Há uma terra que brilha por fora mas sangra muito por dentro.
Há um povo privado dos seus sonhos, despojado do chão onde repousa o cordão umbilical de distintas linguagens. É um traço de união que não pode ser rompido porque é eterno como os diamantes.
Há uma data no calendário que jamais será apagada. Uma data grávida de insinuações, cuja paternidade escuda-se num incontornável ponto de interrogação. Quem derramou o primeiro sangue?
Há uma história aprisionada na vila mineira de Cafunfo. Naquela manhã de sábado, 30 de Janeiro de 2021, várias vidas foram ceifadas diante de quem tem a obrigação de as proteger. A legítima defesa não deveria nunca resvalar para o espezinhamento de cadáveres em hasta pública, à luz do dia, num ritual de sadismo primitivo.
Há uma mania doentia que confunde valentia com rebeldia, tornando-se incapaz de evitar uma sangria perfeitamente evitável. Nunca é demais recordar que no início da década de 70, quando os camaradas estavam profundamente divididos, as populações da frente leste ajudaram o “movimento” a reerguer-se das cinzas para assumir o poder no dia 11 de Novembro de 1975. Naquela época, as massas populares eram celebrizadas como pilares fundamentais da revolução, merecendo o título pomposo de povo heróico e generoso.
Hoje em dia, há milhentos motivos de indignação quando os filhos do povo promovem manifestações e acabam feitos reféns de uma rebelião pré-fabricada, qual emboscada em tempo de paz.
Há um debate inquinado por uma enxurrada de comunicados. Porém, os analistas da situação não prestam a mínima atenção à angústia das viúvas no recolhimento do Kutulama. Os comentadores do costume não têm sensibilidade para amparar os órfãos de futuro incerto.
Há muitas vozes abafadas por conveniência de serviço. Mas todo o mundo comunga o princípio sagrado segundo o qual “ninguém é tão poderoso que não possa ser punido e ninguém é pobre demais que não possa ser protegido”. Fim de citação. É por isso que ninguém, absolutamente ninguém, terá poderes para silenciar a ngoma, o tchikuvu (cikuvu), a pwita e o ndjimba, alicerces legítimos da txianda (ciyanda) e de todas as danças e ritmos contagiantes do leste de Angola.
Há imensas riquezas que não favorecem os filhos da terra. Qualquer forasteiro amancebado com os poderosos da capital manda mais do que todos os soberanos da região. Se o status quo não for alterado, alguém poderá privatizar o rio Cuango com propósito de afogar os nativos insubmissos que não se cansam de alertar que não há paz sem justiça.
Há uma tese defunta que foi desenterrada para justificar as assimetrias regionais. Toda a culpa é do colonialismo. Os repetentes que governam o país, há mais de 45 anos, não podem ser responsabilizados porque já encontraram a pobreza e as desigualdades sociais. Afinal, a independência e a paz serviram apenas para que as famílias reinantes pudessem engordar as suas contas bancárias na antiga potência colonial, com os milhões desviados do petróleo e dos diamantes? Não pode ser verdade.
Há uma verdade verdadeira que não deve ser escamoteada. A administração do estado nas zonas diamantíferas resume-se à presença da Polícia Nacional, das Forças Armadas e das empresas de segurança. As repartições públicas, geralmente instaladas em escombros e casebres, com funcionários impreparados, constituem mais problemas do que soluções. Os serviços de registo e notoriado, quando funcionam, confundem-se com mercados paralelos. As escolas e os centros de saúde não têm o mínimo de dignidade. Quase não se fala em formação profissional e assistência social. Nas chanas do leste, não qualquer programa de preservação ambiental ou saneamento básico. As ravinas ameaçam bairros inteiros e as estradas perdem-se na imensidão das crateras.
Há uma pergunta que não quer calar: como é possível manter, durante décadas, várias gerações de angolanos em permanente situação de penúria, numa região abençoada com uma rica bacia hidrográfica que proporciona recursos abundantes e paisagens deslumbrantes?
Há uma realidade que os noticiários não mostram porque os editores não estão orientados para entender a vitalidade das populações do leste. Não são os diamantes que combatem a fome e a malnutrição. Não. São as virtudes da mãe natureza que garantem os nutrientes essenciais: makenene, macosso, capande, mussogi e outras tantas iguarias ricas em proteínas, vitaminas, fibras e minerais livres das gorduras institucionais. O maboque e a ginguenga continuam a madurar livremente no mato, longe das negociatas à volta dos fertilizantes.
Há um grande equívoco em torno da produção nacional. O estado continua ser o maior importador de quase todos os insumos agrícolas, quase sempre sem concurso público. A gestão das águas é disputada por diferentes departamentos ministeriais que não encontram um ponto de intersecção, divergindo nas respostas adequadas para a problemática da seca, da erosão dos solos e da desertificação.
Há necessidade de uma melhor concertação entre decisores e produtores. Não é possível incrementar a qualidade, aprimorar a competitividade e baixar os preços dos principais produtos sem absorver a ciência dos agricultores familiares. Que se importem mais camiões, carrinhas e cisternas. Sem uma aposta séria na criação de condições de acondicionamento, conservação e transformação dos produtos do campo, uma boa parte da produção acabará irremediavelmente no lixo.
Há um historial de preconceitos que toldaram a mente de quem mandato para defender o bem comum. É por isso que as inteligências domésticas não se aperceberam que a União Europeia acaba de introduzir no cardápio comunitário larvas do besouro, devido ao seu alto valor nutricional. Entre os iluminados cá do burgo, não há uma visão capaz de capitalizar o valor nutritivo da ginguna, do catato e da quihanza que bem poderiam concorrer para a redução dos altos níveis de subnutrição que afectam milhões de gestantes e crianças angolanas.
Há uma autoridade instituída que deveria ser mais dialogante. Sem discursos incendiários. Sem ameaças de mísseis balísticos que até podem ter efeito boomerang. O país precisa apenas de um pacto genuíno entre todas as sensibilidades. A inauguração da nova era de diálogo franco e aberto bem poderia ter lugar na frente leste, a região que revitalizou a luta de libertação nacional e acolheu a paz sacramentada por angolanos cansados de uma longa guerra, em que os únicos vencedores foram os fabricantes e traficantes de armas.
Há uma ferida aberta no coração da Mwana Pwó que só poderá cicatrizar se houver um inquérito imparcial, levado a cabo por uma comissão parlamentar multipartidária, com a participação efectiva das igrejas e da sociedade civil.
Há muita sabedoria convergente no olhar de Samanhonga. A correnteza do rio Cuango não pode continuar a ser aproveitada como lavandaria da esperteza de gente posicionada à margem e acima da lei. A vila mineira de Cafunfo precisa de ser transformada em destino promissor para investidores e peregrinos de todos os quadrantes. Mas primeiro é imperioso que este país, uno e indivisível, saiba encarar de frente todos os seus problemas para que possa adoptar soluções consensuais com base numa distribuição equitativa das riquezas do subsolo, dos rios, das florestas, do mar e do ar que deve ser competentemente purificado.
Será assim tão difícil perceber que há uma Nação que clama por vontade política e bom senso para enxugar, de uma vez por todas, as lágrimas de sangue que teimam em macular o brilho dos diamantes? Angola merece uma explicação.
Alves Fernandes, Luena, 14/02/2021