas elites políticas?
Nada seria mais exacto, se não respondesse afirmativamente. As elites africanas, especialmente as elites políticas, têm hipotecado o futuro do continente, quando preferem os discursos dissonantes da dependência, paradoxalmente, como se o desenvolvimento económico de uma comunidade histórica fosse susceptível de reprodução fundada no expediente do “copy paste”. As histórias do pensamento económico ao nível global, particularmente a filosofia da economia, fornecem muitos exemplos que desvendam o perigo das generalizações teóricas e metodológicas. Por aí, fica provada a inexistência de uma validade universal dos actuais fundamentos e receitas do neoliberalismo.
Como se sabe, a falência daquela teoria eurocêntrica do alemão Max Weber, se-gundo a qual o sucesso do capitalismo ocidental tinha a ver com a ética protestante, foi uma consequência dos casos de desenvolvimento económico bem sucedido em países e territórios da Ásia, tais como o Japão, a Índia, a China, a Coreia do Sul, Malásia, Hong Kong e Singapura. Estes são bons exemplos da dúvida que deve ser cultivada sobre a validade universal das filosofias políticas, económicas ou culturais ocidentais. Por isso, as elites políticas são responsáveis pelas catástrofes que devastam o continente, na medida em se deixam seduzir por teorias monistas e eurocêntricas, suportadas por uma ignorância epistémica das complexas realidades continentais.
Nos textos que tem publicado aos domingos aqui no Jornal de Angola tem mostrado que o continente possui uma série de pensadores originais e que se posicionam nos grandes debates filosóficos globais. Nesse aspecto os seus textos têm sido autênticas revelações. Haverá uma falta de circulação do conhecimento africano na própria África?
Essa falta de circulação in-terna do conhecimento africano é a expressão do modelo de pensamento e de produção de conhecimento que se funda na extroversão cujo retrato está na monoprodução de matérias primas. Repare nisto. Apesar da aparente empatia do Ocidente ou do Oriente por nós, eles nunca deixarão de defender os seus interesses, reivindicando competências científicas que presumem ter acerca das realidades do continente para seu benefício. O que está em causa é o modo de produção do conhecimento. A este respeito, as reflexões filosóficas africanas são relativamente abundantes. A consciência da importância que têm as respostas sobre o modo de produção do conhecimento exigem uma séria vigilância crítica permanente para que nós em África tenhamos uma filosofia inflexional, como dizia o democrata-congolês Ngoma-Binda. Devemos fazer um uso adequado das nossas capacidades e produções científicas, deixando assim de ser vítimas dos modelos coloniais que agora sofrem mutações e são vendidos sob a forma de consultorias ou algumas receitas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Uma das figuras que nas organizações de Bretton Woods chamou atenção para isso, relativamente ao continente africano, foi o australiano James Wolfensohn, um dos mais lúcidos presidentes que o Banco Mundial já teve.
Porque é que às vezes dá a impressão que em África os governos andam de costas voltadas à realidade endógena mais profunda dos seus países?
As elites políticas africanas não têm sabido dar valor à Filosofia e História de África, por outras palavras, ao pensamento africano, às experiências vividas, às narrativas correspondentes e aos sujeitos que as produzem e, consequentemente, ao conhecimento científico que lhe está subjacente. Isto tem uma consequência. Governa-se sem bússola e, ainda por cima, cultiva-se uma repugnância pelo conhecimento e saberes gerados no continente africano, numa clara manifestação de dependência, preferindo o que é proposto a partir de certas instituições da Europa ou da América do Norte. Tudo isso como se fosse possível governar uma comunidade histórica a partir de um centro distante à semelhança do que acontecia com o colonialismo. Isto dá uma ideia do alcance das excelentes ideias que, por exemplo, o queniano Ali Mazrui, o nigeriano Olufe-mi Taiwo e o beninense Paulin Hountondji debitaram sobre tópico.
Chegou a ser vice-ministro da Cultura. Nessa qualidade que propostas fez e que foram adoptadas pelo Governo com efeitos duradouros na vida cultural do país?
Em 2008, quando fui convidado para ser vice-ministro da Cultura encontrava-me em Lisboa ao serviço da diplomacia cultural angolana, havia cerca de sete anos. Após uma breve experiência de trabalho com o malogrado embaixador Oswaldo Serra Van-Dúnem, integrava a equipa do embaixador Assunção dos Anjos, um dos mais prestigiados diplomatas angolanos e que, curiosamente, conferia à Cultura o devido estatuto. Portanto, essa experiência diplomática a nível bilateral e multilateral, associada ao conhecimento acumulado, enquanto funcionário do Ministério da Cultura, dava-me uma largura de horizontes acerca dos problemas e das políticas públicas sectoriais. Aliás, desde 1982, participava em eventos de que saíam deliberações importantes para a política cultural de Angola. Por exemplo, em 2007, eu era membro da Comissão Científica para a Redacção da História da Literatura Angolana que transitava da gestão conduzida pelo ministro Boaventura Cardoso e seus vice-ministros. Com ele pretendia-se lançar uma pedra no edifício da política da leitura, do ensino das línguas e da literatura angolana. Lamentavelmente, esse projecto para o qual tinha sido chamado igualmente a dar pertinentes contribuições, e outros que compreendiam a formação artística, a legislação cultural, a condição do artista, as indústrias criativas e culturais, sofreram uma guinada, por força das circunstâncias. Esses eram domínios da minha esfera de competências, enquanto vice-ministro. Mas, a minha passagem pelas referidas funções foi efémera, durou mais ou menos dezasseis meses. Deixei o cargo em 2010, logo após a aprovação da Constituição da República. Passei a dedicar-me exclusivamente à docência que, aliás, não abandonei durante o exercício das funções de vice-ministro da Cultura. Voltei à diplomacia. Fui consultor do Ministro das Relações Exteriores e depois, em virtude de ter vencido o concurso internacional para preenchimento do cargo de Director para Acção Cultural e Língua Portuguesa da CPLP, regressei às lides da diplomacia cultural multilateral, no Secretariado Executivo em Lisboa, onde andei durante quatro anos. Neste capítulo, apesar dos problemas orçamentais com que se debatia e ainda se debate a CPLP, julgo, modestamente, ter deixado as minhas impressões digitais na coopração cultural multilateral e na política cultural externa de Angola.
Há na sua obra um apelo constante à necessidade de um pensamento ou de uma visão endógena. Como é que definiria o pensamento ou a visão endógena tanto no domínio dos estudos literários como filosóficos?
Aprendi com os mais-velhos, sábios do continente que nos devem orgulhar. Um é o falecido historiador burkinabe, o professor Joseph Ki-Zerbo. Outro, também falecido, é o teólogo e sociólogo camaronês, Jean-Marc Ela. Há um livro publicado em 1992, sob a direcção de Joseph Ki-Zerbo, em que ele dá o tom no que se refere à operacionalização do conceito de desenvolvimento endógeno. O endógeno, dizia ele, é um conceito identitário e estratégico. Quanto a mim, diz respeito ao que não é absoluto. É sintoma de vitalidade de um sujeito individual ou colectivo que procura prover as suas necessidades ontológicas, contando com o conhecimento das complexas realidades, próximas ou distantes, que o cercam. Se o conhecimento endógeno é um bem de primeira necessidade, cultivar o endógeno é não dormir na esteira dos outros, porque quem assim procede dormirá eternamente no chão. É a lição que se pode tirar de um provérbio africano, no dizer do Velho Joseph Ki-Zerbo.
A ideia da afirmação de uma perspectiva analítica endógena (africana) em contraposição à perspectiva ocidental é realmente produtiva, tendo em conta que a perspectiva ocidental, ao fim e ao cabo, é essa que vem sob a capa da globalização?
Os Estudos Globais enquanto domínio interdisciplinar ou displina académica vêm demonstrando que a epistemologia ocidental, a filosofia do conhecimento ocidental em geral, é eurocêntrica, assenta na exclusão do Outro, africano, asiático e sul-americano, partindo do pessuposto segundo o qual o “universal” confunde-se com o que é ocidental, europeu ou norte-americano. Procede-se à racialização da filosofia e da ciência. Perde-se de vista o lugar a partir do qual se fala e pensa. Como se pode compreender, não se trata de uma contraposição ou oposição gratuita. Trata-se da necessidade de fazer pedagogia, introduzir alguma racionalidade nesse falacioso pensamento secular que, remontando à antiguidade europeia, sustenta a imaginação e as invenções do Ocidente.
Os saberes da tradição africana circulam na oralidade e para o seu conhecimento é preciso o domínio das línguas africanas, que, infelizmente, no caso de Angola e outros países, não têm merecido a devida dignificação institucional. Há o risco desses saberes se perderem?
Voltamos ao problema do modo de produção do conhecimento sobre o qual Olufemi Taiwo produziu uma interessante reflexão. Essa produção comporta aquilo a que Paulin Hountondji, após a revisão das suas posições iniciais, vem reconhecer como “saberes endógenos”. Estes saberes, as formas de expressão oral e as respectivas línguas são indispensáveis. Aliás, a União Africana dispõe de diferentes instrumentos em que se consagra os saberes e as línguas africanas como fundamentos do Renascimento Cultural. A UNESCO, de que Angola é também Estado-Membro, aprovou a Convenção Sobre a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005. Ao abrigo de instrumentos internacionais como a Carta do Renascimento Africano, por exemplo, Angola, que ractificou em 2016 e depositou três meses depois, tem a obrigação de integrar no seu direito interno as formulações normativas que daí derivam. De igual modo o que vem plasmado nessa Convenção da UNESCO.
Na sua opinião as universidades em África, enquanto centros geradores de conhecimento, são devidamente valorizadas pelos governos africanos?
As universidades em África são dispositivos do modo de produção do conhecimento. Mas nem sempre os governos e os investidores privados reconhecem tal facto. Trata-se de uma negligência que afecta a qualidade de ensino no nível terciário. Por isso, as universidades públicas e privadas, descontando honrosas excepções, não cumprem os seus fins, objectivos e missão como seria desejável. São poucos os bons exemplos, nesta matéria. Em Angola, isso também é evidente. Aliás, as estatísticas podem ser úteis, não mentem. Basta ler os relatórios da SADC e da SARUA, a Associação Re-gional das Universidades da África Austral. Será necessário investir mais, evitar a armadilha de que a prioridade deve estar centrada em áreas disciplinares e científicas que constituem as chamadas STEM, ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas. Não é verdade. O financiamento consagrado ao ensino superior e à investigação científica deve ser total, correspondendo àqueles indicadores respeitantes ao capital humano para os quais aponta a Estratégia Continental para a Educação 16-25 e a Agenda 2063 da União Africana. De contrário, a longo prazo não teremos nem Zona de Livre Comércio, nem industrialização, a nível regional ou sub-regional. O meu amigo Marcolino Moco deu um valioso contributo, ao mais alto nível, para essa reflexão, com o seu livro dedicado ao pensamento jurídico panafricano e ao Direito de Integração Regional.
De que modo é que todo o potencial de saberes e de talentos das diásporas africanas deveria ser devidamente enquadrado e aproveitado em benefício do continente?
O imperativo reside na urgência de transpor os condicionalismos do poder de definição do Ocidente, na medida em que nada legitima o monopólio unicêntrico do carácter universal da ciência e de outros saberes. A existência de diásporas africanas intelectuais recentes, para as quais Angola contribui com uma minúscula percentagem, revelam a eficácia das estratégias de atracção de cérebros africanos para as universidades e centros de investigação do chamado Norte Global. Os governos africanos devem reverter a situação, transformar essa drenagem de cérebros como estratégia sua à escala continental. Há que contar também com os aportes das diásporas intelectuais africanas antigas, os afrodescendentes, existentes em todo o mundo, que fazem parte da chamada 6ª sub-região no contexto da União Africana.
Na sua qualidade de membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para elaboração da História Geral de África, pode dizer-nos, concretamente, qual é o campo da sua contribuição pessoal?
Foi em Novembro de 2013 que recebi uma carta da Directora-Geral da UNESCO, então Irina Bokova, através da qual me formulava o convite para ser membro do Comité Científico Internacional que organizaria a edição do IX volume da História Geral de África. Ela anunciava que o Comité Científico seria constituído por dezassete membros, escolhidos de acordo com a sua competência pessoal e enquanto especialistas nos domínios relacionados com os desafios com que se confronta o continente africano. A essa equipa multinacional de que fiz parte coube a responsabilidade científica e intelectual de coordenar o trabalho editorial e outras acções conexas, tais como a leitura e revisão de dezenas de textos que constituem os capítulos, propostas e recomendações de autores. A meio do percurso, concluiu-se que o material produzido era abundante e de grande qualidade. O Comité propôs que a Directora-Geral aprovasse a decisão de publicar três novos volume da História Geral de África, designadamente, IX, X e XI. É o que vai acontecer. Quanto à minha contribuição pessoal, sou autor de dois capítulos, um no IX volume, que tematiza a descolonização das literaturas africanas e outro no volume X, que tematiza o papel dos intelectuais, escritores e artistas.
Existe realmente uma Filosofia Africana?
Na segunda metade do século XX, um dos mais importantes debates que mobilizava os meios académicos africanos e da diásporas africanas esteve centrado na luta de posições e polarização de oponentes, tendo em vista a legitimação da Filosofia Africana e suas correntes de pensamento. Esta é uma questão que hoje já não suscita discussão argumentativa. Reina a unanimidade nesta matéria. Não faz sentido nenhum revelar cepticismo a respeito desta capacidade dos Africanos, a de produzir um discurso racional e sistemático sobre o mundo, a natureza, a sociedade, enfim, os fenómenos da própria existência humana. A História da Filosofia Africana fornece as devidas âncoras. Basta ler o livro sobre a filosofia africana do período faraónico do professor congolês Théophile Obenga. A Filosofia Africana hoje é o centro de gravidade de um campo disciplinar e académico. À volta dele ministram-se cursos, redigem-se teses de mestrado e dissertações de mestrado, organizam-se congressos, publicam-se livros e editam-se revistas especializadas. O meu caro amigo não imagina o volume da bibliografia. No nosso país é também um tópico dos programas da disciplina no segundo ciclo do ensino secundário e uma disciplina dos cursos de Licenciatura em Filosofia. Discutível pode ser eventualmente a qualidade do seu ensino e as competências pedagógicas de quem a lecciona.
Pode apontar cinco aspectos altamente positivos do continente africano, nos vários campos, e que devem ou deveriam orgulhar qualquer africano?
Quanto a mim, merecem ser mencionados os seguintes domínios: Papel das mu-lheres na família (Ética); População jovem (Demografia); Tradição oral (História); Obras literárias e de arte como património (Estética); Metais raros e outros recursos naturais (Geociências).
Voltamos à questão inicial. Quais são os grandes entraves ao desenvolvimento de África?
A dependência multiforme é a metonímia de um enorme obstáculo, como disse. Remover esses obstáculos significa introduzir rupturas de fundo e assumir o poder de definição das prioridades do desenvolvimento endógeno, de acordo com as nossas necessidades. Este é o desafio das próximas décadas, se quisermos tirar proveito daquilo que se vem designando como “dividendo demográfico”, o excedente demográfico de uma população activa jovem, capaz de garantir ao continente um capital humano à altura do seu tempo.