Ao abrigo da CRA (Artigo 127.º Responsabilidade Criminal), o Vice-Presidente da República (tal como o Presidente) “não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia”.
E mesmo quando se põe o recurso ao “(re)salvo institucional”, ainda há um longo percurso e muitas curvas apertadas pelo meio e pela frente.
Por outro lado, a CRA refere que, pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Vice-Presidente da República (tal como o Presidente) só responde “perante o Tribunal Supremo cinco anos depois de terminado o seu mandato”. Ou seja, na prática, a ocorrer mesmo uma “resposta ao Tribunal Supremo”, será um processo que poderá estender-se durante um eventual segundo mandado de gestão do Presidente João Lourenço, que tem o mérito de ter iniciado o combate à corrupção que levou o País à falência, ou de outro presidente, se não for ele o eleito que também não sabemos se prosseguirá e concluirá, porque esse é outro processo longo e complexo.
Mas, entre “responder perante o Tribunal Supremo” para lá de 2022, consumar-se a sua culpabilidade para que seja responsabilizado e a efectivação de eventual pena condenatória, também há outro longo percurso, tendo em conta a complexidade dos crimes de que Manuel Vicente vem sendo acusado, o emaranhado de negócios e o número de envolvidos dentro e fora do País. E em Angola nem sempre um mais um é igual a dois, porque por conveniência e influência do Sistema Político, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Exemplos de que ao abrigo da Constituição e de demais leis não somos iguais, há por aí inúmeros.
Portanto, depois da ‘entrada’ sem tempero que nos foi servida segunda-feira (23) no “banquete” oferecido pela TPA, em que apesar de não ser novidade, o poder veio pública e oficialmente, pela primeira vez, fazer referência directa à práticas criminosas cometidas por essa figura que goza das imunidades referidas no Artigo 127.º da CRA e que ao contrário das inerentes ao exercício do cargo de deputado não podem ser suspensas ou levantadas, quaisquer responsabilização criminal de Manuel Vicente, está mesmo adiada para lá de 2022. É a CRA quem estabelece que só estará disponível cinco anos após terminar o seu mandato como Vice-Presidente e esse período de graça só termina, propriamente, com a reeleição de JLO ou a eleição de outro Presidente.
Essa “condicionante constitucional” deixa claro que há necessidade objectiva de se proceder à revisão da CRA porque, nalguns aspectos, está desajustada e, como é o caso, até protege quem, como a própria Lei estabelece, está “protegido” por limites como o “SALVO CONDUTO” em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição “como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia”, mesmo quando os actos foram “praticados no exercício das suas funções”. Isso possupõe, no quadro actual, a existência de contradição ou de cobertura diante da existência de matéria probatória. É a própria Lei quem define quando e o que constitui crime, condiciona, impede, amordaça a liberdade do exercício da Justiça no Estado Democrático e de Direito.
Ora, diante de todos esses dados, não é difícil concluir que se Manuel Vicente tem tratamento diferenciado do resto “da camarilha que nos acompanha (sic!)”, responsável pelos vários actos lesivos aos interesses do Estado angolano, com enquadramento na tipificação de crimes de “traição à Pátria”, por “imposição constitucional”, então esse combate à corrupção é mesmo selectivo. Quem, supostamente, beneficiou da maior fatia no saque ao quintal da mãe Joana (a Sonangol) tem tratamento VIP. E era o que faltava.
Como se vê, até no combate à corrupção, há pais, filhos e enteados. Oxalá chegados lá para o final 2021, a Nação não seja surpreendida com mais uma “jogada de mestre” convertida em amnistia. Mas, preparemo-nos sentados, porque em política “não há portas fechadas” e as boas decisões tomadas hoje, podem não ser tão boas amanhã, por não reflectirem interesses e estratégias conjugadas e, principalmente, quando a manutenção do poder corre o risco de conhecer um revês, por manifesto desinteresse da maioria de todos nós, como consequência de um longo ciclo de má-gestão que produziu figuras como Manuel Vicente, podre de rico e em liberdade no maior conforto e o Zé Povinho a pagar a factura.
Já vimos esse filme no final do mandato que teve José Eduardo dos Santos como realizador. O seu sucessor foi quem não respeitou o acordo. E ainda bem para a Nação. Foi por pouco, porque só baixamos as calças. O golpe foi duro, mas podemos recuperar.
Ramiro Aleixo