O ativista e investigador angolano Rafael Marques considerou hoje que a indefinição político-administrativa é um dos fatores na origem dos problemas na vila mineira de Cafunfo e defendeu a criação de um tribunal ou um procurador residente na localidade.
O também presidente do UFOLO – Centro de Estudos para a Boa Governação, promotor das jornadas sobre cidadania e segurança que decorreram em Cafunfo, cerca de um mês depois dos incidentes com a polícia que provocaram um número indeterminado de mortos e feridos, salientou que há sempre condições para que os angolanos se entendam e vivam em paz.
“Tem de se remover os empecilhos que estão na origem do clima de tensão em Cafunfo”, apelou, indicando alguns fatores que necessitam de ser resolvidos entre as quais a indefinição politico administrativa numa localidade com 175 mil habitantes.
“Não é bairro, não é comuna, não é distrito, não é município, e, como tal, a principal instituição do estado é a esquadra policial, onde os cidadãos tendem a recorrer para as suas reclamações”, afirmou à Lusa o também responsável pelo ‘site’ Maka Angola.
Por conta dessa falta de definição, prosseguiu, “Cafunfo tem sido uma terra de ninguém”, à qual é preciso conferir dignidade.
O facto de Cafunfo ter uma brigada militar permanente leva, segundo Rafael Marques, a que a polícia recorra ao exército quando se vê a braços com uma convulsão social, sendo que nem uma nem outra são talhadas para responder aos problemas sócioeconómicos da população.
“Daí que, sempre que se fala numa manifestação, fala-se de uma esquadra de polícia”, explicou.
No dia 30 de janeiro, segundo a polícia angolana, cerca de 300 pessoas ligadas ao Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT), que há anos defende a autonomia da região, tentaram invadir uma esquadra policial, obrigando as forças de ordem a defender-se, provocando seis mortes.
A versão policial é contrariada pelos dirigentes do MPPLT, partidos políticos na oposição e sociedade civil local, que falam em mais de 20 mortos e alegam que se tratou de uma tentativa de manifestação, previamente comunicada às autoridades
O MPPLT luta pela autonomia da região das Lundas, no Leste-Norte de Angola, com base num Acordo de Protetorado celebrado entre nativos Lunda-Tchokwe e Portugal nos anos 1885 e 1894, que daria ao território um estatuto internacionalmente reconhecido.
Rafael Marques defendeu que a elevação da localidade a município, dotada das estruturas próprias desta divisão administrativa, reduziria as tensões.
Questionou ainda o facto de uma localidade com esta dimensão e com os problemas sociais que tem não ter um procurador residente que “possa garantir a paz social, investigando, inquirindo sobre os casos”.
“Como é possível falar-se em justiça?”, interrogou-se, apelando a que se acelere a criação de um tribunal para atender aos casos.
Sobre a falta de benefícios da principal riqueza da região, os diamantes, a favor da população, disse que basta olhar para a rua principal de Cafunfo: “Não tem asfalto”, observou, sublinhando que o encontro serviu também para juntar comunidade local e empresas diamantíferas para que estas possam resolver as questões que lhe foram colocadas.
Rafael Marques afirmou que os resultados das jornadas, entre terça-feira e hoje, foram os esperados, mas considerou que é preciso habituar a população a falar, e a ter “tolerância” para ouvir, embora isso nem sempre tenha acontecido.
Ao longo dos dois dias de jornadas, houve vários momentos de apelo ao diálogo e à calma e outros tantos de agitação, algum nervosismo e ruído que obrigaram a interromper os trabalhos.
O encontro de hoje, onde estavam previstos vários testemunhos sobre os acontecimentos de dia 30 de janeiro, acabou por ser encurtado devido à tensão e burburinho que se gerou no salão 04 de abril, onde se reuniram 600 pessoas, deixando insatisfeitos alguns cidadãos que queriam ser ouvidos.
O chefe do Departamento de Policiamento e Ordem Pública Superintendente-chefe Cláudio Tchivela trouxe uma mensagem de conciliação, apelando a que os cidadãos ainda fugidos nas matas regressem e sublinhando que não há qualquer orientação relativa à perseguição de pessoas que tenham estado envolvidas nos incidentes e que as pessoas são livres de circular.
“A vida tem de voltar ao normal, sabemos que há um histórico de violência, mas há vontade de mudar e resolver as coisas”, garantiu.
Mesmo assim, alguns jovens exprimiram à Lusa o seu descontentamento, queixando-se de falta de liberdade, restrições à circulação e desrespeito pelos seus direitos por parte das autoridades.
Jose Adelino Tchizongo disse à Lusa que a sociedade civil do município do Cuango quer soluções em diálogo com o Estado para encontrar as causas das mortes.
“Não se resolve os problemas sem achar primeiro a causa”, salientou, afirmando que a “manipulação ” e “barulho” que se fizeram sentir no encontro não permitiram encontrar soluções.
Afirmou ainda que os acontecimentos de dia 30 de janeiro se deveram ao “sofrimento”.
“Não somos rebeldes, não queremos dividir o país, Angola é única e indivisível. Mas o sofrimento faz com que este povo saia à rua”, exclamou.
Linda Moisés da Rosa esteve também no encontro, pedindo justiça para os dois filhos, que disse terem sido mortos há alguns anos por empresas de segurança privadas, sem que ninguém tenha sido responsabilizado.
Ao encerrar as jornadas, a secretária de Estado para os Direitos Humanos, Ana Celeste Januário, disse que Cafunfo foi, durante dois dias, um espaço para o exercício de direitos e para ouvir opiniões contrárias, ideias e interpretações, bem como a recolha de alguma informação adicional sobre os factos de 30 de janeiro e o dia-a-dia dos cidadãos.
Disse ainda que as pessoas devem reclamar os seus direitos e ajudar as instituições a cumprir “com zelo” o seu papel, sublinhando que o Ministério da Justiça e Direitos Humanos está comprometido em acompanhar estas questões.
“Já temos um comité dos direitos humanos na Lunda Norte e estamos a trabalhar no sentido de estender essa estrutura para todos os municípios da província”, afirmou, explicando que se propõe criar um fórum de diálogo onde a sociedade civil poderá, de uma forma mais frequente, apresentar as suas inquietações.
O Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos instaurou um inquérito para esclarecer os incidentes de 30 de janeiro, que corre em paralelo ao processo-crime já instaurado pela Procuradoria-Geral da República.