Um dos aspectos mais insólitos, e criticáveis, na presente proposta de revisão constitucional encontra-se na redacção adiantada para o artigo 176.º n.º 7 da Constituição (CRA), que estipulará que “colectivamente, o poder judicial é representado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e o seu Presidente”, bem como na anunciada para o artigo 184.º n.º 4, que estabelecerá que os “Tribunais superiores elaboram anualmente o relatório da sua actividade que é apreciado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e remetido ao Presidente da República e à Assembleia Nacional para conhecimento”.
O que estas redacções implicam é que o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) se torna uma espécie de Presidium do poder judicial, o chefe supremo dos juízes, pois representará todo o poder judicial, sendo o único órgão com essa função, além de apreciar os relatórios de todos os tribunais superiores, assim parecendo que estes devem obediência ou estão submetidos a qualquer espécie de tutela, mais ou menos difusa, por parte do CSMJ.
Em termos de dogmática jurídica, esta construção é insustentável. Em termos de independência do poder judicial, é inaceitável.
Comecemos por explicitar que o CSMJ não é um tribunal, muito menos o Tribunal Supremo, e que por isso nunca poderá representar aquilo que não é.
O Tribunal Supremo é um órgão de soberania (artigo 105.º, n.º 1 da CRA), o CSMJ não é um órgão de soberania. O Tribunal Supremo é um tribunal (artigo 176.º da CRA), o CSMJ não é um tribunal.
O Tribunal Supremo é um órgão de soberania, porque tem “competência de administrar a justiça em nome do povo” (artigo 174.º, n.º 1 da CRA). É esta a essência do poder soberano judicial: a administração de justiça, a decisão do direito a aplicar com força coactiva. É por isso que os tribunais são soberanos, porque dizem o que é a justiça e podem mandar utilizar a força para fazer vigorar essa justiça. Ora, o Tribunal Supremo é o órgão que, geralmente, tem a última palavra nessa função soberana.
Já o CSMJ não é um órgão de soberania, nem administra justiça. A sua função também está clarificada na CRA. O Conselho “é o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial” (artigo 184.º, n.º 1 da CRA). O CSMJ não administra justiça, não diz o que é o Direito – limita-se a mover os juízes de um tribunal para outro, a promovê-los e a prosseguir processos disciplinares. É um órgão de mera gerência.
Isto quer dizer que as funções do Tribunal Supremo – decidir em última instância sobre a justiça – não têm nada de semelhante com as funções do CSMJ, que dizem respeito a gerir e disciplinar os juízes. Refira-se que o CSMJ não tem qualquer poder jurisdicional, isto é, não pode modificar as sentenças dos juízes. Essa função pertence ao Tribunal Supremo.
É por estas razões essenciais e óbvias que não há qualquer explicação plausível nem fundamentação científica para colocar o CSMJ como representante do poder judicial. O CSMJ não exerce poder judicial, quem o exerce são os tribunais.
Mas, além disso, há um detalhe muito importante. Os tribunais são titulados por juízes. Podemos gostar ou não deles, acreditar que uns são corruptos e outros não, ou que a maioria foi vergonhosamente seguidista do poder político santista. Até podemos considerar que é preciso uma purga na classe dos magistrados judiciais.
Abramos um parênteses para reafirmar que consideramos que, para os casos de crimes económico-financeiros em Angola, no início do processo de luta contra a corrupção encetado por João Lourenço, deveria ter sido criado um corpo próprio de juízes, com secções especializadas nos tribunais.
Contudo, a garantia da independência da magistratura é uma das pedras-de-toque do Estado democrático de Direito. Alguns autores defendem mesmo que o juiz livre e independente é mais importante do que as eleições, como forma de garantir a liberdade.
Ora, o que se verifica é que, enquanto os tribunais são presididos por juízes, o CSMJ tem uma composição mista. Nos termos constitucionais, oito dos membros do CSMJ são designados pelo poder político (presidente da República e Assembleia Nacional). Isto quer dizer que nem todos os membros do CSMJ têm de ser juízes, logo, não administram justiça e não podem representar o poder judicial. Isto já é manifesto.
O problema adicional é que temos um órgão parcialmente político a quem são atribuídas funções de representação do poder judicial e de apreciação de relatórios sobre as actividades dos tribunais superiores: o CSMJ como o Presidium do poder judicial que referimos acima. Isto pode ser considerado uma intromissão política na independência dos tribunais. Na versão em vigor da CRA, os juízes são a maioria, numa proporção de 11 para 8. No entanto, facilmente se percebe que, se os designados pelo poder político funcionarem como um bloco, rapidamente poderão contar com a aquiescência de alguns juízes e constituir uma maioria determinante no Conselho. Sendo assim ou não, o facto, em termos de funcionamento das instituições e de simbolismo, é que a proposta de revisão constitucional coloca um órgão parcialmente controlado pelo poder político como representante e responsável pelo poder judicial.
Todas as mulheres e os homens que compõem o CSMJ podem ser anjos, mas isso não elimina o facto de alguns terem sido nomeados pelos braços políticos do poder, o que imputa uma fragilidade enorme à ideia de independência dos juízes.
Note-se que o poder dos juízes advém, em última análise, da sua credibilidade e do seu prestígio como decisores imparciais e independentes. Se o símbolo máximo de poder judicial é um órgão administrativo com composição política, algo fica desequilibrado no desenho constitucional.
É por estas razões que se torna fundamental insistir na diferença entre Conselho Superior de Magistratura e tribunais, especialmente Tribunal Supremo, e modificar a proposta de revisão constitucional, neste aspecto, enquanto é tempo.