O ativista luso-angolano Luaty Beirão considera que 20 anos depois do calar das armas em Angola falta ainda alcançar a paz social e critica o uso da paz como “arma de arremesso” pelo partido do poder (MPLA) que constantemente recorda “que ela é frágil”.
Há 20 anos, em 04 de abril de 2002, o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), as duas formações políticas beligerantes que estiveram envolvidas, desde a independência do país, numa longa guerra civil que se arrastou por três décadas, assinavam na cidade de Luena (Moxico) os acordos que, finalmente, permitiram a Angola viver em paz.
Mas “depois de se conquistar a paz das armas é preciso conquistar a paz social, é preciso criar empregos, estabilidade, dignidade para a vida (dos angolanos)”, diz o ativista luso-angolano Luaty Beirão, lamentando que “infelizmente, 20 anos depois”, a paz seja tida como uma arma de arremesso.
“É permanentemente lembrado que ela é frágil. Não é à toa que, 20 anos depois, o lema das eleições ainda seja ‘vota pela paz’. Há um lembrete permanente de que a paz tem dono e que esse dono (o MPLA) esta sempre predisposto a deixar cair tudo”, critica.
Em ano de eleições, a ameaça pode ser mais real, admite o também músico, que ficou conhecido pela sua luta em prol da liberdade de expressão, democracia e luta anticorrupção.
Luaty Beirão fazia parte de um grupo de 15 jovens detidos em 2015, quando debatiam um livro sobre ditaduras e democracias, e acusados de estar a preparar um golpe de Estado contra o Governo MPLA, então liderado por José Eduardo dos Santos, um processo que ficou conhecido como “15+2”.
“É uma ameaça que nos é permanentemente recordada: a paz depende de um lado e se esse lado for posto em causa, incluindo perder eleições de forma limpa, pode ficar em causa. É o que está nas entrelinhas do evocar dessa palavra sempre que vem do lado do Governo”, aponta o ativista, reconhecendo que “infelizmente, a paz é frágil”.
“A paz social não foi conquistada, as pessoas estão tensas, estão revoltadas e se as coisas não forem feitas de forma a descomprimir, pode haver tensões que levem a conflitos”, considera, frisando ainda que os angolanos nunca quiseram guerra, antes foram convocados para ela.
Segundo Luaty Beirão, “quem tem a última palavra é quem os convoca, quem lhes põe armas nas mãos, quem lhes põe botas nos pés e os manda para uma frente de combate que eles não pediram. Essas pessoas estão predispostas a fazê-lo de novo e isso é um infortúnio. Isso magoa”.
Conhecido no meio artístico como Ikonokasta, o “rapper”, de 40 anos, conviveu metade da sua existência com a guerra, período de que guarda algumas recordações infelizes: “É claro que viver em paz é melhor do que viver em guerra, eu lembro-me de ver pessoas, estudantes, a ser apanhadas na rua e levadas para a frente de combate, pessoas que tiveram de abdicar das suas vidas para que pudéssemos estar aqui hoje”.
Mas reforça: “vinte anos depois é impossível não nos perguntarmos o que se conquistou, o que se conseguiu, o que tantos anos de conflito, em que as pessoas doaram, por vezes, involuntariamente as suas vidas trouxe ao país”.
Lamentou, por outro lado, que a criação de emprego e a diversificação da economia, prometidas há mais de 20 anos não continuem a passar de “chavões” que “até hoje não se materializam”, o que deixa “um sabor agridoce” quanto às conquistas da paz que “foi um ponto de partida”.
Afirma, no entanto, que nem tudo foram oportunidades perdidas.
“Há sempre qualquer coisa que se ganha, há uma maturação que leva o seu tempo, sobretudo quando não houve investimento na educação”, disse o ativista, considerando que esta foi uma das principais oportunidades perdidas, levando o país “a depender de estrangeiros para tudo”.
“Continuamos a deitar pela janela a oportunidade de educar a nossa população para ela poder gerir este país no futuro e isto parece ser feito com intenção”, criticou Luaty Beirão, recordando que Angola se comprometeu a investir 20% do seu orçamento na educação em 2000, o que ainda não se concretizou.
Referindo que “há muitas oportunidades desperdiçadas”, reconhece, no entanto, que “as pessoas estão a aprender a reivindicar e a não se deixarem pisar, como acontecia”, apesar de o processo ser lento.
“Às vezes perdemos a juventude, querendo que as coisas andem mais depressa, temos de saber aceitar que nem sempre vão ao ritmo que gostaríamos. Mas não devemos continuar a adiar o ponto zero”, concluiu.