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Angola: Guerra trouxe vícios e fez que o lema do MPLA «O mais importante é resolver os problemas do Povo» – fosse esquecido” – Luzia Inglês

Luzia Inglês “Inga” viveu quatro anos perdida nas matas da 1.ª Região depois de ter sobrevivido aos ataques da aviação portuguesa aos Dembos, vivenciou o rompimento entre Agostinho Neto e Daniel Chipenda, casou-se, ainda no maqui, com Afonso Van-Dúnem “Mbinda” e chegou a General.

“As nossas mentalidades não estão bem”

Em entrevista à ANGOP, no âmbito do dossier sobre o 11 de Novembro, a nacionalista fala da sua vida e da história da Independência de Angola, bem como aponta caminhos para a melhoria da condição social dos angolanos.

Durante a conversa, conduzida pela jornalista Stella Silveira, Luzia Inglês afirma que “o Estado tem de criar condições no interior, para que as pessoas possam sair de Luanda”.

Eis a íntegra da entrevista:

Senhora secretaria-geral da OMA, onde estava à meia-noite do dia 11 de Novembro, quando Agostinho Neto proclamou a independência de Angola?
À meia-noite do dia 11 de Novembro de 1975, eu estava na praça 1.º de Maio – na qualidade da militante que trabalhou muito próximo do Presidente Agostinho Neto – e, como o meu esposo era, na altura, o seu secretário particular, eu era, também, militar das telecomunicações e de confiança do camarada Neto. Estava sentada na tribuna, atrás da camarada Maria Eugénia e com todos os outros camaradas, para podermos viver e assistir ao acto de proclamação da independência. Tinha a minha filhinha de um ano ao colo.

Envolveu-se na luta de libertação com uma criança?
Na verdade, a criança é que nasce durante a luta de libertação, já no fim. Estava eu em Dar es Salaam, na Tanzânia, como chefe da Estação de Rádio e Telecomunicações, transferida da zona A de Kassamba, no Moxico. Quando o meu marido foi como secretário do Presidente Neto, então teve que se instalar em Dar es Salaam, apesar de o camarada Neto, que também tinha a família a viver na Tanzânia, circular por todas as regiões: ia à Frente Leste, que era a base de recepção de todos os meios de apoio à luta de libertação, ia à 2.ª Região, ia a Lusaka, na Zâmbia, e a todas as zonas das diferentes frentes.

Como é que Luzia Inglês foi parar à luta de libertação?
Na altura, eu era uma criança de 13 anos. Tinha-se dado o 4 de Fevereiro, em Luanda. Eu vivia com o meu pai, que era reverendo no Bengo e político, também estava a ser perseguido. Acabou preso, como resultado dos ataques de 15 de Março, em Nambuangongo (Bengo). Apesar de não ter acontecido nada na zona dos Dembos, as tropas portuguesas, como represália, decidem atacar os Dembos e, depois de nos termos refugiado por uma semana nas matas, o meu pai decidiu entregar-se para proteger a família.
No dia 23 de Março, a aviação bombardeou das 13 às 17 horas a sanzala e a missão. Mais tarde, soube o que tinha acontecido a 15 de Março em Nambuangongo: A população atacou as roças de café, armada de catanas, já que, nessa altura, não possuíam armamento, e dizimou os fazendeiros e todos os portugueses que tinham lojas. Foi um cenário muito triste, mataram indiscriminadamente, nalguns casos, dizimaram famílias inteiras, o marido, a mulher e os filhos. Quando se faz uma guerra, deve-se saber distinguir e matar apenas os militares armados.

Foi assim que começou a sua história como guerrilheira?
Não. A minha história de guerrilha não começa aqui. Depois de o meu pai ter sido levado e morto, ainda fiquei quatro anos a andar perdida nas matas da primeira região. Fui em Março de 1961 e só saí das matas em Julho de 1964. Fiquei com as minhas duas irmãs mais velhas, a Juliana e a Luísa Inglês. A Juliana morre num ataque, em 1963, os três filhos foram capturados e só os encontrámos em 1975, já em Luanda. Eles ficaram sentados ao lado do corpo da mãe, até serem encontrados.

Como foi o seu encontro com o MPLA?
Havia grupos clandestinos do MPLA que faziam a ligação entre a 1.ª Região e Leopoldville (no Congo Kinshasa), onde já se encontrava o MPLA. Depois de ter realizado a primeira reunião, em 1962, passou a mandar mensageiros para as matas, para recrutar militantes. É assim que recebemos os dois mensageiros da 1.ª Região: Miranda Marcelino e Morais de Castro, que pediram ao meu tio, Manuel Pereira Inglês, para irmos para Leopoldville. Eles organizavam grupos de guias para levar as famílias dos pastores. A minha família era de 11 pessoas e fomos das matas de Nambuangongo até à fronteira do Luvo, durante 45 dias.
No Luvo, trabalhámos como camponeses para fazer dinheiro e poder seguir para Leopoldville, mas os fazendeiros nunca nos pagavam em dinheiro, davam-nos apenas mandioca, até que um mensageiro veio à busca da nossa família, seguimos para Leopoldville e fomos encaminhados para o Bureau da UPA, ainda não era FNLA. Aí permanecemos três dias, fizeram-nos uma desparasitação e seguimos para a Delegação do MPLA, sob a responsabilidade do comandante Benedito, o camarada Inácio João Baptista, Massuka Kota, Manuel Quarta Punza, Graça Tavares, o camarada Lengue e tantos outros que lá encontrámos.

Qual foi a primeira tarefa como militante?
Como o MPLA já tinha transferido o seu bureau principal para Brazzaville, em Leopoldeville ficou apenas um clandestino e os serviços de assistência médica, onde funcionava o Dr. Vieira Lopes e outros médicos de cujos nomes não me lembro agora. Aqui conheci, também, o primeiro filho do camarada Iko Carreira, estava connosco nessa altura, e comecei a trabalhar com a OMA.

Quem eram as militantes da OMA nessa altura?
Quem organiza a OMA era um grupo de 20 mamãs bessanganas, que pretendiam realizar uma missa em memória aos heróis do 4 de Fevereiro, isto em Leopoldville, e assim é que a criaram em 61 e proclamaram a sua constituição a 10 de Janeiro de 1962. Entre elas, destacam-se Terezinha de Jesus, Mãezinha, Guilhermina Assis e outras. Eu comecei a frequentar essa casa. Ainda existe, é hoje uma galeria de bairro.

O que faziam realmente?
A nossa missão era sondar as autoridades que vinham contactar o MPLA. Portanto, levar e trazer informações. Ficámos durante três anos e depois, em 1967, seguíamos para Brazzaville.

Sabemos que é casada com Afonso Van-Dúnem “Mbinda”. Como aconteceu esse encontro?
Saímos de Brazzaville em 1968, precisamente em Abril, e chegámos à Tanzânia por altura da morte de Hoje-Ya-Henda, depois de ter organizado o combate a Karipande, no Moxico. Seguimos em três voos organizados pela União Soviética, que transportavam o esquadrão Bomboco, famílias e estudantes. Fomos recebidos pelo Presidente Julius Nyerere, que nos cedeu um quartel onde ficámos.
E respondendo à palavra de ordem do MPLA “todos para o interior”, que significava reforçar a guerra na 3.ª Região Militar, seguimos de Dar es Salaam para Mbeia, atravessando toda a Tanzânia até Kassamba e daí entrámos no Moxico. O objectivo era reforçar a guerra na 3.ª Região e abrir novas regiões, como a 4.ª e a 5.ª, para compor a Frente Leste.

Qual era a sua função?
Eu era uma simples estudante, que tinha perdido os dois professores: um foi morto e o outro asilou-se. Daí, nós, os estudantes, passámos a guerrilheiros. Depois da minha saída das matas da 1.ª Região, cheguei a Leopoldville com uma tuberculose e acabei internada num hospital missionário americano. Por isso é que, quando chego a Mandume III, no Moxico, depois de 15 dias de marcha, tive uma recaída e fui levada, numa viatura apoiada pelo comandante Monimambo, para Lusaka. Foi assim que conheci o camarada Afonso Van-Dúnem, em 1968. Ele era o representante do MPLA em Lusaka (Zâmbia).
Mas foi apenas no dia 14 de Abril de 1969, um ano depois da morte do comandante Hoji-Ya- Henda, que ele se declarou, mas só lhe dei o “sim” em Julho. Tinha ele 26 anos e eu 20. Namorámos durante três dias, e eu parti para a União Soviética, onde fiquei um ano e três meses. Voltei em Agosto de 1970 e, em Setembro do mesmo ano, casámo-nos. Estivemos casados durante 43 anos.

Quem celebrou o casamento?
Foi o camarada Lúcio Lara. O camarada Agostinho Neto foi o padrinho de casamento do camarada “Mbinda”. Na altura, disse que não queria mais saber de militares grávidas e que, portanto, todos os que tivessem um relacionamento deviam casar-se.

Como era conviver com Agostinho Neto na guerrilha?
Ele era uma pessoa simples, humilde, era muito humano, tinha amor ao próximo, mas, na qualidade de dirigente, tinha o rigor pela moral, pela transparência, exigência, responsabilidade às pessoas; era, realmente, exigente, mas era de fácil relacionamento.

Disse que seguiu para a União Soviética. O que foi fazer?
Fui fazer técnicas militares e telecomunicações. Em 1969, fui escolhida, num grupo de 25 camaradas, dos quais cinco meninas, para fazermos o curso de telecomunicações. Tínhamos perdido os professores, éramos jovens e precisávamos de estudar. Tinham parado as bolsas de estudo. Eu, na altura, já estava no Liceu, e precisávamos de aumentar os nossos conhecimentos.

Como foi ser esposa e guerrilheira?
Apesar de casados, a revolução obrigava-nos a cumprir, homens e mulheres, os nossos deveres de militantes. Cada um cumpria a sua missão. O nosso foi o primeiro casamento a que o camarada Neto assistiu na guerrilha.

Quantos anos conviveu próximo de Neto?
Eu conheci Agostinho Neto em 1968 e convivemos até que morreu (em 1979). Com o meu casamento, a aproximação foi maior, depois, em 1973, o camarada Mbinda é escolhido para ser secretário particular do camarada Neto e eu fui transferida para a zona A de Kassamba, para chefiar as Comunicações.

Que patente tinha na altura?
Éramos todos guerrilheiros, fora disso só tínhamos os comandantes. As patentes vieram na Angola independente. O posto de responsabilidade era de comandante, que eram os comandantes de esquadrão, secção e pelotão. Os meus comandantes das Comunicações eram os camaradas Bento Ribeiro “Cabulo”, Joaquim Rangel, depois o Sacha, que era responsável pelos meios técnicos de viaturas de telecomunicações e, também, Bagorro. Eu era operadora.

Que comunicação tem na memória que tenha influenciado o cenário de guerra?
O momento que me marcou foi em 1973, por altura da realização do Movimento de Reajustamento, em que toda a guerrilha parou. Fizemos uma conferência em Kassamba. Eu era chefe das Comunicações e recebia todas as informações que vinham da Tanzânia, de Brazzaville, de Lusaka, porque o posto de comando estava em Kassamba, dirigido pelo camarada Neto. Todos os membros do Comité Director do MPLA estavam ali. É nessa altura que se dá o rompimento entre Agostinho Neto e Daniel Chipenda.

O que esteve realmente na base desse desentendimento?
Infelizmente, os imperialistas têm sempre um papel de desestabilizadores e sabem usar a ganância de alguns. Foi o que aconteceu com Daniel Chipenda, que na altura já era a segunda figura do partido na Frente Leste, mas quis ter mais. Foi influenciado, quebrou e traiu. Acabou por fazer vários atentados à vida de Agostinho Neto. Em 1970, acabámos por perder um camarada, o Santiago, que caiu numa dessas emboscadas.

Como reagiu Agostinho Neto a essa traição?
Agostinho Neto era a ponderação. Muito raciocínio lógico, principalmente depois do Congresso falhado de 1974, em Lusaka, organizado pelo Presidente Kenneth Kaunda, que trouxe camaradas que já estavam há muito retidos na 1.ª Região, como o camarada Monstro Imortal, para este evento.
Também fui como delegada, mas, como na altura estava em Dar es Salaam e já tinha a bebé de seis meses, atrasei-me um pouco e, portanto, como todas as chefias já lá estavam, não fui autorizada a entrar. Nesse encontro, Neto decidiu-se pela realização da Conferência do Moxico, onde se proclamou o 1.º de Agosto.
Na altura, os comandantes da Frente Leste eram Felisberto Monimambo e Condesse de Carvalho “Toka”.
O Movimento de Reajustamento serviu para, depois de 11 anos de guerrilha, mandar vir os comandantes das zonas A, B, C, D, E, F, 4.ª Região, 5.ª Região e 6.ª Região. Esta última foi aberta pelo camarada Dino Matrosse. Vieram também os camaradas Saidy Mingas, Ndalu e Tetembwa, que chegaram em 1970, vindos de Cuba, já formados.
E, seguindo a orientação de Agostinho Neto, segundo a qual todos aqueles que terminassem os cursos superiores, com bolsas, não podiam vir para a guerrilha sem fazer uma preparação militar (…), foi assim que vieram reforçar a Frente Leste os camaradas Loy, José Eduardo dos Santos, E. de Carvalho e outros.
A Frente Leste (com seis regiões de guerra) compreendia o Moxico, as Lundas, o Kuando Kubango e o Bié, mas no Bié acabámos por recuar, porque era muito longe.
Depois deste encontro, Chipenda foi para o exílio. Foi o Movimento de Reajustamento que criou as condições para a realização do falhado Congresso e, também, para o encontro de Brazzaville, que tinha, na altura, a Revolta Activa.

Quando é que se tomou a decisão de seguir para Luanda?
Na altura, eu trabalhava em Kassamba e soube que o camarada “Mbinda” disse ao Presidente: “Camarada Neto, se eu for para Dar es Saalam, a minha esposa tem de vir para o meu lado. Ainda não estivemos juntos desde que nos casámos, precisamos de constituir família”. E, então, fui para Dar es Salaam, em 1973, como chefe de Estação de Rádio.
Depois de a Delegação do MPLA, chefiada por Agostinho Neto, se ter reunido em Lunyameje, nas Chanas do Leste, com o exército português, em Outubro, para a assinatura do cessar-fogo, isto depois do 25 de Abril, havia a necessidade de se organizar a independência. Os próprios portugueses estavam saturados da guerra colonial, os seus filhos morriam na guerra. Pulámos de alegria quando recebemos a notícia do Golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, ocorrido em Portugal.
Em Janeiro de 1974, organiza-se a ida a Alvor, onde Agostinho Neto, Jonas Savimbi e Holden Roberto se reúnem e assinam o acordo, para a independência de Angola.
Recebo, então, em Dar es Salaam, uma mensagem do camarada Petroff, que era representante do MPLA na Zâmbia, a dizer que tinha de me deslocar a Lusaka, porque a delegação que foi aos acordos de Alvor já não voltava para Dar es Salaam.
Em Lusaka, encontrámos o camarada Neto e a delegação que o acompanhará a Alvor e seguimos todos: a minha família, a camarada Maria Eugénia e filhos, o camarada Ngongo e a sua família e outros comandantes para o Dundo e de lá para o Aeroporto de Luanda, isto no dia 4 de Fevereiro de 1974.
Assim que o avião aterrou no aeroporto Craveiro Lopes, o povo invadiu a pista. Levámos três horas para deixar o avião. O povo cercou-o, tiveram de encostar tanques de guerra à parte de traz do avião para levar o Presidente Neto. Finalmente, alguém se lembrou de encostar alguns autocarros e conseguimos sair para a sala de embarque, que também estava completamente lotada. A partir daí, foram-nos distribuindo por diferentes zonas da cidade.
Já em Luanda, sentíamo-nos desempregados, não estávamos habituados com a rotina da cidade e estávamos a ficar frustrados. Foi assim que, em Abril, o MPLA consegue mobilizar todos os antigos operadores de comunicações para reorganizar as telecomunicações. Tínhamos uma casa na Vila Alice, onde montámos as comunicações. Todos os dias, eu ia trabalhar com a minha filha às costas. Mesmo debaixo de tiroteio, mudávamos sempre de caminho.
Em Outubro, a tropa colonial começou a entregar tudo. As comunicações da Marinha Portuguesa funcionavam onde hoje está a UGP, no Morro Bento. Começámos a trabalhar com eles para aprender a trabalhar com o equipamento.
A maior parte das operadoras de comunicações do MPLA eram mulheres. Íamos com os nossos filhos: eu e a Bela, mulher do camarada Quito. Os marinheiros portugueses não queriam acreditar que aquela turma de jovens mulheres, com crianças às costas, sabiam operar o seu equipamento militar. Não havia mulheres no exército português.

Como funcionaram as comunicações por altura da independência?
Recebia mensagens de todo o lado, mas, poucos dias antes da independência, recebi uma mensagem codificada que dizia: “O camarada Gika foi alvejado, tombou em combate”. Foi alvejado pela tropa colonial. Foi uma das comunicações duras que recebi e tive que transmitir directamente ao camarada Neto. Foi um dia horrível.

Que outros papéis desempenhou antes de chegar ao cargo de secretária-geral da OMA?
Em Luanda, continuei nos serviços de telecomunicações, fiquei nas comunicações da Presidência da República, de 76 a 80. Em 1979, o Presidente Neto morre, aguento-me mais um ano e depois saio.
Entretanto, houve uma estratégia de criação de um Centro de Comunicação para o Comandante-em-Chefe. Depois da morte do Presidente, já em Janeiro, fui chamada para chefiar esse Centro de Comunicações Fixas, no Futungo, na actual Escola 28 de Agosto.
Enquanto na Presidência havia um simples fax com apenas três funcionários, nesta unidade militar já trabalhavam 200 pessoas, com equipamentos sofisticados, que estabeleciam comunicações entre as 18 províncias. Recebíamos mensagens internacionais para o Comandante-em-Chefe, na qualidade de Presidente da República e do MPLA. Na altura, tínhamos um Conselho da Revolução, que mais tarde se transformou em Assembleia do Povo.

Como foi liderar a OMA nos últimos anos?
Foi uma novidade. Era uma função ligeiramente diferente das que estava habituada a exercer. Fui militar e, independentemente disso, exerci funções políticas e, em 85, ingressei no Comité Central e na Assembleia do Povo. Estava habituada a dirigir homens, tanto é que, às vezes, as camaradas me perguntam: “A chefe hoje veio à civil ou como militar?” Mas, como política, fui aprendendo de tudo um pouco.
Nos primeiros dois anos, inteirei-me do funcionamento da organização e, com o apoio do Comité Nacional, fui-me enquadrando na organização. Eu já dominava a história da OMA.

Passados 45 anos da proclamação da independência, Angola ainda tem, infelizmente, muita gente a viver na pobreza. Sente que se quebrou o ideal pelo qual lutou?
Sim, houve alguma quebra, sobretudo nos últimos 10 anos. O tempo que o país levou de guerra trouxe vícios que se transformaram em regras e fez que o lema do MPLA – “O mais importante é resolver os problemas do Povo” – fosse esquecido. O pensamento era: “enquanto eu estiver ali, primeiro eu, segundo eu … tenho que resolver o meu problema”.
Mas não foi por isso que me bati, que dediquei toda a minha vida. O objectivo era de ver uma Angola independente, e como donos da nossa Pátria, que tudo o que fosse feito fosse em prol do desenvolvimento harmonioso e do bem-estar de todos, das qualidades do ser humano, para aumentar as infra-estruturas e investir para acabar com as desigualdades entre as cidades, províncias, capital e comuna.

Se pudesse voltar no tempo, faria tudo outra vez?
Não gostaria de voltar no tempo, porque foi muito sacrifício. Valeu tudo a pena, porque houve grandes mudanças, houve melhorias. Quando ficámos independentes, as nossas cidades não eram o que são hoje; não tínhamos o número de quadros superiores que temos, os quadros superiores começaram a ser tratados com o envio de bolseiros para termos quadros que pudessem dirigir o país. Depois da Angola independente, oferecemos um ensino de qualidade a todos os níveis, mas o grande dilema que temos são as vias de comunicação (..) daquilo que se produziu e se reteve ao longo deste tempo, dava para, gradualmente, irmos fazendo melhorias, sobretudo nas áreas rurais. Nas minhas visitas ao interior, constatei que as nossas aldeias continuam com a mesma imagem que tinham nos anos 50. Falhou muito. Basta o dirigente não investir o que recebeu em prol da melhoria da função que lhe foi dada, já falhou. E virou um vício, um vício que virou moda e da moda passou a lei. Precisamos de dirigentes humanistas, que pensam na sua equipa.

Como se sente a única general de Angola?
Pelas responsabilidades que fui assumindo ao longo de toda a vida, acabou sendo assim. Fomos três mulheres capitãs, depois fui a primeira major, a primeira coronel, a primeira brigadeiro, enfim.

Ser a única general faz de si um homem?
Nem pensar. Eu recebi esta patente já na reforma, não funcionei com esta patente. Na altura em que fui como embaixatriz nas Nações Unidas, deram-me a patente de brigadeiro na reserva e, quando saí da reserva para a reforma, deram-me a patente de general.

Que mensagem deixa à Nação?
Vivemos um momento muito difícil, principalmente devido à Covid-19, mas não percamos a fé, devemos melhorar as nossas actuações, devemos ter mais civismos. Temos de nos respeitar uns aos outros.
Em relação à pobreza, há muito esforço de melhoria da situação, mas sabemos, também, que não é uma situação exclusiva de Angola. Temos um país extenso e somos poucos, mas queremos todos viver nas cidades. Porquê que toda a gente só quer viver na capital? Agora já não é na capital da província ou do município, é mesmo na capital do país, mas não temos condições para acolher todos em Luanda. Vamos ficar todos pobres.
O Estado tem de criar condições no interior, para que as pessoas possam sair de Luanda.
Água, Angola tem. Vamos criar energia eléctrica, vamos construir fábricas, vamos produzir… A agricultura será o futuro do mundo para fazer as transformações, para o consumo interno e para a exportação. Temos condições, mas as nossas mentalidades é que não estão bem.

Perfil

Luzia Pereira de Sousa Inglês Van-Dúnem é natural de Luanda, órfã desde os 13 anos de idade. Depois de o exército colonial português ter morto os seus pais, foi forçada a fugir da zona dos Dembos, onde vivia. Encontrou família no MPLA e foi como guerrilheira que conheceu o “amor da sua vida”, Afonso Van-Dúnem “Mbinda”, com quem esteve casada durante 43 anos, até à morte deste.

É mãe de quatro e avó de nove. Todos a chamam “Inga”, nome de guerra que lhe foi atribuído pelos instrutores soviéticos, enquanto frequentava o curso de Telecomunicações. “É um nome bastante comum nos países baixos”, responde quando lhe perguntam pela origem, “mas é também parte do meu sobrenome”.

A única general do exército angolano teve Lúcio Lara como conservador do seu casamento e ainda chora ao recordar os cenários de guerra, a morte de “Gika” e o facto de ainda existir desigualdades e pobreza em Angola.

Com a vida, diz ter aprendido a capinar, a construir casas de capim, de bloco, de barro, de cimento; a nivelar com prumos; olaria, fazendo sangas; cestaria; conduzir um camião e fazer pequenos concertos eléctricos, se alguma coisa avaria em casa. Gosta de aprender, considera ter feito uma faculdade através da experiência de vida que carrega, apesar de ter a 12.ª classe. E é na família que encontra o seu porto seguro.

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