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Angola: O dia do acordo que viabilizou as primeiras “eleições gerais”, mas não evitou uma guerra sangrenta – Santos Vilola

Quando José Eduardo dos Santos e Jonas Malheiro Savimbi, faz hoje 30 anos, apertavam as mãos no Palácio das Necessidades, em Lisboa (Portugal), para selar um acordo de paz para pôr fim aos 16 anos de guerra civil em Angola, a esperança era encerrar em definitivo um capítulo de um conflito sangrento que, até então, tinha feito cerca de 300 mil mortos, 500 mil refugiados e deslocados e 100 mil mutilados estropiados.

O balanço feito pelo Governo na véspera da assinatura dos Acordos de Bicesse apontava ainda para milhares de quilómetros de estradas e vias férreas destruídas, vilas e aldeias inteiras arrasadas e abandonadas, dezenas de barragens hidroeléctricas demolidas, entre outras infra-estruturas.

Em números, somada às agressões sul-africanas ao Sul de Angola, o preço da guerra, calculado por infra-estruturas destruídas, era de 25 mil milhões de dólares, segundo o balanço do Governo.

Mas era no Palácio das Necessidades, em Lisboa, onde estava depositada a esperança dos angolanos em colocar uma pedra sobre um passado sombrio da história do país.
O Governo assegurava o desenvolvimento de esforços a fim de obter a nível internacional a ajuda financeira e o auxílio material necessários para a criação de condições para a reintegração social de milhares de mutilados e desmobilizados das forças armadas.

“A guerra foi cara em vidas, sacrifícios, orfandade e insegurança. É uma paz que tem de merecer a nossa atenção para que não venha alguma vez a perder-se”, dizia o Governo, em comunicado.

Quando José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi desembarcaram em momentos diferentes, em Lisboa, em 30 de Maio de 1991, para assinar o acordo no dia seguinte, já um longo trabalho prévio tinha sido preparado por uma equipa de ambas as partes (Governo legal e UNITA rebelde).

Foram 12 meses de negociações divididas em sete rondas negociais. O primeiro contacto directo foi em Évora (Portugal), em Abril de 1990.

Depois de desembarcar no aeroporto da Portela, onde foi recebido pelo então Primeiro-Ministro português Cavaco Silva, José Eduardo dos Santos estava convicto de que os acordos cessar-fogo seriam integralmente cumpridos, segundo relatos da imprensa destacada para a cobertura do evento.

Alojado no Forte Velho de Santo Amador, em Oeiras, o Presidente da República encetou uma agenda diplomática que se resumiu em encontros com o então secretário-geral das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuéllar, e com James Baker, secretário de Estado norte-americano (1989-1992). Até chegar àquele dia como hoje, em Lisboa, para assinar os acordos, os receios de ambas as partes estavam centrados num passado recente que remetias os beligerantes à mediação do então Zaire (República Democrática do Congo) de Mobutu Sesse Seko.

Foi em Gbadilite, localidade predilecta do marechal congolês, onde José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi já tinham apertado as mãos, em 22 de Junho de 1990, depois da assinatura de um acordo de paz sob os auspícios do anfitrião. Tinham passado dias apenas até o acordo ser violado.

De “Problema interno angolano”, como era caracterizada a guerra civil, passou a “Conflito interno angolano”, obrigando a intervenção das Nações Unidas e dos Estados Unidos para a pacificação do país.

Ainda em Abril daquele ano, num encontro em Évora, é descoberto o primeiro caminho para a paz desejada em Angola, já com a mediação portuguesa, que durou um ano e uma semana até à assinatura dos Acordos de Bicesse.

19h: A hora decisiva
19h locais, em Portugal, as mesmas em Angola no limiar do Verão. Eram horas únicas escolhidas para que, com uma simples aposição de assinaturas, o espectro da guerra se afastasse de vez do país.
Os caminhos da paz desenhavam-se visíveis, até pela constituição de um exército único e nacional enquanto garante da soberania e integridade territorial do país.

Promovido por Durão Barroso, então secretário de Estado para os Assuntos Externos e Cooperação de Portugal, a cerimónia de assinatura dos acordos foi mediada pelo Primeiro-Ministro Cavaco Silva, ao centro, enquanto José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi subscreviam as páginas dos documentos que estipulavam que seriam realizadas eleições livres e democráticas em Angola, supervisionadas pelas Nações Unidas.
James Baker e o então presidente em exercício da Organização de Unidade Africana (predecessora da União Africana), Yoweri Museveni, testemunharam o acto solene.

Os acordos estipulavam ainda que todas as forças beligerantes seriam integradas nas Forças Armadas Angolanas, cabendo ao mediador português, através das suas próprias forças armadas, ministrar a formação necessária.
Os acordos permitiriam um armistício temporário entre o Governo e a UNITA na guerra civil no país. O Governo rejubilava-se com o feito, assinalando que “a paz conseguida, dolorosamente alcançada à custa de sacrifícios sem conta, é uma vitória de todo o nosso povo que, durante anos, soube conquistar e preservar a sua liberdade e independência da nação.”

As manifestações de vontades divergentes, mas conciliáveis para encontrar um entendimento em Bicesse valeu apenas para a unificação dos exércitos (FAPLA e FALA) e a realização das primeiras eleições gerais no país. A divulgação dos resultados, que consagravam o MPLA, vencedor das eleições legislativas, e José Eduardo dos Santos, Presidente da República eleito à primeira volta (sem a realização da segunda por conta da desistência de Jonas Savimbi), mergulhou o país numa guerra sangrenta jamais vista, que só terminou em 2002, com a morte em combate do fundador e líder da UNITA, numa das margens do rio Lungue-Bungo (Moxico), no dia 22 de Fevereiro do mesmo ano.

Os acordos, lembrados hoje, colocaram o nome de uma povoação situada na freguesia de Alcabiche, conselho de Cascais, perto do Instituto Superior de Hotelaria e Turismo de Estoril, onde decorreram as negociações, na memória colectiva dos angolanos.

Nem a tocha da paz sobreviveu…

Era aguardado em Luanda, logo depois da assinatura dos Acordos de Bicesse, para acender a chama da paz, uma tocha instalada nas imediações do então Largo 1º de Maio que, no mesmo dia, passou a designar-se Largo da Independência. José Eduardo dos Santos desembarcou no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro e rumou logo para o Largo da Independência para proferir um discurso à nação e acender a chama da paz. Em carro descapotável, em companhia de duas crianças a bordo trajadas de branco, José Eduardo dos Santos chegava ao local onde milhares de pessoas o aguardavam para manifestar regozijo pela assinatura dos Acordos de Bicesse.

No início da noite, no local, o Presidente da República assinalava, no seu discurso, que o Governo e a UNITA tinham responsabilidades de calar definitivamente as armas, e que contava com a sociedade civil organizada para apaziguar os ânimos ainda exaltados pelas consequências da guerra.

No advento do nascimento da nova sociedade multi-partidária que se avizinhava o debate e a luta polí-ica se iria sobrepor à linguagem das armas. O país, no seu percurso até às primeiras eleições gerais, em 28 e 29 Setembro de 1992, precisava cultivar a tolerância, “aprendendo a respeitar as ideias dos outros e a dignidade e distinguir mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa.”
Com o reacender da guerra civil, a chama da paz apagou-se e a estrutra metálica de cor branca que suportava a tocha foi removida  do local.

A história que ninguém quer contar
Muitas vezes, o bode expiatório encontrado pelos “mais velhos” para justificar o desconhecimento, total ou parcial, da nossa história são, injustamente, os jovens. Por não investigarem, não lerem, não ouvirem os “mais velhos”…
Dizemos afirmativamente que, quase sempre, não é isso. Há uma geração de protagonistas principais da nossa história recente que terá feito “votos de silêncio perpétuo”. “Não direi nada, nunca fiz nada nem que…” escreveu o poeta Agostinho Neto, embora não fosse esse o sentido.

Quando nos propusemos a recuar 30 anos na história da busca pela paz em Angola, elenquei uma série de protagonistas que abordei para enriquecer o texto.
Tudo muito bem acertado, questões para abordagem trocadas em conversa, estava ainda o mês a meio. Os políticos Eugénio Manuvakola e Lukamba Paulo Gato, da UNITA, e Pitra Neto, do MPLA, todos contactados por terem sido partcipes em processos de negociação para a paz em Angola. “Ok. Está bem!”, “Respondo já, dê-me uns dias”. Até o dia nunca chegar.

E quando a matéria chega às mãos de consumidores mais atentos há sempre aquela estupefacção: “Mas alguns destes protagonistas ainda estão aí. Por que não foram ouvidos?” Pois, estão, mas não querem falar.
Gostaríamos muito de saber quem um dia vai contar a história desse país com estes “votos de silêncio perpétuo”. E muitos, é o caso dos Acordos de Bicesse, por triste ironia do destino, já morreram. Sobraram apenas três que não aceitam ou não têm tempo para falar.
Assim, vamos nós!

Um articulador discreto

Foi António Pitra Neto que, desde os contactos negociais secretos, chefiou sempre a delegação do Governo nas tentativas de aproximação com o braço armado da UNITA.
Assessor do então Presidente da República, Pitra Neto explicava à imprensa, nas vésperas da cerimónia, que a assinatura dos Acordos de Bicesse foi o corolário de aproximação que durou cerca de três anos.

Citado pelo Jornal de Angola, a partir de Lisboa, o então docente universitário esboçava que foi um processo com várias etapas e que teve no que chamou de “esquema africano” o seu início. O articulador do Governo reconhecia que “o processo conheceu altos e baixos, mas que, ao avançar pelo caminho dos contactos directos entre as partes beligerantes entrou numa fase que tornava difícil recuos.

Pitra Neto reconheceu que houve uma aproximação gradual e não se pode deixar de referir a utilidade das fases anteriores. “Elas garantiram, no fim, o sucesso dos contactos directos”, acentuou na entrevista à imprensa angolana destacada em Lisboa.
Para o então assessor presidencial, havia um “encadeamento lógico” de factores no longo processo que durou três anos que não podiam nem deviam ser descurados.

“Tozé” Amorim

“Não vi satisfação nos rostos dos signatários dos acordos”

José Amorim “Tozé” foi o cinegrafista (camara man) destacado pela Televisão Pública de Angola (TPA) para registar o momento para o país.
Estava integrado num grupo de profissionais da televisão estatal composto por Alexandre Gourgel, José Neto Alves Fernandes, José Maria Fernandes e António Kissanga.
Tinha 34 anos, 14 dos quais ao serviço da televisão estatal. “Tozé” revelou que, entre a euforia e a expectativa, pairava no ar um clima de incerteza sobre a presença de Jonas Savimbi no acto.

“Como a maioria dos angolanos, vivi aquele momento com grande expectativa de que a paz tinha finalmente chegado a Angola”, afirmou, acrescentando que, como “camara man”, era um momento de orgulho pessoal testemunhar um acto de tamanha dimensão.
Na descrição sobre os momentos que registou com olhos sobre a objectiva, “Tozé” Amorim afirmou que “não vi satisfação em José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi, e o aperto de mão entre os dois me pareceu forçado e incentivado pelo mediador Cavaco Silva.”

Reformado aos seus 56 anos, depois de uma passagem pela RTP num convénio com a TPA, “Tozé” Amorim esteve em todas conversações e assinatura de acordos de paz, desde Londres, Brazaville, Havana, Cidade do Cabo, Joanesburgo, Cairo, Lusaka, Namíbia, Namibe e Moxico. As negociações de Bicesse não tiveram cobertura, apenas a cerimónia de assinatura dos acordos. Amorim lembrou que haviam muitos angolanos idos de Luanda, entre os quais músicos, para a festa da paz.

 

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