É evidente que o período eleitoral que se avizinha faz acentuar as divergências entre governo e oposição, parecendo que esta contenda é a que definirá o futuro de Angola. No entanto, está em curso uma luta mais interessante e, para usar um termo em voga, paradigmática que poderá ter mais consequências em Angola. Trata-se da luta cultural e de postura perante o Estado e a coisa pública.
Há duas personagens da vida pública angolana que podem ilustrar esta contenda, representando o passado e o futuro de Angola. A escolha destas personagens é simbólica; não se pretende exercer um juízo concreto sobre elas, mas usá-las como ponto de partida para uma discussão sobre comportamentos gerais.
De um lado, temos Bornito de Sousa, o vice-presidente da República; do outro, Vera Daves de Sousa, a ministra das Finanças.
Bornito de Sousa tem sido essencialmente notícia devido ao processo judicial inexplicável que colocou contra Paulo de Morais em Portugal a propósito do vestido de noiva da sua filha. A história é velha e não vamos aqui repeti-la. O que espanta é que o vice-presidente da República não tenha sensibilidade para entender que os factos representam uma exibição de riqueza inaceitável numa Angola assolada pela corrupção, pela pobreza e pelo Luanda Leaks.
Sabe-se que, a partir de dado momento no início do século XXI, o poder angolano encimado por José Eduardo dos Santos entendeu que se deviam exibir as recém-adquiridas riquezas da elite do país para mostrar ao mundo o surgimento de uma nova prosperidade em África. Fatos caros, relógios de ouro, vestidos de estilistas, carros rápidos, iates, jactos privados e vinhos franceses custando milhares de dólares tornaram-se a imagem de marca dos governantes angolanos. De certa forma, com mais ou menos detalhe, o vestido de noiva da filha de Bornito de Sousa representa esta forma de estar.
Os tempos mudaram. O “milagre económico” da primeira década do século XXI foi uma farsa, traduzida essencialmente em roubalheira e má gestão. Os fantásticos administradores da coisa pública, afinal não passaram de meros gatunos vestidos à italiana. Por isso, o vestido de noiva da filha de Bornito tornou-se um símbolo do que não se deve fazer.
Basta ver a decisão da juíza do Tribunal de Instrução do Porto que recusou levar a julgamento o líder da Frente Cívica, Paulo de Morais. Escreveu a juíza: “Ao dar público conhecimento [do que soube relativamente ao casamento da filha de Bornito de Sousa], o arguido agiu dentro do âmbito das suas preocupações, empenhamento e actividade de luta contra a corrupção”, acrescentando: “Face ao conteúdo de todas estas publicações, ao facto de as mesmas serem públicas e de não se conhecer qualquer reacção dos assistentes às mesmas”, o arguido expressou as suas opiniões, “convencido, como ainda está, de que tudo quanto publicou e disse corresponde à rigorosa expressão da verdade”. E concluiu: “[É] público que o regime de governo da República de Angola tem em si graves problemas em vários campos, no político, no social, no económico – questões, que sempre foram conhecidas e comentadas, tornaram-se muito mais evidentes e públicas com a divulgação do dossier conhecido como Luanda Leaks”.
É evidente que a corrupção e o esbanjamento se tornaram símbolos da antiga governação angolana e não é admissível a manutenção dos comportamentos ostentatórios do passado. O que se exige é a denúncia das más práticas e um espírito de contenção.
É isto que a juíza portuguesa diz claramente na sua decisão, e o que a ministra das Finanças de Angola, Vera Daves de Sousa tem andado a defender com intensidade.
Recentemente, Vera Daves afirmou que “não há dinheiro, não há almoços grátis”, apelando a que cada gestor da coisa pública passe a ter uma afinada “responsabilidade individual (…). Se tem dificuldade de manter o elevador e vai a uma conferência e leva uma delegação grande, isto são decisões quotidianas que cada gestor tem de tomar”. Enfatizando que “não temos vindo a ceder, não temos dinheiro para dar e não damos”. O discurso de Vera Daves é um discurso de responsabilização financeira dos políticos. Ou, utilizando a canção de Billie Eilish, “the party is over” (a festa acabou), excepto, aparentemente, para o ministro Ricardo Viegas de Abreu e seus amigos, e outros que andam por aí, que ainda não perceberam que não há dinheiro e que a atitude tem de mudar.
Este é um tempo de contenção orçamental e de tentativa de gestão racional dos recursos públicos. Onde antes se buscava a exuberância e o exagero para se afirmar a potência angolana, agora sente-se a necessidade de uma atitude espartana, de simplicidade, em que os actos eficientes predominem sobre as bombardas. É por isso que tem sentido ouvir Vera Daves a afirmar que não há almoços grátis, que as comitivas devem diminuir, que os gestores têm de fazer contas, e soam como absurdas as histórias de vestidos de noiva milionários.
Há uma luta cultural em curso entre o exibicionismo, a gestão descuidada de fundos, por um lado, e uma visão eficiente e espartana da gestão pública, em que predomine o rigor, a eficácia e a racionalidade, por outro. Essa luta implica um esforço de todos os actores públicos para se comportarem com contenção e disciplina. Onde antes se admirava o relógio de ouro, agora deve-se admirar o pulso nu. Onde antes se vislumbrava a gravata de seda francesa, agora deve-se elogiar o colarinho aberto. Onde antes uma comitiva de 50 pessoas impressionava, agora deve ser um grupo de cinco pessoas a deixar marca. A visão da gestão pública deve ser assumidamente assente na qualidade, não na quantidade; em atitudes espartanas, não em sibaritismos despropositados.