À medida que os dias passam, confirma-se que a iniciativa de abrir um processo de revisão constitucional foi um momento politicamente sábio do presidente da República. Numa altura em que existia uma grande crispação, o gesto presidencial descomprimiu a situação. Dentro desse espírito, deve-se começar por assinalar os aspectos concretos favoráveis da proposta de revisão. Entre eles, destacam-se a clarificação da fiscalização política do Executivo por parte da Assembleia Nacional, a consagração da independência do banco central, o direito de voto por parte dos angolanos na diáspora e a caracterização das situações estritas em que é possível o confisco de bens.
Dito isto, e sublinhando-se os temas positivos, há uma área de intervenção em que as soluções adoptadas suscitam a maior das perplexidades. Trata-se daquilo que se refere ao sistema de justiça.
O presidente da República entendeu que devia reforçar o posicionamento do Tribunal Supremo. Percebe-se essa preocupação de João Lourenço, uma vez que os grandes casos de corrupção vão ser julgados no Tribunal Supremo. Nessa medida, há que conferir ao tribunal uma dignidade e impacto reforçados.
Se é compreensível a razão fundamental para a necessidade de afirmar a preeminência do Tribunal Supremo, não se alcançam as soluções constitucionalmente adoptadas.
Agora já na posse do Relatório de Fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional, torna-se mais fácil discutir as possíveis normas futuras.
Em relação ao poder judicial, o referido Relatório “propõe-se alterar o Artigo 176.º sobre o Sistema jurisdicional para se alterar a ordem de precedências entre o Tribunal Constitucional e o Tribunal Supremo, passando este a ter precedência hierárquica e protocolar face aos demais tribunais superiores”.
O proposto n.º 1 do artigo 176.º passaria a ter a seguinte redacção: “1. Os tribunais superiores da República de Angola são o Tribunal Supremo, o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Militar.”
Obviamente, a proposta governamental cai num grosso equívoco. As questões de precedência protocolar entre os tribunais não devem ser resolvidas pela Constituição, mas por qualquer lei sobre o protocolo. Nada a objectar que o presidente do Tribunal Supremo tenha precedência sobre o presidente do Tribunal Constitucional, mas dar a esse assunto assento constitucional sempre parecerá excessivo. Em Portugal também existiu essa disputa, que terá sido resolvida por amigável “acordo de cavalheiros”: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça ficou com precedência protocolar, mas em contrapartida os juízes do Tribunal Constitucional ficaram com direito a utilizar potentes automóveis pagos pelo Estado, enquanto o mesmo não foi concedido aos juízes do Supremo Tribunal…
Mais importante do que a precedência protocolar, a verdade é que é errado afirmar-se que o Tribunal Supremo passará a ter precedência hierárquica sobre o Tribunal Constitucional. Isso implicava rever todo o sistema de recursos de constitucionalidade e dar a última palavra sobre a Constituição ao Tribunal Supremo, e não ao Constitucional. No presente sistema, é impossível considerar o Supremo hierarquicamente superior ao Constitucional, quando manifestamente o Tribunal Supremo, em casos de constitucionalidade, tem de obedecer às decisões do Constitucional. Há aqui algum equívoco.
Em suma, pode-se atribuir precedência protocolar ao Tribunal Supremo, embora seja descabido fazê-lo na Constituição, mas não se pode estipular qualquer precedência hierárquica. Tal dependerá obviamente da matéria.
Ainda relativamente ao artigo 176.º, segundo o Relatório, pretende-se adicionar um novo número 6, para “aclarar o conceito de ‘soberania’ representativa do poder judicial, face aos demais poderes de soberania (Legislativo e Executivo) e à sociedade”. Afirma-se no Relatório de Fundamentação que a “redacção proposta atribui o poder de representação da soberania do Judicial aos tribunais superiores, encabeçados pelo Tribunal Supremo, sendo que, colectivamente, esse poder é representado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial. Com esta proposta, torna-se claro que os juízes de primeira e segunda instâncias não são órgãos representativos da soberania do poder judicial, não podendo invocar o estatuto de “poder de soberania”. E no novo número 7 estipula-se que: “Colectivamente, o poder judicial é representado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e o seu Presidente.”
Estas inovações merecem forte crítica, porque apenas criam confusão e representam uma interpretação errada da estrutura do poder judicial.
O poder judicial não é uma organização hierarquizada como as Forças Armadas ou mesmo o Ministério Público. A sua característica essencial é a independência de cada um dos juízes em cada um dos tribunais.
Os tribunais só são superiores em razão das possibilidades de recurso, mas cada juiz no seu tribunal, seja de 1.ª instância, Relação ou Supremo, exerce a mesma função de soberania: a administração da justiça.
Aliás, note-se que o artigo 105.º sobre os órgãos de soberania não sofre qualquer alteração. Nos termos desse preceito, os órgãos de soberania são: o Presidente da República, a Assembleia Nacional e os Tribunais, nem mais, nem menos. E dentro destes não há distinções. Os juízes assumem a titularidade dos tribunais. Eles não são o órgão de soberania Tribunal, mas presidem ao mesmo. Em cada tribunal, o juiz é o titular da soberania, porque é ele que administra a justiça.
As distinções que a proposta constitucional realiza no n.º 6 do artigo 176.º vão contra a natureza atómica, independente e imparcial de cada um dos juízes, e por isso devem ser liminarmente repudiadas.
Por sua vez, misturar o Conselho Superior de Magistratura com os órgãos de soberania, como se faz no n.º 7 do mesmo artigo, tornando-o o representante do poder judicial, não tem sentido. O Conselho Superior de Magistratura é um mero órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial (artigo 184.º, n.º 1 da CRA), não administrando justiça e não exercendo uma função soberana. Aliás, não faz parte dos órgãos de soberania. Consequentemente, não deve ser misturado com os tribunais. O Conselho Superior da Magistratura é um órgão administrativo, não é um órgão soberano, não deve ter a representação dos tribunais. Mais uma vez, estamos perante uma ameaça à independência e imparcialidade de cada tribunal em concreto.
Concordamos que deveria existir uma revisão constitucional acerca do poder judicial. Aliás, um dos temas deveria ser a possibilidade de introduzir tribunais com competência exclusiva para julgamento dos crimes de corrupção e conexos. Não repugna conceder maior dignidade ao Tribunal Supremo.
Contudo, as soluções a encontrar não devem abrir as portas a conceitos estranhos à independência individual de cada tribunal nem à preeminência de um órgão administrativo como é o Conselho Superior da Magistratura. A proposta de revisão constitucional referente ao poder judicial deve ser urgentemente… revista.