As provas reunidas contra quatro integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em Angola denunciados sob acusação de crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e associação criminosa no país são fartas e contundentes, afirmam a Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola e o Serviço de Investigação Criminal (SIC, a polícia federal angolana) em entrevista à BBC News Brasil.
Os quatro investigados no caso são: Honorilton Gonçalves da Costa, ex-representante máximo da Igreja Universal do Reino de Deus em Angola, Fernando Henriques Teixeira, ex-diretor da TV Record África, o bispo António Pedro Correia da Silva (então representante legal da Record e presidente do conselho da IURD em Angola) e o pastor Valdir de Sousa dos Santos.
O processo corre atualmente sob sigilo, mas deve vir a público em breve durante a tramitação judicial que começou em maio, após um ano e meio de investigações por parte da PGR e do SIC.
“Quando você retira dinheiro de um Estado de forma não lícita, você já está a branquear e a violar a lei”, explicou Álvaro João, porta-voz da PGR. Segundo ele, há fatos e provas “que nos levam a chegar à conclusão de que de fato há branqueamento de capitais ou crimes conexos”. O conceito de branqueamento de capitais no ordenamento jurídico angolano é equivalente à lavagem de dinheiro na legislação brasileira, que se trata de esconder a origem de recursos ilegais por meio de operações comerciais ou financeiras.
Manuel Halaiwa, superintendente do Serviço de Investigação Criminal (SIC), afirmou à reportagem que se as provas não fossem contundentes os investigadores da polícia federal angolana não teriam indiciado os quatro acusados brasileiros.
Tanto João quanto Halaiwa disseram não poder dar detalhes das provas obtidas porque o processo está sob sigilo. Mas membros angolanos da Igreja Universal que assumiram o comando da instituição no país têm falado publicamente sobre parte das provas que entregaram aos investigadores e sobre detalhes de como, segundo eles, funcionava o esquema criminoso no país.
Valente Bezerra Luís, bispo que está há 30 anos na IURD Angola e atualmente ocupa o cargo máximo da igreja no país, disse, por exemplo, que grande parte do dinheiro arrecadado com dízimos e doações não passava por contas bancárias, era convertido em dólar no mercado informal e depois levado por bispos e pastores na bagagem para o Brasil ou escondido em carros de luxo para a África do Sul.
Segundo Bezerra Luís, o esquema de lavagem de dinheiro da Universal envolvia o braço da Record no país. “Antonio Pedro Correia da Silva era o representante legal da Record e ao mesmo tempo era presidente do conselho de direção da igreja. Então vamos entender. A igreja faz programas na Record e a igreja paga. Quem assina o cheque para pagar a Record é o mesmo representante legal da Record e é o mesmo presidente do conselho de direção da igreja. Quer dizer, ele paga a ele”, disse em entrevista à emissora pública angolana (TPA) no fim de maio.
Atualmente, a Record está fora do ar em Angola, mas isso não tem relação direta com a investigação (leia mais abaixo). Estima-se que a IURD em Angola arrecadava anualmente por meio de seus 354 templos cerca de US$ 80 milhões (quase R$ 400 milhões), e mais da metade seja enviado para o exterior de forma ilícita, segundo a denúncia. Atualmente, em razão da investigação, grande parte dos templos foi alvo de busca e apreensão e está de portas fechadas.
Procurada pela BBC News Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil refutou todas as acusações, as classificou de fake news e disse que os quatro membros acusados ainda não conseguiram acesso à investigação formal. “Nem a Universal, nem seus bispos e pastores praticaram crimes em Angola.”
Além disso, a instituição afirmou que brasileiros têm sido alvos de deportações arbitrárias (25 até agora) e que membros angolanos da instituição deram um golpe para assumir o controle da IURD no país. “A Universal de Angola é vítima de uma trama elaborada por um grupo de ex-oficiais que foram expulsos da Igreja em decorrência de graves desvios de conduta. Além de promover ataques, invasões e saques, eles espalharam notícias falsas em parceria espúria com alguns veículos de comunicação e a conivência de autoridades locais, para tentar expulsar a Igreja do país.” Leia mais abaixo sobre o posicionamento da Universal acerca das denúncias.
Denúncias de racismo e esterilização forçada
As investigações começaram em novembro de 2019, quando um grupo de 330 bispos e pastores angolanos da Universal (dentre quase 550 membros ao todo) divulgaram um manifesto com acusações públicas contra representantes brasileiros da igreja em Angola, onde atua oficialmente desde 1992.
Segundo a PGR de Angola, apenas uma parte das acusações feitas por bispos e pastores angolanos foi investigada pela polícia e pelo Ministério Público porque na denúncia pública havia também questões individuais.
Entre eles, os relatos de racismo (o bispo Edir Macedo é acusado de ter afirmado numa conferência que os negros vieram dos macacos), de vasectomia ou retirada de útero forçadas para que os pastores não tivessem filhos e “desviassem o foco” da igreja (acusação feita também em outros países como o Brasil) e de perseguições a pastores que engravidassem suas mulheres (com redução de salário, de cargo e do status da moradia oferecida pela igreja).
“Nos últimos 12 meses, a anterior e actual liderança brasileira por orientação do Bispo Edir Macedo tem forçado os Pastores solteiros e casados a submeterem-se a um procedimento cirúrgico de “esterilização”, tecnicamente conhecido como vasectomia que, são claras violações graves dos direitos humanos, da lei e da Constituição da República de Angola, práticas estas que são estranhas aos costumes da nossa realidade africana e angolana”, afirmava o comunicado divulgado no fim de 2019.
Não é a primeira vez que a Universal é acusada de esterilização forçada por ex-missionários. Acusações como essa ocorreram em outros países, como São Tomé e Príncipe e Brasil, onde a instituição foi condenada recentemente a indenizar um pastor pela prática.
Desde o fim de 2019, a situação desandou para os brasileiros da Universal. Todos foram destituídos dos cargos de liderança na seção angolana da igreja, 25 bispos e pastores foram obrigados a deixar o país, o controle dos templos foi transferido com anuência do governo angolano e a TV Record África saiu do ar em abril de 2021 por, segundo o governo, descumprir regras que proíbem estrangeiros no comando da emissora e que exigem o credenciamento oficial de estrangeiros atuando como jornalistas.
Em comunicados, a Record em Angola afirmou que “pauta e sempre pautou pela legalidade nos mais de 15 anos presentes em Angola e em todo continente africano”, que não havia nenhum jornalista estrangeiro em seus quadros no país e que o diretor-executivo Fernando Henrique Teixeira (um dos quatro denunciados pela Procuradoria-Geral da República), que ocupava o cargo havia dez anos, seria substituído pelo jornalista angolano Simeão Mundula.
Entidades jornalísticas de Angola expressaram preocupação com o fechamento da Record e de outros dois canais ligados ao ex-presidente José Eduardo dos Santos (Zap Viva e Vida TV). Representantes do Instituto para a Comunicação Social da África Austral em Angola (MISA-Angola) afirmaram à imprensa local que a medida asfixia a liberdade de imprensa e que as emissoras deveriam ter sido notificadas das supostas irregularidades, e não fechadas abruptamente.
Vale lembrar que a Record em Angola chegou a ser advertida pela Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana (Erca) por veicular ataques e críticas a religiosos angolanos que passaram a comandar a igreja no país.
Até o momento, a emissora continua sob o comando de nomes ligados à Universal no Brasil, mas os dissidentes angolanos têm dado sinalizações de que podem iniciar uma guerra para assumir o controle da emissora no país porque, segundo eles, ela foi erguida com dinheiro recolhido nos templos e pertence à igreja.
Acusação de evasão de divisas após Fogueira Santa
Novo líder da Universal em Angola, Bezerra Luís afirmou à televisão pública do país que a antiga liderança da igreja usava bispos, pastores e suas mulheres a fim de levar parte do dinheiro arrecadado em Angola para outros países, como Brasil e África do Sul, geralmente depois de eventos conhecidos como Fogueira Santa.
Nesses eventos, os fiéis são instados a sacrificarem valores elevados em dinheiro para receber em retorno de Deus. “É uma troca. Deus nos dá a Sua plenitude e nós O entregamos tudo o que somos”, explica o site da Universal.
Em 2018, a gaúcha Carla Dalvitt conseguiu vencer uma disputa judicial com a igreja brasileira na qual afirmava ter sido coagida pela congregação religiosa a doar a ela tudo o que tinha e acabou ficando sem dinheiro e sem carro. Ela disse estar desesperada naquele momento, mas acabou mudando de ideia.
A igreja, entretanto, se recusou a devolver-lhe os valores. À época, a instituição afirmou que “o dízimo e todas as doações recebidas pela Universal seguem orientações bíblicas e legais, e são sempre totalmente voluntários e espontâneos”.
O novo comando da IURD em Angola afirmou que não seguirá mais a teologia da prosperidade, doutrina que defende o pagamento de dízimo e considera a riqueza material uma benção de Deus, mas não está claro que linha doutrinária devem seguir.
Segundo Bezerra Luís, quantias enormes eram arrecadadas de fiéis pela Universal em Angola durante a Fogueira Santa. Em seguida, grupos de até 150 missionários angolanos e brasileiros que atuavam em Angola eram designados para visitar o Brasil e cada um deles, junto com suas mulheres, recebiam cerca de US$ 15 mil (quase R$ 75 mil em valores atuais) em dinheiro vivo para serem transportados na bagagem pessoal e entregues a um representante da igreja no Brasil.
A Receita Federal brasileira autoriza a entrada de até R$ 10 mil (ou o equivalente em moeda estrangeira) por pessoa sem necessidade de declarar a quantia às autoridades.
Além disso, a liderança angolana afirmou que havia também envio de dinheiro vivo escondido em carros de luxo que seguiam em direção à África do Sul, onde a Universal também atua desde 1992.
Por que só agora?
Diversos bispos e pastores angolanos afirmam que todos esses problemas ocorrem há anos. Mas por que só agora se movimentaram contra as lideranças brasileiras?
Há dois pontos principais. O primeiro foi a mudança de governo, mais especificamente a saída de José Eduardo dos Santos, que comandou Angola de 1979 a 2017.
A chegada de João Lourenço à Presidência e a mudança nas lideranças no país fizeram com que bispos e pastores angolanos da Universal no país avaliassem que a proximidade da igreja com o poder havia perdido força e, portanto, a tentativa de mudar o comando da instituição poderia prosperar.
O segundo ponto foi a chegada do bispo Honorilton Gonçalves a Angola em 2019 para liderar e tentar controlar as insatisfações internas da denominação no país, onde 41% da população é católica e 38%, protestante, segundo os dados mais recentes do governo angolano.
Segundo Acúrcio Estêvão, diretor jurídico e porta-voz da Ordem de Pastores Evangélicos de Angola, os relatos de vasectomia forçada e discriminação racial, por exemplo, são feitos há anos por missionários angolanos, que cobravam uma participação maior deles na condução dos rumos da instituição.
“Os bispos anteriores souberam gerir essa relação. Tinham consciência dos problemas. E quando arrebentasse um ou outro cano, eles conseguiam estancar aquilo e se mantinha um problema interno. Há muitos anos, ouço falar de problemas na Igreja Universal, mas era muito difícil ver um pastor ou um obreiro comentar esse problema fora da esfera da igreja. Mas isso ocorreu com Honorilton, porque os problemas não são novos, mas houve uma forma nova de lidar com eles, com arrogância.”
Estêvão afirmou ter tentado mediar uma conciliação entre as lideranças brasileiras e os dissidentes angolanos a fim de evitar que o caso tomasse as proporções atuais. Mas os brasileiros rejeitaram qualquer negociação e disseram a ele que “Deus nunca negociou com o Diabo”.
Crise levou a pressão sobre Bolsonaro
A crise teve desdobramentos políticos no Brasil. O governo Bolsonaro e parlamentares passaram a ser cobrados publicamente por membros da Universal com o objetivo de reverter a perda de comando da igreja em Angola, um dos 134 países em que a denominação evangélica divulga atuar.
O caso se agravou em meados de 2020, quando uma assembleia com membros da Universal em Angola determinou a dissolução de sua diretoria e a destituição do bispo brasileiro Honorilton Gonçalves e do presidente do conselho de direção da Universal, bispo Antonio Pedro Correia da Silva, além de ter encerrado o serviço eclesiástico de missionários brasileiros da Universal em todo o território de Angola. A Universal no Brasil disse que a assembleia foi fraudulenta.
À época, o próprio presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, havia tentando interceder em favor da igreja de Macedo, seu aliado e eleitor na campanha à Presidência. Ele enviou uma carta para o colega angolano, o presidente João Lourenço, manifestando preocupação com os acontecimentos no país e pedindo o aumento de proteção aos brasileiros.
Além disso, a pressão da Universal e da bancada evangélica fez com que Bolsonaro, o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o embaixador do Brasil em Angola, Paulino Franco de Carvalho Neto, assumissem publicamente posições em defesa da igreja no país africano.
Mas a ofensiva diplomática não surtiu efeito e desde aquela época a Universal no país é comandada por angolanos. Membros do governo de Angola se apressaram em dizer publicamente que o caso era isolado e não prejudicaria a relação entre os dois países.
No Brasil, a crise gerou alguns sinais de que a igreja liderada por Edir Macedo poderia romper com Bolsonaro por causa da insatisfação com a atuação das autoridades brasileiras no caso. “O governo brasileiro, que deveria proteger os brasileiros em Angola, falhou nessa missão. Foi omisso e não atuou de forma ativa para evitar a deportação”, disse a TV Record brasileira.
Mas especialistas ouvidos pela BBC News Brasil em maio de 2021 avaliaram que o possível rompimento com o presidente não iria além de ameaças por parte de Macedo.
“Há milhões de reais para o financiamento direto de campanhas de propaganda para a Record no governo Bolsonaro, via Secom (Secretaria de Comunicação). Como ela recebe por isso, não vai abdicar dessas verbas. Não vai sair de uma forma tão explícita do governo agora”, disse à época o teólogo protestante Fábio Py, professor do programa de pós-graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense.
Universal nega acusações e fala em perseguição
A Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil emitiu diversos comunicados sobre o assunto desde que foi alvo das primeiras denúncias, em novembro de 2019. Segundo a instituição religiosa, desde então criminosos têm usado violência e fraude para expulsar a Universal de Angola e roubar “o patrimônio construído com o suor de todos os fiéis angolanos ao longo de muitos anos”.
A IURD costuma afirmar que sempre se pautou pela moralidade, respeito às autoridades constituídas e a legislação vigente, e que até o momento não pode ter acesso à investigação e apresentar esclarecimentos sobre as acusações que circulam na imprensa angolana.
“Pese embora as gravíssimas imputações criminais vertidas no comunicado à imprensa, cumpre esclarecer que a IURD Angola e os seus actuais representantes nunca tiveram acesso aos factos e aos elementos de prova que, em concreto, sustentam as referidas imputações criminais.”
Para a Universal no Brasil, há vazamentos constantes da investigação sigilosa na mídia angola com o objetivo de “fazer o julgamento no ‘tribunal das ruas’ e das ‘redes sociais’, criando na opinião pública a ideia de que a IURD e os seus representantes são um conjunto de criminosos a actuar no território angolano”.
A igreja disse não reconhecer Valente Bezerra Luís como líder religioso da denominação em Angola, alçado ao posto numa assembleia fraudada, segundo ela. Segundo a Universal no Brasil, o braço angolano da instituição é comandado atualmente pelo bispo Alberto Segunda.
Sobre a expulsão de membros brasileiros da Igreja de Angola, a Universal no Brasil afirmou, por exemplo, que em 10 de maio de 2021, 34 missionários e suas esposas foram chamados à PGR para prestar esclarecimentos sobre a investigação.
Mas “num acto que reputamos de contrário da dignidade da pessoa humana”, segundo a igreja, nove deles passaram horas sem comida e depois foram deportados do país sem a permissão de buscar pertences pessoais.
Acerca das acusações de racismo, a igreja afirmou à BBC News Brasil que essas denúncias são “mentiras absurdas” que visam “confundir a sociedade angolana” e que, na verdade, são os membros brasileiros do seu corpo eclesiástico que têm sido alvo de racismo e xenofobia.
“Basta frequentar qualquer culto da Universal, em qualquer país do mundo, para comprovar que bispos, pastores e fiéis são de todas as origens e tons de pele, de todas as classes sociais.”
“Imagine se agora chegarmos no Brasil e expulsarmos do Brasil os angolanos que não fizeram nada. Isso é xenofobia. A ONU, obviamente, vai tomar providências porque nós vamos apelar para a ONU para ver o que eles vão fazer porque essa situação não pode continuar”, afirmou Edir Macedo em vídeo divulgado em março deste ano.
“Estaremos orando para que o Espírito Santo venha sobre todos nós, inclusive sobre as autoridades angolanas, para que todos tenham seus olhos abertos e atentos à palavra do Senhor Jesus.”
Questionada pela reportagem sobre as acusações de esterilização forçada, a Universal no Brasil disse que essa é “uma fake news facilmente desmentida pelo fato de que muitos bispos e pastores da Universal, em todos os níveis de hierarquia da Igreja, têm filhos, inclusive em Angola“.
A instituição afirmou que o que estimula “é o planejamento familiar, debatido de forma responsável por cada casal” e que “cada indivíduo é livre para manifestar sua vontade”.