Professores alertam para o fim da investigação científica nas instituições públicas. Várias vozes no privado juntam-se contra a decisão do Executivo. Há quem defenda uma reforma urgente na investigação para haver outra dinâmica. Ministério defende-se, no entanto, afirmando que não extinguiu a investigação.
Depois de sucessivas tentativas para serem ouvidos, os directores dos 11 Centros de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Agostinho Neto (UAN) continuavam sem resposta pelo menos até ao fecho desta edição.
Em Dezembro do ano passado, foi aprovado o decreto presidencial 330/20, de 07 de Dezembro, que prevê a extinção dos CEIC. O decreto propõe que estas instituições, nas universidades públicas, sejam transformadas em departamentos das faculdades. Os professores contestaram a decisão num documento assinado a 25 de Março e dirigido ao presidente da 6.ª comissão da Assembleia Nacional, com cópias para a ministra do Ensino Superior Ciência, Tecnologia e Inovação, para o reitor da UAN e para o director do Gabinete de Quadros do Presidente da República. Neste documento, os responsáveis dos centros contestam o decreto, alertando que “pode pôr em causa a autonomia de pesquisa e de pensamento”. Ainda chamam a atenção de que a opção de extinguir os centros, sem que os professores tivessem sido ouvidos, seria “extremamente negativo” para as universidades e poderia “pôr em causa os objectivos e metas definidos no Plano de Desenvolvimento Nacional 2018-2022 bem como a aspiração à inclusão de algumas universidades angolanas nos ‘rankings’ internacionais”.
Sem conhecerem a resposta, os centros foram solicitados pela reitoria da UAN a dar um parecer sobre um projecto de decreto presidencial, destinado a revogar o decreto 125/15 de 01 de Junho, que aprova o regulamento das instituições públicas de investigação científica, desenvolvimento tecnológico e inovação. No parecer a que o Valor Económico teve acesso, os centros deixam bem clara a discordância de algumas opções do projecto. A principal divergência é de que as universidades não podem criar centros de investigação, ficando dependentes sempre de uma aprovação do Ministério. Os centros entendem que essa é “uma violação ao princípio da liberdade científica das instituições do ensino superior”.
Universidades sem investigação científica
O director do Centro de Estudos de Direito Público e Ciências Jurídico-Políticas da UAN, Raul Araújo, acredita que o decreto presidencial vai mesmo avançar. “É uma pena, mas, infelizmente, é a realidade que estamos a viver”, comenta (ver entrevista da página 4 a 7).
O académico lamenta a decisão do Governo e critica o facto de os directores dos centros nunca terem sido ouvidos. “Foram ignorados simplesmente”, resume. Por isso, reforça a ideia de que passar os centros de investigação para unidades orgânicas é “dizer que não vão fazer nada porque já era assim”. “Quando discutimos a necessidade de criação dos centros, em 2010, foi porque chegámos à conclusão de que era preciso autonomizar o sistema de investigação sob pena de a universidade ficar apenas a dar aulas”, recorda.
Professor há mais de 37 anos, Raul Araújo exemplifica com o que se passa na Faculdade de Direito, na qual a maioria dos professores são juristas e o corpo docente é formado quase na totalidade por colaboradores. “Quem é que vai ficar em ‘full-time’ a trabalhar numa instituição? A Faculdade de Direito está fora de hipótese. E, ainda por cima, são todos juristas. Temos um corpo docente formado quase a 100% por colaboradores. São pessoas que vão lá cumprir as suas obrigações, dão aulas e ficam apenas nas aulas. Não estão disponíveis para fazerem mais nada. Presumo que nas outras unidades orgânicas se passe o mesmo”, explica.
PESQUISADOR DIZ QUE INVESTIGAÇÃO É BAIXA E PROPÕE MUDANÇAS
O investigador angolano do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) Jonuel Gonçalves acredita que Angola precisa de definir uma nova política de pesquisa científica. O economista diz que os centros de investigação científica “estão com um funcionamento muito mais teórico do que real” e que têm uma “produção muito baixa”.
Jonuel Gonçalves afirma desconhecer a causa para a extinção dos centros, mas acredita que a decisão possa estar relacionada com a dispersão de verbas. “O raciocínio deve ter sido este: uma universidade que não faz pesquisa e não investigou não é uma universidade. Só o ensino em si depende da pesquisa. Nunca acompanhamos a inovação, nem nunca produzimos inovação nem conhecimento aprofundado de diversos aspectos. Não há produção científica nossa.”
O investigador aponta como caminho a manutenção dos centros tal como estão concebidos e que sejam colocados a funcionar ou que cada disciplina em si possa ser uma unidade de ensino e pesquisa ao mesmo tempo. “O docente é obrigado a fazer pesquisa. Esta via só funciona se existir um grande instituto de investigação científica que existe na prática, mas que também tem uma actividade limitada”, comenta.
Para o investigador, esta é uma forma de ter, por um lado, a pesquisa de terreno em baixa e, por outro, uma espécie de grande coordenação em cima, que tem um corpo permanente de investigadores e convidados que são todos os professores que fazem pesquisa. “Este é o sistema mais simples”, assinala.
Jonuel Gonçalves, a residir actualmente em Portugal, mas com currículo universitário em Angola, África do Sul e Brasil, defende que, se a opção for manter os centros, estes têm de ser obrigados a funcionar com verbas próprias, planos de trabalho e prazos. “O prazo é fundamental. Há investigadores em várias partes do mundo, mas sobretudo em Angola que têm pesquisas que já estão lá há 10 anos projectadas e não se fazem”, repara.
Ao contrário de Raul Araújo, Jonuel Gonçalves acredita que o facto de muitas faculdades terem apenas professores colaboradores não impede que se faça pesquisa. “Isso não é uma dificuldade. Não me agarro aos nomes das entidades que vão fazer pesquisa. O que me preocupa é que não haja nenhuma ou que existam algumas e não funcionam ou que só funcionam teoricamente. Ter um centro e ele não funcionar é um problema. Se funcionar, deve continuar.”
O economista diz que os professores têm de fazer pesquisas e “não se podem limitar e dar aulas e ir para casa”. “O professor tem de fazer pesquisas. Tem de escrever artigos. Um professor é classificado em função da sua produção como docente e do que escreveu”.
ALVES DA ROCHA LAMENTA DECISÃO DO GOVERNO
O director do Centro de Estudos e Investigação Cientifica (CEIC) da Universidade Católica lamenta a decisão do Governo e assegura que os centros de investigação das universidades públicas têm “trabalho feito e provado”.
Alves da Rocha não entende as razões que podem levar o Ministério do Ensino Superior a propor ao Presidente da República a extinção destes centros, mas acredita ser “um recuo na investigação científica feita no país”. “Se foi possível pô-los a funcionar no meio de tanta dificuldade é porque estes centros têm valia e têm apresentado resultados”, contrapõe. “Custa-me acreditar que o senhor Presidente da República, juntamente com a sua assessoria, tenha concordado em transformar os centros de investigação em departamentos das faculdades”, frisa.
O docente universitário teme ainda que a “investida” aos centros de investigação públicos possa também atingir os centros privados, criticando o MPLA por “querer chegar a todo o lado”. “O meu receio é que esta investida contra os centros atinja também as universidades privadas. Nada me garante que também não se possa ir por aí, que as universidades não podem ter centro de investigação”, receia.
Alves da Rocha vaticina que, se isso acontecer, “o país vai ficar sem centros de investigação independentes e objectivos e que sempre que os ‘rankings’ internacionais forem publicados não se deve ficar espantado se Angola não constar neles”.
Ministério diz que centros não foram extintos
O Ministério do Ensino Superior nega que os centros tenham sido extintos com a publicação do decreto presidencial 330/20, de 07 de Dezembro. Em resposta às questões do Valor Económico, o Ministério explica que o decreto não contém nenhuma disposição normativa que determine a extinção dos actuais centros de Estudo e Investigação Científica da UAN ou de qualquer outra instituição de Ensino Superior e que o propósito é “enquadrá-los nas faculdades e institutos superiores, conformando-os à actual legislação”.
Salientando que “continua a defender a existência de centros de Investigação Científica e Desenvolvimento nas instituições de Ensino Superior”, o Ministério explica que foi estabelecida uma nova unidade orgânica especializada que será o Instituto de Investigação Científica e Desenvolvimento para “reforçar e elevar a implementação de actividades de investigação científica e desenvolvimento”.
Refere ainda a tutela que, para clarificar a situação dos centros, foi definido que os mesmos sejam enquadrados na nova estrutura orgânica das Instituições Públicas de Ensino Superior (IPES) como centros de Investigação Científica e Desenvolvimento. “Isto deriva do facto de elas cumprirem com a finalidade para as quais foram criadas, a de dinamizar as actividades de investigação científica e desenvolvimento nas faculdades ou institutos superiores de onde originaram ou da respectiva área de actividades ou afins, uma vez que as actividades de ensino, incluindo ao nível da pós-graduação, são organizadas pelas universidades e institutos superiores que, de forma natural, exercem função”, argumenta.
Segundo ainda o Ministério, tanto os Centros de Investigação e Desenvolvimento, como os Institutos de Investigação Científica e Desenvolvimento, passam a dedicar-se “exclusivamente à função investigativa”.