Analistas consultados pela Lusa consideraram que o sigilo imposto pelo Governo brasileiro às comunicações trocadas entre diplomatas sobre os problemas que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em Angola é indevido.
O jornal brasileiro O Globo noticiou na semana passada que o país colocou em sigilo 68 telegramas sobre a IURD trocados entre a embaixada do Brasil em Luanda, capital de Angola, e o Ministério das Relações Exteriores (MRE), no período entre janeiro de 2018 e setembro de 2020.
Na avaliação do professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) David Magalhães, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores brasileiro), costuma proteger o sigilo de empresas com quem mantém relações e que são consideradas estratégicas para o país.
“O Itamaraty só consegue alegar que vai cobrir de sigilo uma informação sobre terceiros vinculados a ele se entender que a empresa cumpre uma função estratégica e que a veiculação das informações podem colocar em risco não apenas interesses comerciais da empresa, mas também interesses do próprio Itamaraty. São questões sensíveis que o Itamaraty reputa como de segurança nacional”, referiu David Magalhães.
O especialista contou que estudou as exportações de armas do Brasil, que precisam passar necessariamente pelo crivo do Itamaraty durante três meses, e teve contacto com os mecanismos de sigilo adotados dentro da chancelaria brasileira.
“Solicitei via lei de acesso à informação dados sobre exportações de armas de algumas empresas, que foram negados. Recorri até a Corregedoria Geral e não consegui acesso porque envolvia interesse comercial e sigilo das empresas. A única hipótese plausível para o Itamaraty cobrir de sigilo as informações sobre a atuação da Igreja Universal é esta. Tratar a igreja como se fosse uma empresa estratégica”, afirmou.
“Acho estranho incluir sigilo em documentos que dizem respeito à atuação de uma igreja num país estrangeiro. Não são documentos de interesse nacional que envolvem questões de defesa”, acrescentou.
O diplomata Paulo Roberto de Almeida, ex-diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty, que atualmente trabalha na Divisão de Arquivo do ministério, concorda que impor sigilo sobre os telegramas não foi uma ação normal.
“Não é normal que assuntos de igrejas brasileiras no exterior estejam cobertos por segredo porque não há nenhum interesse do Estado brasileiro numa atividade que é puramente de interesse privado”, defendeu.
O diplomata explicou que o Itamaraty presta assistência à comunidade brasileira no exterior, que algumas vezes isto pode passar pelas igrejas porque elas reúnem muitos brasileiros, mas são atividades consulares, de apoio cultural, promoção da língua portuguesa e da cultura.
“O segredo sobre outras atividades que estas igrejas possam ter tido ou sobre problemas que elas tenham com autoridades locais não é de interesse nacional brasileiro. Há um princípio Constitucional [no Brasil] de não intervenção em assuntos internos em outros Estados”, frisou.
“Se, por acaso, Angola estiver a processar brasileiros não devemos intervir, a não ser para prestar assistência consular, que é o nosso dever”, completou.
Paulo Roberto de Almeida também considerou que o sigilo imposto aos telegramas que mencionam a IURD fere uma obrigação de transparência do Governo brasileiro.
“Temos uma obrigação de transparência quando nenhum segredo de interesse do Estado brasileiro esteja em causa. Não acredito que supostas fraudes cometidas por brasileiros no exterior interessem ao Estado brasileiro”, concluiu.
A IURD está envolvida em várias polémicas em Angola, depois de um grupo de dissidentes se ter afastado da direção brasileira, em novembro do ano passado.
Os angolanos, liderados pelo bispo Valente Bezerra, afirmam que a decisão de romper com a representação brasileira em Angola, encabeçada pelo bispo Honorilton Gonçalves, fiel ao fundador Edir Macedo, se deveu a práticas contrárias à religião, como a exigência da prática da vasectomia, castração química, práticas de racismo, discriminação social, abuso de autoridade, além da evasão de divisas para o exterior do país.
As alegações são negadas pela IURD Angola que, por seu lado, acusa os dissidentes de “ataques xenófobos” e agressões a pastores e intentou também processos judiciais contra os dissidentes.
A IURD Angola acusou anteriormente as autoridades judiciais angolanas de terem feito apreensões ilegais e atentarem contra a liberdade religiosa, havendo vários processos judiciais nos tribunais angolanos.
O conflito deu origem à abertura de processos-crime na PGR de Angola e subiu à esfera diplomática, com o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a pedir ao seu homólogo João Lourenço garantias de proteção dos pastores e do património da Igreja, tendo o chefe de Estado angolano prometido um “tratamento adequado” do assunto na justiça.