Por estes dias assistimos à terceira greve em três anos (as anteriores foram em 2017 e em 2020) dos funcionários do Tribunal Supremo.
De acordo com o funcionário Fernando Feca, presidente da comissão de instalação do sindicato dos funcionários judiciais do Tribunal Supremo, o objectivo desta greve é protestar contra o facto de estes funcionários serem, de entre os que estão ao serviço dos tribunais superiores (Tribunal Constitucional, de Contas e Supremo Militar), aqueles que ganham menos.
Na realidade, os funcionários de Tribunal Constitucional ganham duas vezes mais do que os seus equivalentes do Tribunal Supremo e, no entanto, a pendência média de processos judiciais no Constitucional é de 15 processos por juiz, enquanto no Supremo é de 400 processos por juiz, o que obviamente implica uma intensidade de trabalho fortemente acrescida. Há aqui uma questão de justiça relativa que deve ser tida em conta, mesmo nestes tempos de austeridade e “arrumação” das finanças públicas.
Uma greve não é à partida um acontecimento negativo. Haver greves que não são combatidas à paulada e à cacetada representa uma abertura cívica e um caminho para a democratização da sociedade. Enquanto mecanismo de construção de uma sociedade mais interessada e participativa, a greve é um activo positivo, sinal de evolução.
Contudo, é óbvio que esta greve coloca em destaque vários aspectos negativos. Há a questão evidente e já referida da injustiça relativa dos salários dos funcionários do Tribunal Supremo face aos dos seus colegas. Mas, mais do que tudo, esta greve reflecte um problema grave: a permanência do espírito colonial nas estruturas pós-coloniais.
Já várias vezes mencionámos que a transição do Estado centralista autoritário do colonialismo, essencialmente desenhado nos anos de força do fascismo europeu (1930-1940), embora com algumas cosméticas posteriores, para o Estado pós-colonial a seguir à independência não sofreu um corte estrutural relevante. Isto quer dizer que na sua essência apenas houve uma mudança de chapéu nas estruturas essenciais do Estado, permanecendo os aspectos despóticos e arbitrários centralizadores, bem como as relações de força — para usar uma expressão marxista — entre senhores e servos.
Se repararmos, Joel Leonardo, “o presidente do Tribunal Supremo, representa essa mentalidade de mimetismo pós-colonial. A sua concepção de dignificação do poder judicial foi obter o prédio da provedoria da justiça, arranjar apartamentos luxuosos e providenciar carros de luxo. Não cuidou dos seus funcionários, nem das necessidades básicas para o funcionamento dos tribunais em termos de equipamentos e de logística”.
Persiste uma mentalidade de açambarcamento e de apropriação material, em detrimento da construção sólida das instituições e dos seus modos de funcionamento.
Quem, mais do que ninguém, assegura o funcionamento regular de um tribunal se não os funcionários? Pois, para estes, Leonardo, que em tudo o resto se assume como uma espécie de vice-presidente da República para a Justiça, não teve contemplações nem cuidados, deixando-os a rastejar na míngua dos seus parcos salários. Para os funcionários não há carros de luxo nem apartamentos de príncipes. Apenas trabalho.
É esta dicotomia chefe/súbdito, senhor/servo, generosamente alimentada nos tempos coloniais, que a greve reflecte e que queremos combater.
A mensagem fundamental transmitida pelos grevistas é a necessidade de reformular as relações de trabalho institucional, abandonando a ideia do chefe que tudo tem e do empregado que nada tem e ainda se deve mostrar agradecido. Joel Leonardo, quando defende o poder judicial, deve perceber que não pode defender os privilégios dos seus colegas juízes, mas sim a eficácia de toda a máquina judicial, incluindo, naturalmente, os funcionários.
Sabemos que este é um tempo de austeridade e que existe uma ministra das Finanças que leva muito a sério os compromissos com as organizações internacionais e a solvabilidade financeira do Estado. Nessa medida, a política não pode ser apenas pedir e gastar mais. Isso todos sabem fazer. O importante é apostar no uso racional dos recursos escassos, quer isto dizer, obter a máxima eficiência das despesas.
Atentemos num detalhe. “Os funcionários judiciais do Tribunal Supremo queixam-se dos seus salários. No entanto, nos termos do Estatuto dos Magistrados, um juiz do Tribunal Supremo tem direito a uma viatura do Estado para apoio às necessidades de casa, dois motoristas, um cozinheiro, uma lavadeira e um empregado doméstico (artigo 34.º do Estatuto dos Magistrados). Cinco funcionários para serviço pessoal adstritos a cada juiz do Tribunal Supremo. Ninguém quer tirar o emprego as estas pessoas, mas talvez, com alguma formação, muitos deles pudessem tornar-se funcionários adstritos aos tribunais. O que não tem sentido é o Estado pagar cinco funcionários domésticos a cada juiz”.
A intelligentsia jurídica angolana aprecia muito as comparações com Portugal. Embora neste portal defendamos que deveria existir uma descolonização do direito angolano, que tarda, vejamos o que se pratica em Portugal relativamente às regalias dos seus juízes do Supremo Tribunal.
Vislumbramos a utilização gratuita de transportes colectivos públicos, terrestres e fluviais (artigo 17.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais), alguns suplementos salariais, subsídios de fixação (para quem assume funções fora da sua área de residência), despesas de representação (artigos 23.º a 26.º do Estatuto). Não existe direito a carro, e muito menos a cinco empregados.
Rodear um juiz de inúmeros funcionários pessoais é algo de feudal ou colonial, não reflecte a visão espartana do juiz que deve orientar a sua acção numa sociedade moderna. “O juiz deve ser, tanto quanto possível, um símbolo de reserva e dignidade, não um chefe que se passeia com inúmeros funcionários domésticos na sua peugada. Tudo visto, esta greve alerta-nos para a necessidade de dotar a máquina da justiça dos meios adequados para funcionar e não continuar a alimentar pomposidades esdrúxulas”.