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Angola: O Jornalista, o Juiz e o Erro de “João Lourenço”

A história já está bem divulgada nas redes sociais. Numa bela tarde de sexta-feira, quando estava na companhia de sua filha menor, Francisco Boavida Rasgado foi preso por ordem do juiz António José Santana, no âmbito do processo 027/2021, que corre os seus termos na Segunda Secção da Sala Criminal do Tribunal da Comarca de Benguela. Pelo teor do mandado do juiz, esta prisão dá-se para que Francisco Rasgado aguarde “os ulteriores termos do processo” na cadeia. Consequentemente, presume-se que lhe tenha sido decretada a prisão preventiva, embora tal não seja claro, uma vez que não tivemos acesso ao despacho que fundamentou o mandado de detenção.

O que surpreende é que Francisco Boavida Rasgado não é acusado de homicídio, não foi guarda de nenhum antigo campo de concentração nazi, nem sequer é arguido num caso importante de corrupção. A acusação que lhe foi imputada pelo Ministério Público, pelo procurador Edmar Guedes, em 11 de Fevereiro de 2021, apenas considera que o Francisco incorreu na prática de dois crimes: o crime de injúrias conta as autoridades públicas, previsto e punível pelo artigo 181.º do Código Penal, e o crime de difamação, previsto no artigo 407.º do mesmo Código. Note-se que estamos a falar do Código antigo, o qual já não se encontra em vigor. Na verdade, este Código estava em vigor a 11 de Fevereiro, dia da acusação, mas deixou de estar logo no dia seguinte. Isto é rocambolesco.  E neste momento a lei aplicável é a mais favorável. Salvo melhor opinião, o crime de injúrias contra a autoridade pública deixou de existir. O princípio da legalidade impede que seja substituído directamente pelo crime de injúrias (artigo 213.º do novo Código Penal). Por sua vez, o crime de difamação está previsto no artigo 214.º do novo Código, acarretando uma pena de até 18 meses de prisão. Facilmente se percebe que tal moldura penal não permite a prisão preventiva (cfr. o artigo 279.º do Código Penal). Francisco Boavida não pode ficar preso.

Então, muito provavelmente, o mandado de detenção está mal redigido e o juiz não pretende que Francisco Boavida passe os ulteriores termos do processo preso, apenas o quis fazer apresentar em tribunal por uma qualquer razão que ainda não está clara. Nas redes sociais refere-se com insistência que se tratou de uma detenção para o obrigar apresentar-se no seu julgamento depois de ter faltado a uma sessão inicial. Se é esse o motivo, não se vê razão para que tal aconteça numa sexta-feira, quando o julgamento certamente não terá lugar no sábado nem no domingo. Trata-se de um abuso do poder judicial.

O resumo desta situação é muito simples. Francisco Rasgado deve ser imediatamente libertado. Não há nenhuma boa razão para o manter preso, nem lei que fundamente tal dislate.

E dislates judiciais em Benguela são um fenómeno que temos vindo a reportar desde há muito tempo. Lembremo-nos do caso que envolvia os juízes Orlando Lucas, David Figueiredo e Bernardino Botelho Daniel Jimbi, assim como o oficial de diligências Belmiro Carlos, em actividades pouco recomendáveis.

Ou a intervenção absurda do juiz-presidente do Tribunal de Benguela na situação do cadáver com COVID-19, ou ainda a trapalhada referente às empresas do israelita Dudik Hazan e do deputado do MPLA Jú Martins. Todas estas histórias têm um ponto em comum: a intervenção trapalhona, possivelmente ilícita, e indiciando favorecimento, de juízes de Benguela. Uma boa parte dos juízes de Benguela – vamos admitir que não todos – tem propensão para abusar do poder e ignorar as normas legais imperativas. Ora, o poder soberano do juiz, que está precisamente em discussão na presente revisão constitucional, não é o poder de o juiz decidir o que quer, como quer. Pelo contrário, é o poder de administrar a justiça com fundamento na Constituição e na lei. É isto que se exige aos juízes, além do bom senso. Bom senso implica que não se mande prender ninguém à sexta-feira, à frente de filhos menores, a não ser em casos muito graves. A Constituição, a lei e o bom senso têm andado apartados das mentes de alguns juízes de Benguela. É bom que essas referências básicas retornem.

Esta falha de alguns juízes de Benguela leva-nos à última consideração este texto. A transição pacífica – embora cada vez mais tumultuosa, nos últimos tempos – encetada por João Lourenço não pode ter uma conclusão satisfatória se não implicar uma profunda reforma do poder judicial, especialmente da sua composição. É fundamental mudar os juízes. A maioria dos juízes do passado está demasiado comprometida com um sistema em que o clientelismo, a amizade e a influência política eram os factores determinantes das decisões, e a lei apenas servia de manto vagamente justificativo das decisões. Ora, estas mesmas pessoas – ou pelo menos uma boa parte delas –, habituadas a obedecer e integradas num sistema corrupto, não poderão ter o discernimento suficiente para perceber que o paradigma tem de mudar, a justiça tem de ser feita e vista a ser feita. Não ter reformado o poder judicial é um dos erros de João Lourenço. Ainda vai a tempo de o corrigir.

 

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