Um jornalista do Financial Times em Luanda com outro em Londres publicam na edição online desta terça-feira, 19, dia em que vai ter lugar uma cimeira sobre África promovida pelo jornal, um artigo que o Expansão aqui transcreve e que é um outro “estado da Nação”
Uns dias depois do discurso do “estado da Nação” do Presidente João Lourenço, temos uma visão de Angola no Financial Times (FT), que começa pela declaração pungente de Maria da Encarnação Pimenta: “Há aqui pessoas que passam dias sem comer. No entanto, estamos apenas a alguns quilómetros do centro de Luanda com todos aqueles arranha-céus cintilantes. É uma aberração”.
Maria da Encarnação Pimenta, explica o FT, lutou e é ex-membro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), “partido que domina a vida política do país desde que ajudou a conquistar a independência de Portugal, em 1975”.
E o FT prossegue com uma síntese da história do país, depois da guerra civil, que durou até 2002, o “MPLA supervisionou um boom espectacular do petróleo e da construção, grande parte dele financiado por empréstimos chineses”. Durante o governo de José Eduardo dos Santos, que liderou o país durante 38 anos, até 2017, “Angola tornou-se uma das economias maiores e de crescimento mais rápido de África”, escreve.
Com João Lourenço no poder, Angola tem assistido a uma desvalorização do kwanza, contas feitas, vai em 75%, e foi também durante o mandato de João Lourenço que o país pediu um empréstimo ao FMI de 3,9 mil milhões de dólares, comprometendo-se com “disciplina fiscal, contas transparentes e reformas”.
E ainda naquilo que podemos continuar a considerar a síntese histórica, o FT prossegue: “Mas o país produtor de petróleo, o segundo maior de África, tornou-se sinónimo de corrupção e excessos. Uma elite rica abocanhou bens como troféus em Portugal”, e a inevitável referência à filha mais velha do antigo Presidente dos Santos, “Isabel dos Santos, dirigia um império de negócios que ia desde a banca às telecomunicações, tornando-se a mulher mais rica da África, com uma fortuna estimada, pela Forbes, em 3,5 mil milhões de dólares”.
Os níveis de corrupção são descritos como “pornográficos”, citando um actual membro do MPLA.
“Mas, em 2017, após quase quatro décadas no cargo, dos Santos deixou a presidência. João Lourenço, ex-ministro da Defesa e lutador pela independência, foi eleito em seu lugar”, escreve o FT, que por certo exagera na idade que tinha João Lourenço aquando da luta pela independência. De seguida fala-se das promessas do novo Presidente, “prometeu combater a corrupção e restaurar a justiça social” e “lançou uma campanha anti-corrupção que, para surpresa de muitos, varreu membros da família dos Santos”. O afastamento de Filomeno dos Santos do Fundo Soberano e de Isabel dos Santos da Sonangol são referidos, bem como a queda da produção petrolífera, condicionada “pela queda da produção dos poços antigos, que caiu de quase 1,9 milhão de barris por dia, em 2008, para cerca de 1,3 milhão no ano passado”.
“Há uma mudança de paradigma, reduzindo o papel do Estado na economia”, afirmou Cláudio Paulino dos Santos, “jovem tecnocrata que chefia a agência tributária angolana AGT”, ao jornal.
O Financial Times passa, de seguida, para a política externa e nestes termos: “No estrangeiro, Lourenço montou uma ofensiva de charme, na Europa e nos EUA, procurando angariar investimento estrangeiro e persuadir as capitais ocidentais de que Angola já não é um Estado pária, nem tão próximo da China como fora na época de dos Santos”, mas “em casa, a economia continua presa a uma recessão de vários anos e o MPLA parece mais vulnerável – antes das eleições do próximo ano – do que em qualquer momento do seu governo de 46 anos”, lê-se no artigo do principal jornal económico britânico.
“Democrático de direito e implementar uma verdadeira economia de mercado”, disse o Presidente João Lourenço ao FT, numa rara entrevista no palácio presidencial – e é também o artigo que assinala a raridade deste gesto. Na mesma conversa, o Presidente acrescentou que o sector privado está a ser mobilizado através de um programa de privatizações para que “possa funcionar como um motor da economia” e adiantou “que a sua estratégia é procurar mais investimentos em combustíveis fósseis, até que uma nova economia mais verde e diversificada possa ser construída”.
A economia contraiu quase 10% desde 2016, de acordo com o Banco Mundial, uma situação agravada pela pandemia do novo coronavírus. A inflação está em 26,5%. E com a austeridade, os funcionários públicos, outrora beneficiados, e muitos deles membros do MPLA, sentem-se privados das suas regalias.
Cerca de 54% da população angolana, estimada na totalidade em 32,1 milhões de pessoas, vive com menos de 2 dólares por dia.
Domingas Manoel Salvador, que vende peixe na orla marítima de Luanda, diz que os seus ganhos cairam para metade desde a pandemia. “Olhe bem, eles com todo aquele petróleo e eu aqui a usar esses chinelos”, afirma apontando para uma plataforma de produção offshore.
O Presidente João Lourenço reconheceu a violência do que chama de “tempestade” económica, mas diz que vai passar com os esforços das reformas que o país está a levar a cabo. A economia está a entrar num período de recuperação “depois da tempestade”, argumentou, referindo-se em parte às projecções do Ministério da Finanças que aponta a um “crescimento estável neste ano, subindo para 2,4% em 2022”.
E do que se passa pelo Ministério das Finanças, o Presidente deu conta que houve controlo das finanças públicas e que a dívida externa do país, ainda que acima dos 120% do PIB, é “sustentável”, e falou aos jornalistas do FT do aumento de notação da Moody”s, em Setembro, e da passagem de Angola de Caa1 para B3, no que considera “o reconhecimento da seriedade do programa de reformas” do Executivo.
Voltando às ruas, os jornalistas do FT perceberam que as fortes chuvadas de Abril causaram várias mortes e desalojaram milhares de pessoas e que os protestos contra o governo são cada vez mais frequentes.
O FT ouviu também Ricardo Soares de Oliveira, especialista em Angola e académico em Oxford, que considera que as políticas do Presidente têm recebido mais elogios fora do país do que em casa. “Lourenço está a gerir cuidadosamente as expectativas ao realçar a profundidade da crise do petróleo e da Covid-19, mas o resultado é que a sua presidência ficou aquém das expectativas no que tem a ver com a melhoria económica” da classe média angolana. E “esta é a questão central para as eleições do próximo ano”, acrescenta.
E chega a vez da oposição e da oportunidade sentida pelos partidos da oposição.
“Há muita fome neste país”, disse Filomeno Vieira Lopes, um dos líderes da nova coligação Frente Patriótica Unida (FPU), ao FT, e acrescentou: “O governo está a enfrentar níveis muito altos de rejeição.”
O Presidente afirma, por seu lado, que “compreende o descontentamento popular”, mas acredita que as reformas que está a fazer vão dar resultados, em especial, a aposta no programa de privatizações.
“Queremos tornar mais eficientes todos os activos que antes eram detidos pelo Estado e transferi-los para o sector privado para que produzam mais e melhores bens e serviços”. Quase um terço das 176 empresas estatais a serem privatizadas já foram vendidas, informou.
Mas quanto à Sonangol, “não arriscaria garantir que isso aconteça no próximo ano”, afirma João Lourenço. O que se passa com a Sonangol passa-se com a Endiama, serão privatizadas, mas não será neste primeiro mandato de João Lourenço e o Estado “continuará a ter participação nessas mesmas empresas”, acrescentou o Presidente, incluindo neste lote a TAAG, a companhia aérea nacional.
Na conversa com os jornalistas, o Presidente João Lourenço considerou a diversificação da economia como uma questão de “vida ou de morte”. Mas o progresso do programa, escreve o jornal, “nas suas áreas favoritas, a agricultura e turismo, tem sido dolorosamente lento”.
Ricardo Viegas d’Abreu, ministro dos Transportes, surge no artigo para uma visão optimista, reforçando a odeia que as coisas estão a mudar com uma melhor imagem do país no exterior. A operadora portuária de Dubai, DP World, acaba de assumir a gestão do Terminal Multiusos do Porto de Luanda, tendo concordado em investir cerca de 200 milhões de dólares numa concessão de 20 anos. A empresa de telecomunicações americana Africell vai esta semana iniciar as suas operações em Angola, e a empresa argentina de alimentos Arcor está a contruir a sua primeira fábrica fora da América Latina, nos arredores de Luanda. “O objectivo é colocar Angola na agenda dos grandes players”, afirmou Viegas d’Abreu.
O Presidente João Lourenço “minimiza” as preocupações de que o país esteja super endividado. A Moody’s diz que está vulnerável a uma queda dos preços do petróleo, que recuperou fortemente este ano, ou a uma nova desvalorização do kwanza.
O acordo com os credores chineses – aos quais Angola deve mais de metade da sua dívida externa, avaliada em cerca de 40 mil milhões de dólares – e alívio do serviço da dívida até 2023 são apontados como factores, justamente, de alívio pelo Presidente João Lourenço, que acrescentou: “Com esse ambiente de negócios, que estamos a criar, com esse rating da Moody’s, com o sucesso do programa de financiamento ampliado do FMI, as oportunidades de abrir as portas para os credores internacionais estão a aumentar”.
“Lourenço defende veementemente a sua campanha anticorrupção, apesar das críticas de que tem sido selectiva e que está a ser usada para acertar contas políticas”, escreve o jornal.
No recente discurso do “estado da Nação”, o Presidente assinalou que mais de 700 casos foram processados e cerca de “4 mil milhões de bens roubados do Estado foram recuperados”. O jornal volta a destacar a sua acção e do MPLA no combate à corrupção. E quanto a Isabel dos Santos, “quem não deve não teme”, diz o Presidente, resumindo assim o assunto.
Um investidor estrangeiro familiarizado com a elite do MPLA diz que a intenção de combater a corrupção é pelo menos parcialmente genuína.
“A guerra contra a corrupção causou estragos dentro do MPLA, mas há sinais de que está a diminuir à medida que as eleições do próximo ano se aproximam, quando a necessidade de unidade partidária estará acima de tudo. A prova mais dramática de reconciliação foi o regresso a Angola, em Setembro, de José Eduardo dos Santos, após 30 meses no exílio em Espanha”, escreve o jornal, que acrescenta as palavras de João Lourenço: “O facto de ele ter voltado é bom para todos, não só para o nosso relacionamento, mas é bom para o país”.
Para Ricardo Soares de Oliveira, “o próximo passo lógico” da reconciliação seria descongelar os bens de Isabel dos Santos. “Mas (o Presidente) pode não conseguir fazer com que o génio volte para dentro da garrafa”, acrescenta, referindo-se aos processos judiciais que Isabel dos Santos enfrenta em várias jurisdições fora de Angola, incluindo Portugal e Holanda.
“Alguns analistas políticos especulam que a classe média urbana poderia se afastar do MPLA no poder, nas eleições gerais do próximo ano. À medida que a recessão continua e o descontentamento popular aumenta, os críticos dizem que o partido no poder não está apenas a tentar manter a unidade, mas também a redobrar os seus instintos autoritários”, podemos ler no mesmo artigo.
O jornal escreve sobre o afastamento de Adalberto da Costa Júnior da liderança da Unita, o “principal partido da oposição”, das mudanças da Constituição e da lei eleitoral, “que centraliza a contagem dos votos”, das nomeações judiciais, das eleições autárquicas adiadas, dos protestos antigovernamentais, “cada vez mais comuns”.
“Apesar do domínio do MPLA sobre o processo eleitoral e sobre os meios de comunicação estatais, nas eleições de 2017, o candidato presidencial da Unita recebeu quase 27% dos votos. Cinco anos depois, muitos estão convencidos de que poderia fazer melhor”, lemos.
“A disposição de muitos membros do MPLA para votar na oposição é muito grande”, diz Vieira Lopes, do bloco de oposição da FPU.
João Lourenço declara-se confiante na capacidade de vitória do MPLA. “Quanto à possibilidade de termos um resultado fraco nas próximas eleições, penso que é muito remota”, diz, acrescentando que quem conheceu o país sabe como o MPLA é uma força partidária muito resistente.
Voltando ao bairro, à Zona Verde 3, para concluir o artigo, os jornalistas voltam a ouvir Maria da Encarnação, hoje forte crítica do MPLA, mas não necessariamente do Presidente, sobre quem a mulher conclui: “ele não pode mudar da noite para o dia algo que foi aprendido e praticado durante 40 anos.”