Jornalista Rafael Marques revela meandros de um suposto esquema que terá resultado num prejuízo de 30 milhões de dólares para o Estado angolano, com participação de políticos são-tomenses e da China International Fund.
O portal Maka Angola revela que a China-Sonangol Investment – uma companhia ligada à empresa privada China International Fund (CIF) e à petrolífera estatal angolana Sonangol – terá transferido a partir da Indonésia, em 2015, dez milhões de dólares para uma conta da República de São Tomé e Príncipe num banco português. Esse valor faria parte de um acordo de crédito, no total de 30 milhões de dólares, entre a CIF e o Governo são-tomense.
Os restantes 20 milhões de dólares “desapareceram”, escreve o Maka Angola, e agora São Tomé não saberá como solicitá-los, nem a quem pagar a dívida dos dez milhões de dólares.
A China International Fund esteve envolvida em diversos projetos de reconstrução em Angola, entre eles a reabilitação das três principais linhas férreas do país. Em 2020, teve mais de mil imóveis apreendidos no âmbito da recuperação de ativos pelo Estado angolano. No ano passado, viu ser rescindido o contrato para a construção do novo aeroporto de Luanda.
Em entrevista à DW África, o jornalista Rafael Marques, diretor do site Maka Angola, fala sobre o caso de São Tomé e Príncipe e defende reformas profundas no sistema judicial e na administração pública de Angola.
DW África: O que aconteceu a estes 20 milhões de dólares que supostamente deveriam ter chegado a São Tomé e Príncipe?
Rafael Marques (RM): Certamente, só a direção da Sonangol e o antigo primeiro-ministro [são-tomense] Patrice Trovoada poderão responder. Compreende-se que houve aqui um esquema qualquer para o descaminho dos 20 milhões de dólares, que até agora ninguém consegue explicar. Nem o Governo de São Tomé consegue registar os 10 milhões que recebeu do pacote de 30 [milhões de dólares] como dívida, porque não tem credor, pois quem se assumir como credor deverá explicar o que aconteceu aos 20 milhões de dólares que deveriam ter entrado para a conta do Tesouro são-tomense.
Isso traz graves problemas para a contabilidade de São Tomé, porque este valor total representaria 7,5% do PIB são-tomense.
DW África: Será mais um caso de possível corrupção e desvio de fundos com partilha de benefícios entre a elite destes dois países?
RM: Tudo aponta para isso. Até porque, inicialmente, o ex-primeiro-ministro Patrice Trovoada [ausente de São Tomé e Príncipe desde 2018] e o então ministro das Finanças, Américo Ramos, tinham sido indiciados. O então ministro das Finanças passou três meses em prisão preventiva porque contraíram esse crédito sem informar a Assembleia Nacional, sem o visto do Tribunal de Contas e com o artifício de que o Conselho de Ministros teria aprovado a mutuação deste crédito. Mas não é verdade a mutuação dos 30 milhões de dólares.
Também houve a oferta [ao Estado são-tomense, em 2016] de alguns catamarãs, feita em nome do então primeiro-ministro Patrice Trovoada e, quando se verificam os documentos, vê-se claramente que são bens pagos pela China-Sonangol.
DW África: Portanto, de oferta não teria nada.
RM: De oferta não tem nada. Agora, porque é que o primeiro-ministro apareceria no seu país a dizer que está a fazer doações? Uma das razões pode ser porque um dos catamarãs foi, depois, colocado a serviço de uma empresa que foi ligada a ele, a fazer cabotagem entre as cidades de Libreville e Port-Gentil, no Gabão, onde o sr. Trovoada nasceu e cresceu.
DW África: A China International Fund assumiu a concessão para a construção de várias infaestruturas em Angola, que acabaram por não ser realizadas. Uma delas é o novo Aeroporto Internacional de Luanda, que está agora a cargo dos chineses da AVIC. Para onde terá ido todo esse dinheiro que a CIF recebeu?
RM: Certamente, houve pilhagem do dinheiro, e é isso que temos que descobrir.
DW África: Quem deveria interceder no sentido de parar este aparente desvio de fundos públicos em Angola?
RM: Precisamos de fazer reformas profundas ao nível do sistema judicial e dotá-lo de recursos humanos capazes – sobretudo ao nível do Tribunal Supremo – que estejam empenhados em fazer Justiça e não em enriquecer.
Metade dos funcionários do Tribunal Supremo são funcionários domésticos dos juízes. Então, temos aqui questões estruturais que temos de desmontar.
HÁ a perceção de que a corrupção será estancada com mais denúncias. Não é verdade. Se o sistema judicial não funciona, não temos um Estado de Direito.
DW África: Acha que o MPLA, o Governo atual em Luanda, está disposto a introduzir essa reforma no sistema judicial ou será necessária uma mudança política?
RM: Não éuma questão de dependência do MPLA. Temos todos de discutir, enquanto cidadãos, como operacionalizar as reformas de Estado que se impõem – quer ao nível da administração pública, quer ao nível da Justiça – porque o país não é do MPLA. O país é de todos os angolanos, e todos os angolanos devem estar engajados nessa reflexão.
Estamos a chegar, por exemplo, ao período das eleições. E neste momento, não se veem grupos de pressão a organizar agendas para pressionar os partidos concorrentes a adotarem as suas ideias ou a ter uma posição clara sobre as suas ideias. Ficamos apenas na discussão se devemos votar no partido A ou no partido B.