Duas viaturas da marca Toyota Hiace são o enfeite em cima do suculento bolo que o presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial, Joel Leonardo, ofereceu aos seus oficiais de justiça, embora apenas àqueles que trabalham no Tribunal Supremo. Tal consta da circular n.º 005/DRHTS/2020 de 3 de Dezembro de 2020.
Segundo a referida circular, as duas viaturas de marca Hiace “proporcionarão o devido conforto na mobilidade diária dos quadros afectos a esta superior instância judicial”. Os oficiais de justiça dos outros tribunais, para não ficarem a ver navios, podem e devem continuar a recorrer aos candongueiros, muitos deles de marca Toyota Hiace também, e aos kupapatas (os mototáxis) no exercício das suas funções.
Além das Hiace para recolha dos funcionários de e para as suas zonas de residência, a generosidade do juiz conselheiro presidente engloba também a disponibilização de apartamentos na Urbanização Vida Pacífica, seguros de saúde na ENSA e ainda os famosos cabazes de Natal, a serem fornecidos pelo supermercado Kero.
Obviamente, este assomo de generosidade natalícia que acometeu Joel Leonardo tem uma explicação muito simples: os funcionários judiciais, insatisfeitos com as condições de trabalho, prometiam fazer uma greve que começaria no dia do início do julgamento no Tribunal Supremo do deputado Manuel Rabelais. Seria uma humilhação para o país ver a sua justiça emperrada e, por isso, o presidente do Tribunal Supremo apressou-se a apaziguar os seus funcionários com estas prebendas. O problema é que colocou em pé de guerra todos os outros funcionários judiciais, que se sentiram discriminados e injustiçados pela segregação das medidas.
Os problemas que afectam todos os funcionários judiciais tinham sido expressos em ofício de 6 de Outubro de 2020 subscrito pelo secretário-geral do Sindicato dos Oficiais de Justiça de Angola, Lázaro Binjola, dirigido à Comissão de Reforma do Direito e da Justiça. Nesse ofício, os oficiais de justiça apontavam como seus dois principais problemas o Novo Estatuto Remuneratório da classe e o seguro de saúde, e como questões a resolver, ainda que de menor importância, a identificação formal, o uso e porte de arma, e o subsídio aos oficiais de diligências. Reconheciam-se satisfeitos com a evolução do tratamento das nomeações definitivas e do fundo de maneio.
Resumindo, os oficiais de justiça adoptavam uma postura construtiva, mencionando aquilo que não os satisfazia, mas ao mesmo tempo sublinhando as áreas onde tinha havido uma evolução positiva. Curiosamente, em lado algum exigiam veículos Toyota Hiace, e muito menos cabazes de Natal!
A decisão da liderança do Tribunal Supremo de apenas beneficiar os funcionários a si adstritos e esquecer todos os outros veio criar a maior revolta entre os funcionários. O secretário-geral do sindicato, o já mencionado Lázaro Binjola, foi muito eloquente, afirmando que os seus associados estavam extremamente descontentes e citando um funcionário de primeira instância que desabafou: “Nem meio de transporte sequer temos. O clima não está bem e a corda está quase a rebentar. Remetemos um documento há um mês e até agora nenhuma resposta.” O Maka Angola recolheu alguns depoimentos postos a circular entre oficiais de justiça e magistrados:
“Isso é uma autêntica provocação. Magistrados a laborar em condições sub-humanas por falta de dinheiro, e os outros a (nos) gozarem à grande e à francesa. Este país precisa ser reiniciado.”
“Este país é um meme. Até a República Democrática do Congo, que sempre dizem que é desorganizada, trata melhor os seus magistrados do que aqui. Só em Angola é que magistrado anda de kupapata.”
“Para mim acabou-se, é o cúmulo, a sério… Isso só pode ser brincadeira, os funcionários da primeira instância são o quê?!?? Isso tem algum senso de justiça, se os funcionários dos tribunais provinciais de repente pararem tudo, não terão alguma razão???? Eles são os que mais trabalham e nem migalhas sequer têm. Isso não tem cabimento, são todos oficiais de justiça.”
A igualdade de salário e regalias para o mesmo trabalho é um preceito básico das relações laborais, sabendo-se que os tratamentos diferenciados são a fonte dos maiores ressentimentos e revoltas. Qualquer trabalhador terá noção do sacrifício colectivo em nome do bem comum, mas nenhum aceitará fazer sacrifícios enquanto outros que fazem o mesmo recebem benefícios.
Qual é o sentido de os oficiais de justiça do Tribunal Supremo receberem cabazes de Natal do Estado, enquanto os seus colegas do Tribunal Provincial de Luanda não recebem?
A isto acresce que não se percebe bem o papel que o Tribunal Supremo desempenha como agente imobiliário: que casas anda a distribuir? Com que critérios? De onde surgem essas casas?
Não se constrói uma sociedade justa e solidária de um dia para outro. Depois de anos de abusos, nepotismo e favoritismo, não se espera que em 24 horas uma plêiade de mulheres e homens justos assumam o poder e façam tudo bem feito. Contudo, espera-se que haja bom senso e razoabilidade a tratar dos assuntos, acabando com classes privilegiadas e discriminações absurdas.