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Angola: “O poder judicial ajoelhou-se perante o poder político”, diz Sérgio Raimundo

Através do Decreto n.º 69/21, de 16 de Março, o Presidente da República aprovou o regime de comparticipação atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos activos, financeiros e não financeiros, por si recuperados.

Nos termos desse instrumento, é estabelecido que  “é atribuída aos órgão de Administração da Justiça uma comparticipação de 10% do valor líquido do activo de todos os activos por eles recuperados e, ainda,  que a referida “comparticipação  é repartida por dois órgãos de administração da justiça (nomeadamente a Procuradoria Geral da República e os tribunais), quando o activo recuperado for declarado perdido a favor do Estado, mediante decisão condenatória”.

Há poucos os dias, o Presidente da República autorizou uma despesa de 10,8 milhões de euros para a compra de apartamentos destinados à “acomodação condigna” de juízes dos tribunais superiores, magistrados judiciais e do Ministério Público.

Cada apartamento de tipologia T4 tem o custo estimado de 200 mil euros. Todos estão integrados no Empreendimento Torres da Cidadela, à Avenida Hoji-ya-Henda.

No despacho presidencial que autoriza tal operação financeira é referido que o Executivo está empenhado na melhoria das condições de habitabilidade dos órgãos que integram o aparelho do Estado, tendo em vista o aumento da eficiência e da eficácia da sua actividade e consequente prestação de um serviço com mais qualidade.

Há quatro anos, o Executivo já comprara 23 apartamentos do mesmo edifício, também com o propósito de proporcionar uma acomodação condigna aos quadros técnicos dos órgãos judiciais de Justiça, nomeadamente, Procuradoria Geral da República, Supremo Tribunal Militar, Polícia Militar e outras entidades do sector.

Quando confrontado com essa enorme “generosidade” do Executivo para com alguns segmentos da Administração da Justiça, Sérgio Raimundo, advogado e docente de Direito Penal e Processo Penal das Universidades Agostinho Neto e Católica de Angola, não pensa duas vezes: “trata-se de actos corrupção. Não há dúvida que o poder judicial fica de joelho perante o poder político”.

Especificamente sobre o Decreto 69/21, Sérgio Raimundo, diz: “Fui uma das pessoas que se se pronunciou contra esta decisão, que, no meu entender, vem institucionalizar a corrupção do poder judicial pelo poder político. Isto é, estamos perante uma situação que até à luz dos Estatutos da Ordem dos Advogados é inaceitável, já que estes estabelecem a proibição de todos os advogados se tornarem parte da relação material controvertida, ou seja, trata-se da proibição da quota litis. Se para os advogados, que são profissionais liberais, isto não é admissível, porque coloca em causa a sua condição enquanto órgão essencial à administração da justiça, obviamente, que tal situação também não deve ser permitida aos Magistrados Judiciais e do Ministério Público. É que mesmo que se diga que esses 10% não são para serem entregues directamente aos Magistrado, mas sim às instituições em que estes funcionam, a verdade é que indirectamente eles serão sempre os beneficiários. Eles serão sempre os beneficiários últimos e directos, logo, tornando-os assim parte interessada na apreciação e decisão da relação material controvertida, o que coloca em crise a imparcialidade e objectividade que devem nortear a actividade jurisdicional, como pressupostos para a tomada de uma decisão justa”.

Outrossim, diz o renomado causídico, o “Decreto Presidencial é inconstitucional porque viola os artigos 104.º e 161.º alínea e) da Constituição, pois o dinheiro e os bens apreendidos, uma vez perdidos a favor do Estado por decisão judicial transitada em julgado ou mediante acordos, constituem receitas do Estado e, como tal, têm que estar refletidas no OGE e a forma de utilização destas receitas é da competência da Assembleia Nacional e não do Presidente da República. Este não pode dispor dos bens e dinheiro que revertem a favor do Estado fora do OGE. 

O facto de estarmos a assistir à disposição de bens apreendidos, sem que antes seja proferida uma decisão judicial definitiva no processo, constitui uma flagrante violação da Constituição e da Lei, e isto pode pôr em causa o sucesso do combate à corrupção em curso no país. Devemos estar todos de acordo que é necessário combater a corrupção, mas dentro dos ditames da lei. Porque a Lei é o fundamente único de qualquer decisão judicial num Estado democrático e de direito, como também representa o limite dos poderes públicos. De outra forma não se faz justiça, daí a razão da existência e da necessidade dos advogados, enquanto servidores da justiça e do direito”.

Perguntado sobre se o propósito da Justiça seria atribuir, gratuitamente, a uns, o que é coercitivamente retirado a outros, uma alusão  à informação, recente, de que o Juiz Presidente do Supremo teria sido visto a rondar a casa de Joaquim Sebastião, um antigo director do INEA que também é arrolado em processos de recuperação de bens subtraídos ao Estado, o advogado não tergiversa:

“Penso que o propósito da justiça não é atribuir, não importa a que título, a uns o que é retirado a outros, já que, a ser assim, estamos perante uma luta de um grupo de pessoas contra outro grupo e isto nada tem a ver com realização dos ideais mais elementares da justiça”.

 

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