Pelo menos 16 mil reclamações, na sua maioria relacionadas com serviços bancários, deram entrada na Federação Angolana de Associações dos Consumidores (FAAC), em Luanda no ano passado. O seu responsável considera que se poderia fazer mais, se fosse entidade de utilidade pública como acontece em outros países que falam português. Domingos da Conceição reclama também da falta de diálogo com o Governo, acusando-o de estar a contribuir para a ‘morte’ das associações que trabalham na defesa do consumidor.
O trabalho da federação não é visível. O que se passa de concreto?
Esta é uma plataforma com 25 anos de existência que congrega oito associações das 10 existentes em Angola. A federação é membro fundador da Consumare, uma entidade internacional de defesa do consumidor com sede em Lisboa e ocupa a vice-presidência deste órgão.
O que representa a adesão a esta entidade?
O mercado é multissectorial e a FAAC, sendo membro da Consumare, tem apoio técnico desta. Ela tem feito um conjunto de acções de formação para que os membros tenham bagagem suficiente para a defesa dos consumidores. Nesta altura, por causa da pandemia, temos realizado vídeo conferências semanais. De momento, a presidência da Consumare está com o Brasil e Angola também pode vir a abraçar o cargo de forma rotativa. No passado, íamos regularmente a Portugal, mas abraçamos o ciclo de vídeo-conferências que termina em Setembro.
Mas voltemos ao princípio. A acção da Federação não é notada…
A nível da federação, realizamos cinco a 10 mediações de conflitos por semana. O que se passa é que não fizemos publicidade porque não temos recursos quer humanos, quer materiais. Entendemos que hoje devíamos ser uma entidade de utilidade pública como ocorre em outros países da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa.
E porque isso não acontece?
A defesa do consumidor é uma área muito sensível a que o Estado devia abraçar, porque somos parceiros estratégicos. Logo há toda a necessidade de sermos potenciados para podermos dar resposta rápida aos interesses dos consumidores. E sairíamos todos a ganhar, porque somos um ente privado que desenvolve uma actividade pública. Por isso é que precisamos de dinheiro para o escritório funcionar. Se, por exemplo, tivermos aqui 50 juristas especializados em matéria de consumo, não havendo esse apoio do Governo, estendemos a mão à caridade, ou seja, vivemos de doações de pessoas que apostam no nosso trabalho. Temos encargos com água, energia eléctrica, material gastável e trabalhadores que recebem salários. Por isso é que precisamos desse apoio sob pena de fecharmos o escritório, a exemplo de outras associações que já desapareceram.
Como olha para o surgimento da Agência Nacional de Inspecção e Segurança Alimentar (Aniesa)?
É mais um órgão que veio reforçar a fiscalização e defesa do consumidor. Mas entendo que as políticas públicas deveriam ser de inclusão.
Não são?
Do ponto de vista da inclusão, não há necessidade de o Governo gastar tanto dinheiro com recursos humanos. Na sua acção, os órgãos de fiscalização do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Inadec), por exemplo, deviam incluir os entes particulares, porque todos juntos somos poucos na defesa dos interesses dos consumidores. O Governo não deve empobrecer as associações que estão aí para auxiliar na implementação de políticas. Também não precisa de ter tantas direcções municipais e não há Governo nenhum que aguente tamanha estrutura de custos, porque isso envolve escritórios, viaturas, quando há entidades privadas com o mesmo fim que podem fazer valer os direitos. A entidade pública viria no fim.
Mas já solicitaram ao Governo a passagem para entidade de utilidade pública. O que falta?
O aspecto jurídico foi cumprido há vários anos, mas até hoje a federação nunca foi tida nem achada, quando o próprio Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos reconhece a nossa existência.
Os preços dos produtos essenciais sobem no mercado e o consumidor vê-se cada vez mais ‘asfixiado’, porque os salários perderam poder por conta da inflação. Qual é o seu comentário?
Devíamos ser chamados quando se tomam medidas na vertente do consumidor. É preciso ajustar o salário diante dessa galopante inflação, para minimizar o caos.
Não há diálogo com o Governo, é isso?
Agora estamos piores. Se no passado havia encontros mais ou menos regulares, agora é cada um por si. E há uma desvantagem, porque nós não recebemos dinheiro do Estado, mas exercemos um trabalho público. O que se verifica é que, à medida que o tempo passa, vão desaparecendo associações porque não conseguem aguentar os custos operacionais.
E que tipo de consequências o preocupam?
Mas quem ganha com isso? Veja que, desde os anos 94 e 95, quando começaram a surgir as primeiras associações em Angola, todos trabalhamos para que o Governo criasse um ente público, no caso o Inadec. Fomos chamados, através do Ministério do Comércio, como parceiros privilegiados para dar o nosso contributo naquilo que seriam os estatutos e o programa do Inadec. E naquele tempo chegamos a viajar com a comissão instaladora no estrangeiro à busca de conhecimento para potenciar este instituto público.
O conselho nacional de consumo não sai do papel?
Este devia ser um órgão a congregar todos os entes públicos e privados da relação de consumo. O legislador tipificou que a composição da sua direcção seria constituída por 50% das associações de defesa dos consumidores, isso para acautelar que os direitos dos consumidores sejam defendidos. Tem sido a nossa luta diária. Continuamos a batalhar para que o Governo um dia aprove a necessidade da implementação desse conselho.
É uma questão de falta de políticas?
Exactamente, não há nada!
Quantas reclamações recebem em média por ano?
Só no ano passado, estamos a falar de um universo de 16 mil acções de mediação feitas na sede da Federação. Note que as partes entram separadas e chateadas mas, no fim, abraçam-se e saem satisfeitas. É isso que nós queremos implementar nas 18 províncias, comunas e municípios. Assim sairia o país a ganhar.
Quais são os casos mais recorrentes?
As pessoas que nos procuram em grande parte apresentam queixas que têm que ver com o funcionamento dos bancos. Seguem-se outras reclamações relacionadas com a actividade empresarial.
Estão representados só em Luanda?
Já tivemos representações em quase todo o país, mas, à medida que a crise foi apertando, o poder financeiro também diminuiu. Estávamos empolgados porque tínhamos promessas de apoios do Governo, mas assim não aconteceu e fechámos as delegações provinciais que eram arrendadas. Perdoaram-nos as dívidas e hoje ficamos confinados a Luanda. Aliás, se reparar, quase 90% das associações têm as portas fechadas, o que não é bom. Daí que vejamos muita gente a reclamar, quando devia usar canais apropriados como o nosso, que é um parceiro privilegiado do Governo. Aliás, numa das minhas teses de licenciatura, disse que, quando não se defende o consumidor, estamos a contribuir para o seu empobrecimento. Ou melhor, muitos de nós estamos a ficar pobres porque os nossos direitos não são salvaguardados.
Porque também não há sensibilização e divulgação desses direitos…
A defesa do consumidor joga um papel fundamental, por isso é que temos países estáveis no mundo. Do ponto de vista político, os ganhos seriam maiores, porque as pessoas saberiam onde reclamar em vez de correrem aos órgãos de comunicação social como tem acontecido.
E como podem apostar na sensibilização, face a este cenário?
Estamos neste momento a avançar com a campanha ‘Eu acredito na defesa do consumidor’. A ideia é criar uma sociedade sã. Isso passa pela divulgação permanente dos direitos dos consumidores através de cartilhas, boletins e guias de educação. Também pensamos em criar centros de arbitragem com o objectivo de dirimir conflitos de consumo.
Porque diz que o abastecimento de água em Luanda não é uma preocupação, mas um problema?
É um problema porque existe um programa ‘Água para todos’ mas mantém-se a situação de água para uns e não para outros. Há um conflito entre o consumidor e o fornecedor que não consegue satisfazer o direito do cidadão. Isso ocorre também com a energia eléctrica.
Perfil
Especialista na resolução de conflitos
Domingos Sebastião da Conceição nasceu em Luanda há 54 anos. É licenciado em Direito voltado para a organização empresarial e é especializado em métodos de resolução de conflito, dirigindo a FAAC desde a sua fundação. Frequenta no Uruguai o mestrado em Administração de Empresas.