Arranco decidido para a terceira etapa do meu percurso, com o foco da corrupção a ocupar, bem contra a minha vontade – devo confessar que me custa imenso ver na imprensa e na televisão nomes que sempre respeitei envolvidos nas suas malhas –, um lugar importante no meu pensamento.
Mas, por todas as razões, tenho que o fazer. Inevitavelmente. Porque todo este lamaçal em que a República de Angola se atolou, ainda só dá mostra de ténues transparências. De facto, só à medida que o tempo passa, nos apercebemos bem de como o nosso país foi atirado cruelmente para o precipício da miséria, consequência de irresponsável conduta de um número considerável dos seus filhos, até há pouco tempo tidos como gente de bem, empreendedores, gestores da melhor qualidade, vencedores de prémios internacionais nas suas especialidades, respeitáveis patriotas, alguns deles considerados melhores do que nenhuns outros.
Sinceramente, custa-me ver como alguns desses nomes têm sido atirados à grande arena pública do julgamento e da condenação antecipada (independentemente das culpas que carregam e da presunção da inocência que lhes são inerentes, claro está), onde as multidões em euforia, a fazer lembrar antigos tempos de Nero e do Império Romano, pedem a morte dos condenados com os polegares das mãos direitas (os canhotos utilizam os da esquerda), tesos e vibrantes, voltados para baixo.
Como se tais gestos acabassem com o sofrimento do povo e pusessem à inteira disposição da nossa gente, o mínimo das suas necessidades básicas. Seria bom que assim fosse, que a justiça no Estado de Direito não fosse, por razões entendíveis, tão morosa, sinuosa e pouco clara nas suas voltas.
Pelo andar com que se move a nossa carruagem, com o ódio que só é possível brotar da inquietação que destila e se observa no voltar de toda e qualquer esquina em rostos enfurecidos e em inúmeras declarações destemperadas, começo a recear que, caso não surjam rápidas soluções para os males sociais que a sociedade justamente reclama – os principais, não os supérfluos –, vejamos brevemente as nossas cidades destruídas pelas cinzas de um imaginário Vesúvio que anda a ser edificado pela imaginação de mestres e peritos em fogaréus e pirotecnia perigosa.
Não irei ao exagero de pensar em acções destruidoras, semelhantes ao vulcão que enterrou a mítica cidade romana de Pompeia no ano 79 d.C., mas poderão acontecer estragos de monta. Precisamente num momento em que nunca se precisou tanto de paz, harmonia, diálogo, concórdia e unidade, do que agora.
No meu andamento, sou obrigado a pequenas paragens. Sobretudo para lembrar-me de factos que considero marcantes, alguns avulsos de um maço grosso que tenho guardado, sem rigor cronológico, mas que ainda me tocam extraordinariamente. Recordo épocas especiais. Por exemplo, o período em que desempenhei o cargo de deputado à Assembleia Nacional e de um facto concreto.
Não sei precisar a data porque a memória me falha agora com mais frequência, mas recordo um dia em que, ainda o antigo Presidente José Eduardo dos Santos trabalhava no Futungo de Belas, e a propósito de uma exigência do então PR, no sentido de que lhe fossem concedidos pelo Parlamento, substantivos poderes, a superar os muitos que já detinha, nos deslocámos ao local das decisões, para dialogar com ele.
Não me posso esquecer do mais-velho Mendes de Carvalho, Uanhenga Xitu, de imortal memória, que falava alto e grosso e que, nessa primeira e única vez no meu mandato, em que fomos recebidos pelo Presidente do nosso Partido, foi dizendo da sua discordância, do absurdo de tal exigência.
Se a memória não me falta, era Presidente do nosso Grupo Parlamentar, o camarada João Lourenço. Não interessando para agora os contornos dessa reunião, só me quero lembrar que à pergunta frontal feita pelo deputado Mendes de Carvalho,
“então o camarada presidente não sabe quem é o Trinta por Cento?”, a respeito de uma personalidade que era muito falada naquele tempo, ele, com o seu característico e nervoso sorriso, respondeu, “não, não sei”. Não há quem me possa desmentir o que afirmo. E o que pretendo, trazendo à liça, estas insignificantes recordações?
Apenas a necessidade de lembrar que o mal que nos toca agora é de reminiscências velhas, vem de longe, de há muito tempo. Quem tinha amplos poderes e os queria mais absolutos, não sabia, não se interessava, não se lembrava da pessoa, provavelmente não quis entender o alcance da pergunta que lhe foi feita, com a coragem possível para aqueles tempos de todos os nossos medos.
Como não se lembraria anos mais tarde, ao descuidar-se de outros nomes e seus feitos desonestos, de assuntos da maior importância para o povo angolano. Foram consequências maiores desse desleixo, depois de vencida a guerra, o não conseguimento do controlo e da fiscalização da tesouraria da Nação, o desenvolvimento da economia assente em bases decentes, actos que os poderes exigidos e a cumplicidade de todos quantos disseram sim, deveriam garantir.
Ao invés, resultou de tudo isso, esta catástrofe de que sofremos tristemente os efeitos. Hoje, a par das mazelas terríveis que a Covid-19 nos trouxe, andamos todos, com ideias que vão das mais toscas às brilhantes e mais iluminadas, querendo salvar o país, agindo como os mestres que fazem a colagens dos cacos de peças de arte que se estilhaçam em mil pedaços, como jarras de porcelana que se atiram ao chão sem o mínimo de cuidado e se desfazem totalmente.
Nesta caminhada que parece interminável, faço mais uma paragem, agora para me preparar para o terceiro capítulo da novela “O Banquete”. Sobre esta investigação da nossa Televisão Popular que, segundo foi esclarecido, levou meses a ser concretizada, apenas um comentário, para já.
Perde muito da sua credibilidade por ser apresentada por Ernesto Bartolomeu. Por uma única e simples razão. Pelo facto de Ernesto Bartolomeu, contra quem nada de mal me move em particular, que condena agora contundentemente com a sua voz poderosa os erros cometidos pelos protagonistas da novela, ter sido a principal figura emblemática da televisão a enaltecer, a colocá-las em altos pedestais, anos a fio, precisamente a muitas dessas pessoas que, com a sua voz perfeita de profissional, soube louvar e enaltecer.
Ossos do ofício! Mas era perfeitamente evitável a exposição e justo seria resguardar-se neste trabalho, a imagem do melhor locutor da televisão angolana.
Vivemos o presente conturbado e pretendemos um urgente e promissor futuro. Um futuro que deve, no entanto, começar devagar, cuidadoso mas bem estruturado, para não nos esbarrarmos novamente e cairmos fatalmente nos abismos da incompetência, como tem sido a marca do nosso malfadado destino.
O passado está bem entregue aos nossos historiadores e aos juízes caberá a tarefa de julgar os feitos do presente como do recente passado. Quer se goste ou não deles, quer se discorde ou não da sua opinião, das suas decisões.
Viremo-nos pois para o futuro, na perspectiva que o empresariado organizado defendeu em declarações recentes às quais alguns juristas ripostaram com competência e elegância, enviando sérios avisos que devem merecer o cuidado de quem trabalha a economia nacional.
Se nos lançarmos em discussões deste tipo sem complexos de espécie alguma, pensando verdadeiramente o país, vamos ter que nos entender, sem ferir muito mais quem já está a penar, ou seja, o desgraçado e sofrido povo angolano. Até para a semana, no domingo, à hora do matabicho.
P.S.– Estava a fechar esta crónica quando encerrou o Encontro do PR com representantes de franjas da Juventude Angolana. Do que vi, fiquei absolutamente agradado. Tentarei abordá-lo em próximo momento.
JACQUES ARLINDO DOS SANTOS
JA